Um Bis costumava ser um wafer crocante recheado e coberto com chocolate. Entre seus ingredientes estavam açúcar, farinha de trigo enriquecida com ferro, ácido fólico, vitaminas B1, B2, B3 e zinco, gordura vegetal hidrogenada, gordura vegetal, cacau, massa de cacau e emulsificantes, fermento químico, bicarbonato de sódio e aromatizante.
A partir de outubro de 2023, o Bis passou a ser um elemento de avaliação ideológica. A polarização política que o Brasil vive há anos agora inclui também os wafers.
Para quem não sabe o que aconteceu: a Lacta, empresa fundada em 1912 que hoje pertence à multinacional Mondelēz, fez uma ação publicitária do Bis usando como garoto-propaganda o gamer/influencer/youtuber Felipe Neto. Ele posou fazendo expressão entediada com dois pacotes do chocolatinho num jatinho particular.
Foi o suficiente para que as pessoas que não suportam Felipe Neto pela sua fúria petista iniciassem uma campanha nas redes sociais com a hashtag #BisNuncaMais. O Bis passou a ter o status de guloseima esquerdista. Já é um fardo difícil de carregar para um produto. Podia parar por aí, mas o passo seguinte foi dado por dois ilustres senadores da República: o sem partido pelo Amapá Randolfe Rodrigues e o petista por Pernambuco Humberto Costa. Eles decidiram divulgar posts com sorriso de garotos-propaganda lacradores, segurando seus pacotes de Bis e misturando chocolate e ivermectina na mesma frase. A deputada petista Maria do Rosário também entrou na onda. Todos eles resolveram combater o capitalismo explorador fazendo publicidade de uma multinacional estadunidense.
O chocolate da direita
O outro lado respondeu fazendo fotos com o produto rival, o KitKat, da Nestlé. A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro chegou a publicar um vídeo com a hashtag #BisComunista. Ao ver que seu wafer azul estava se transformando em palavrão, o fabricante divulgou em comunicado oficial a mensagem: “A Mondelēz Brasil, fabricante da marca Bis, reforça que suas contratações de influenciadores estão relacionadas unicamente à sua relevância no universo gamer e de entretenimento, sem qualquer vínculo ou apoio político de qualquer natureza”.
Por exclusão, a imprensa militante começou a chamar qualquer ser humano que não gosta de Bis ou de Felipe Neto de “bolsonarista”. E o KitKat passou a ser o wafer com chocolate “da direita”. Lambuzados pelo debate político, todo mundo esqueceu que o KitKat lançou há apenas dois anos uma campanha radicalmente LGBTQIA+:
Faltava ligar alguns pontos, e descobriu-se que o CEO da Mondelēz Brasil, Liel Miranda, faz parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável — o chamado “Conselhão do Lula”. O Conselho, que havia sido extinto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, ressuscitou com Lula. E com o reforço de… Felipe Neto. Entre outros nomes do conselhão estão Josué Gomes (presidente da Fiesp), Luiza Helena Trajano (Magazine Luiza), Neca Setúbal (herdeira do Itaú), Bela Gil (“criadora de conteúdo”), Ayala Ferreira (MTST) e o padre Júlio Lancellotti (Pastoral do Povo de Rua). Precisa desenhar?
O poder de uma hashtag
Para dar mais uma camada de importância ao caso todo, o site Pleno News informou que “o impacto sofrido pela Mondelēz após o anúncio da parceria com o youtuber Felipe Neto, nesta semana, extrapolou os limites das redes sociais e teve resultado direto nas finanças do conglomerado. Na bolsa de valores brasileira, as ações da dona da marca Bis despencaram e fecharam nesta sexta-feira (13) com uma queda de mais de 5% ante o valor da última sexta (6)”.
Em nome dos fatos, é preciso reconhecer que o preço das ações estava caindo desde o dia 4 de outubro. Isso tem a ver com a campanha? Ou já era uma tendência de queda resultante de outros fatores? A foto de Felipe Neto foi publicada no dia 10. Pedimos à Mondelēz uma avaliação técnica sobre essa queda, mas a empresa até agora não respondeu. Mas parece impossível que um boicote em redes sociais do Brasil possa provocar uma queda dessas numa corporação global por causa de uma hashtag.
A diária de R$ 120 mil
Ao perceber o estrago, Felipe Neto colocou no seu canal no YouTube um vídeo intitulado “Até logo”, no qual pede uma trégua. “Eu meio que virei um ícone nessa luta política”, declarou no vídeo. “Não me arrependo da luta que travei contra o regime bolsonarista e tenho certeza de que nós fomos vencedores no final das contas. Não só pela vitória nas eleições como pelo fato dele já estar inelegível. Esse desgaste na vida pública fez com que o canal despencasse em patrocínios. Mas despencasse muito, ao ponto de chegar a zero. Ninguém queria ligar sua marca a um cara que era odiado por, sei lá, 25% dos eleitores.” Apesar da crise financeira provocada pelo seu idealismo, Felipe declarou que se hospedou num hotel de Paris com diária equivalente a R$ 120 mil, pois queria ser tratado “como se fosse a Beyoncé”. E passou outros dez dias na capital francesa gastando R$ 60 mil por dia.
Felipe Neto nasceu há 35 anos, no Rio de Janeiro. De origem humilde, tem um talento empresarial inegável e soube usar de forma lucrativa as novas mídias e redes sociais. Passa seus dias postando vídeos dele mesmo e jogando games como Minecraft com transmissão ao vivo pelas plataformas. Seu canal no YouTube tem 45,6 milhões de inscritos. Sua conta no X/Twitter tem 16,6 milhões de seguidores. No Instagram, são 17,4 milhões. Ele vende a inserção de um produto (como o Bis) nessas redes por uma quantidade considerável de dinheiro.
Felipe declarou ao site NSC Total ganhar cerca de US$ 13 milhões por ano. Segundo o site, Felipe possui uma mansão “na Barra da Tijuca, no Rio, avaliada em mais de R$ 5,5 milhões e tem uma BMW X6 estimada em cerca de R$ 300 mil. Entre outros bens, ele tem um Apple Mac Pro, cujo preço foi cerca de R$ 145 mil, e um item extravagante: uma caneta Dupont, edição limitada, que adquiriu pelo valor de R$ 10 mil”.
Felipe Neto tornou-se, enfim, um influenciador no sentido exato da palavra. O problema é que quem influencia (especialmente crianças) deveria refletir ainda mais antes de fazer e falar qualquer coisa. E Felipe Neto tem uma dificuldade evidente de refletir sobre suas ações e lidar com o contraditório. A coerência não é seu forte. Sua opinião inflamada vai de um extremo ao outro. Para os que são influenciados pelo influencer, isso é um perigo.
‘O impeachment da demônia‘
Ainda circula no YouTube o vídeo em que Felipe Neto berra com os olhos em chamas: “Vai tomar no centro do olho do seu %$, Lula! Vai pro %*$#%@*, Lula! Você é um merda! Você é um corrupto de merda! Pode me processar, Lula. Chamei de corrupto, sim, e se reclamar eu chamo de novo. Pode botar 35 processos que eu faço mais um vídeo”.
Em 2016, foi um ardoroso defensor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, segundo a Wikipedia: “Acabaram as apresentações em Brasília, agora só falta o resultado para o impeachment da demônia”. Em 2017, declarou voto em Jair Bolsonaro: “Então assim: votar no Lula, sob qualquer hipótese, contra qualquer candidato, eu não voto. O Lula contra o ‘gorila Malaquias’? Eu vou votar no Gorila. Embora o Bolsonaro represente muita coisa que eu ache que tá errada no mundo, se fosse ele contra o Lula, eu acho que eu não teria escolha. Teria que votar nele”.
De repente, girou 180 graus e entrou na onda do “Bolsonaro genocida”. No ano passado, declarou apoio ao mesmo candidato que havia chamado de “corrupto de merda”. E fez seu mea culpa em público: “Ontem pude olhar nos olhos da Presidenta Dilma e pedir perdão. Perdão por ter propagado o antipetismo, o discurso golpista e o ódio à esquerda. O amor que ela me deu em retorno foi algo que nem consigo explicar a vocês. É esse amor que vai vencer dia 02″.
Unir publicidade com lacração geralmente dá errado. Foi o caso da varejista Target, que teve US$ 10 bilhões de prejuízo ao lançar a coleção Pride, com roupas LGBT+ e ‘ocultistas’
Esse “amor” se manifestou em diversas oportunidades, segundo levantamento do site NSC Total. Felipe Neto declarou ao New York Times que o ex-presidente Jair Bolsonaro era “o pior presidente da covid do mundo” e comparou o Brasil a uma “casa em chamas”. Brigou em 2017 com o pastor Silas Malafaia por causa de um beijo gay numa série da Disney. Por outro beijo gay, numa revista da Marvel, brigou com o então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, em 2019.
Travou uma batalha judicial com a atriz e apresentadora Antônia Fontenelle. Brigou com Biel por causa de uma acusação de assédio sexual envolvendo o cantor e uma jornalista. Patrulhou o jogador Neymar por não fazer o ritual de se ajoelhar para George Floyd em 2020. Patrulhou o apresentador Pedro Bial, que havia afirmado que só entrevistaria o presidente Lula com um detector de mentiras, e decidiu que por causa disso nunca mais apareceria na Rede Globo.
Patrulhou os cantores sertanejos de maneira geral por não se posicionarem contra Jair Bolsonaro. Patrulhou o colega influencer Carlinhos Maia (outro petista com um carro McLaren de R$ 2,5 milhões) por ter feito uma festa de Natal durante a pandemia, mas teve que se desculpar depois que um vídeo vasou mostrando Felipe jogando futebol com amigos. Como um inquisidor, ficou conhecido pelo bordão “sem anistia”, que espalhava a quem ousava se opor ao seu novo líder. Pregou a censura pura e simples de “golpistas”, o boicote a quem não concordava com ele, apoiou com entusiasmo a onda de demissões da Jovem Pan.
Publicidade & lacração
A fortuna de Felipe Neto provavelmente mal será arranhada com o caso Bis. Mas, se continuar com essa fúria incontrolável, ele terá problemas com patrocinadores no futuro. Felipe Neto parece confundir o mundo real com um videogame onde inimigos surgem de todos os lados e precisam ser destruídos para que ele ganhe mais pontos.
Para a Mondelēz talvez fique uma lição. Numa época de extrema polarização política, qualquer passo em falso pode ser fatal. Pela sua atuação política, Felipe Neto terá milhões de seguidores, mas provavelmente um número igual de pessoas que não o suportam e que odiarão qualquer coisa ligada a ele. E, quando políticos do PT resolvem aderir à causa e se exibir com caixinhas de Bis, aí a imagem do produto fica completamente comprometida. A conta oficial do chocolate no X/Twitter não posta nada desde o dia 11 de outubro.
Unir publicidade com lacração geralmente dá errado. Cristyan Costa, repórter de Oeste, publicou no dia 9 de junho uma lista de campanhas publicitárias que resolveram aderir a causas esquerdistas e se deram mal. Foi o caso da varejista Target, que teve US$ 10 bilhões de prejuízo ao lançar “a coleção Pride, com roupas LGBT+ e ‘ocultistas’, com imagens satânicas, voltadas para o público infantil”. A Balenciaga fez algo parecido, com crianças “segurando ursos de pelúcia e apetrechos sadomasoquistas (coleiras, chaves, cadeados e algemas). Resultado: boicote, unidades da loja vandalizadas, objetos da Balenciaga sendo destruídos no YouTube. Ainda nos Estados Unidos, um país onde cerveja está ligada a masculinidade, a Anheuser-Busch resolveu lançar a Bud Light usando uma digital influencer trans. Prejuízo: US$ 5 bilhões”.
Bullying virtual a peso de ouro
O caso do chocolate Bis mostra um problema mais profundo. Quando um mero chocolate passa a ser considerado “de esquerda” (ou “de direita”), é um sinal de que o debate político atingiu novos níveis de pobreza no Brasil. O estado permanente de guerra ideológica em todos os níveis — até num chocolate — não pode gerar nada de construtivo. E influencers que espalham discurso de ira e ranger de dentes vão precisar repensar seus atos. A lógica do cancelamento está mostrando seu poder de autodestruição.
“O público começou a perceber a dinâmica do cancelamento”, escreveu a jornalista Madeleine Lacsko. “Esse tipo de ação energiza uma série de pessoas reais, com problemas emocionais, que se dedicam a ataques por pertencimento e sinalização de virtude. Durante muitos anos, isso rendeu muito dinheiro a muitos influencers. Diversos influencers que vivem desse bullying virtual são contratados a peso de ouro por grandes empresas para treinamentos de inclusão ou diversidade. Quando uma empresa se une a um cancelador, leva essa energia para dentro do negócio. As pessoas não caem mais na conversa nem se intimidam com o movimento em enxame dos influencers amigos e robôs. Chegou a hora de parar de premiar canceladores.”
“Tratar linchadores como libertadores é uma vergonha”, escreveu Guilherme Fiuza nesta edição de Oeste. “É vergonhoso demais tentar criar ídolos da ética entre figuras que vivem de apontar o dedo, pedir cabeças, inventar inimigos monstruosos, jogar a turba contra os seus marcados para morrer, reger asfixias, dedurar, difamar, coagir, linchar.”
Leia também “A cada vez mais longa (e saudável) estrada da vida”
Excelente reportagem parabéns.
Felizmente não invisto meu precioso tempo com as futilidades destes youtubers e outros gurus da Internet.
Tenho conta no Linkedin que se transforma em um Facebook a cada dia. Não tenho contas no X/Twitter, Instagram, etc. e não me sinto inferior por isso.
Essas postagens de bobagens destes influencers não acrescenta nada na minha vida.
Está cada dia mais complicado separar o joio do trigo.
Esse Felipe Neto é mais um produto ruim gerado pelos revolucionários de iPhone. E, Dagomir, você matou a charada quando descreveu o papel atual do CEO da Mondelez Brasil.
Bom dia ! Ótimo artigo do colunista. Aqui as matérias são carregadas de informações, que se percebe SEM tendência ideológica. Muito acertado. Parabéns!
comprando – digitei correndo
Não compro mais BIS e sou o consumidor que compraria muito. Não conprando mais, perdem o cliente. Merecido. Nâo se apoia apoiadores de criminosos.
A lei da física. Tudo o que vai, volta.. A cultura do cancelamento e polarização resumindo tudo a nós contra eles for criada pela esquerda para massacrar a direita ingênua. Agora, chegou a fase da esquerda sofrer com o seu próprio veneno. Não é possível diálogo e debate e voltar atrás se as pessoas que criaram o problema não se redimirem e mostrar humildade. Não é a direita ou os conservadores que precisam se preocupar com isso. Eles são as vítimas que cansaram de ser vítimas. É como o PT. Não existe diálogo com PT. PT deve acabar ou no máximo , começar novamente. O que existe não é aceitável. As empresas precisam sofrer as consequências de aceitar essas retóricas wokeness e politicamente corretas / hipócritas. Agora tem que brincar mesmo. Não adianta reclamar.
Bota Felipe Neto, e os senadores com muito bis nas mãos pra fazer propaganda na faixa de gaza
#bisnuncamais
pois é… estou com 70….cresci comendo Bis, pois era bom… mas perdi totalmente a paciencia com essas campanhas com “idolos de barro” da internet… muito mais proveitoso para campanha seria colocarem uma criança e seu avô juntos comendo o dito waffle…
“…depois que um vídeo vaSou …” Tenham dó!
Rapaz asqueroso, arrogante, faz mal aos jovens, agressivo um horror Não entendo como uma empresa contrata alguém com esse perfil para promover um produto.
Bem feito pra esse fdp Felipe neto