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Marcos Fava Neves, também conhecido como "Doutor Agro", é professor da USP, da FGV e da Harven | Foto: Divulgação
Edição 191

‘O agronegócio brasileiro tem salvado o mundo de uma catástrofe alimentar’

Conhecido como "Doutor Agro", Marcos Fava Neves é um acadêmico que conhece o agronegócio na teoria e na prática

Artur Piva
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Engenheiro agrônomo pela Universidade de São Paulo (USP), Marcos Fava Neves, 55 anos, coleciona passagens por grandes universidades mundo afora — tanto como aluno quanto como professor. Não por acaso, ele também é conhecido como “Doutor Agro”.

Especialista em agronegócio, Fava Neves é professor na USP, na Fundação Getulio Vargas e na Harven — faculdade da qual ele é um dos sócios-fundadores. De acordo com o Doutor Agro, essa instituição nasceu com a missão de se tornar uma referência mundial em conhecimento sobre agronegócio.

Morador de Ribeirão Preto, cidade do interior de São Paulo conhecida como uma das capitais do agronegócio nacional, ele conhece como poucos os desafios e a importância estratégica da produção rural do país. “Não se pode atacar a geração de caixa”, disse. E a geração de caixa do Brasil é o agro.”

Marcos Fava Neves, também conhecido como “Doutor Agro” | Foto: FEA-RP/USP

Oeste entrevistou Marcos Fava Neves em Ribeirão Preto. A seguir, os principais trechos.

No último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), duas questões criticaram o agronegócio brasileiro. Qual é seu parecer sobre elas?

Elas mostram o grande desconhecimento de parte dos professores do ensino médio sobre o setor. A ocupação de uma parte do Cerrado pelo agro nas últimas décadas trouxe grande desenvolvimento econômico e social para a região. A economia de Mato Grosso, por exemplo, cresce a taxas chinesas, e a disparidade social está diminuindo fortemente, graças a esse avanço. A soja ocupa 11% da área do Cerrado, e 89% dessas terras não são ocupadas por essa cultura. Portanto, é errado dizer que famílias foram expropriadas e expulsas dessa região devido à soja e à pecuária. Essa parte do Brasil cresceu demográfica e socialmente nas últimas décadas. Além disso, a soja e a pecuária não podem ser classificadas como produções destinadas basicamente ao mercado internacional. Da produção de carne bovina do Brasil, cerca de 75% têm como destino o mercado interno; e, da soja, por volta de 40% da produção fica no Brasil.

ESG, sigla que resume cuidados ambientais, sociais e de governança, é uma oportunidade ou um problema para o agronegócio brasileiro?

Começou como um problema, mas se transformou em oportunidade. A implantação requer melhorar em todas as áreas: social, ambiental e de governança. Ou seja: primeiro, é preciso investir, e então é custo. Mas é uma grande oportunidade.

Foto: Shutterstock
De modo geral, na questão ambiental o Brasil já tem alguns avanços quando o assunto é essa sigla?

Sem dúvida alguma. É a agricultura mais ambiental do mundo. Dois terços das áreas do país estão preservadas, a participação dos biocombustíveis na matriz energética é a maior do planeta, o uso de energia renovável está em cerca de 45%. Observando eletricidade, Código Florestal e as práticas da agricultura sustentável, há um conjunto muito bom de indicadores na área ambiental, que é o “E” do ESG. O Brasil, como consequência dessas escolhas do passado, tem uma das sociedades menos poluentes, em termos de emissão de carbono per capita. O ponto negativo, porém, ainda é o desmatamento ilegal — mas, com o combate a ele, o país está se tornando uma das nações mais verdes do planeta. 

Como está o agromegócio brasileiro do ponto de vista social?

Existe uma legislação do lado social extremamente restritiva, forte. As regras foram consolidadas ao longo dos anos. Elas determinam uma série de benefícios. Além disso, metade dos produtos do agronegócio brasileiro passa pelo cooperativismo — que é o “S” do ESG na veia. Também existem outras questões que ganharam bastante relevância nos últimos anos, como a prática de treinamentos e as políticas de participação em resultados.

A governança é algo bem difundido nos grandes grupos do agro?

Sim. Eles têm conselhos, código de ética e outras ferramentas. Os sites das empresas mostram como elas evoluíram nessa questão de governança e transparência. As companhias com capital aberto em bolsas de valores, então, precisam ter todos os dados financeiros auditados e publicados. Há compliance — um conjunto de regras determinando o que e como fazer. Esse grande avanço pegou primeiro as empresas expostas ao mercado internacional e foi se estendendo às companhias menores. A questão ganhou uma pressão muito grande por causa dos compradores. Ninguém quer depender de fornecedores que criem problemas em questões de comportamento ético etc. Existe uma avenida de desenvolvimento pegando as empresas em ondas com grande velocidade.

Por que ainda há muita propaganda negativa sobre o agronegócio brasileiro? O problema do “pum da vaca” existe?

Muitos influenciadores embarcam em questões que fazem um estrago grande. Na pecuária há muita ciência. O “pum” do animal é uma emissão. O carro que andou 1 quilômetro com etanol também emite. Contudo, existe o ciclo da cultura e da criação. Para o animal crescer, houve a pastagem, que extraiu carbono do ambiente, e a cana-de-açúcar também faz isso. Esses balanços têm de ser considerados antes de tecer a opinião, e é preciso conhecer ciência e matemática.

Vacas no pasto aberto | Foto: Shutterstock
Além do Enem, o senhor destacaria algum caso recente de preconceito contra o agro?

Há pouco tempo, um ator global caiu numa gelada falando contra o setor de leite. O artista cometeu o equívoco de generalizar algumas práticas abomináveis realizadas por uma extrema minoria. Isso atentou contra o emprego e a geração de renda. Na verdade, a produção leiteira do Brasil é bem regulamentada e composta majoritariamente de empresas seríssimas, preocupadas com o bem-estar animal. Agora as associações da indústria estão processando o ator com propriedade, e esse caso tem se tornado emblemático. É preciso processar quem comete equívocos.

‘Nem a China pode abrir mão do Brasil, nem o Brasil pode abrir mão da China. É uma dependência bilateral. Costumo brincar que, se os chineses não comprarem a nossa soja, teremos que fazer até piso com ela.’

O homem comum sabe como funciona a produção no campo?

O conhecimento sobre o setor está se espalhando nos últimos anos. O advento das mídias sociais permitiu que a população urbana passasse a acompanhar o dia a dia de pessoas curiosas e engraçadas em uma fazenda. Existem produtores rurais hoje que têm centenas de milhares de seguidores. Contudo, ainda há muita oportunidade para falar com o público das cidades explicando como as coisas são feitas e as dificuldades de produzir. Muitas vezes o consumidor acha que o leite veio da padaria ou do supermercado, sem saber o que existe por trás da produção. A agricultura é uma fábrica a céu aberto, e suas dores precisam chegar mais à população.

Qual é a importância do agronegócio brasileiro para o resto da humanidade?

O agronegócio brasileiro tem salvado o mundo de uma catástrofe alimentar. O planeta tem de agradecer aos produtores rurais do Brasil. Graças a eles, houve o aumento da safra de grãos em 70 milhões de toneladas, quando comparada à colheita global de quatro anos atrás. A pandemia criou a ruptura de muitas cadeias de suprimento, e o Brasil conseguiu suportar e passar por cima disso abastecendo. O papel do país hoje é fundamental. Nos últimos 30 anos, passamos de importador de comida para líder em vários setores agropecuários. E o agronegócio do país ainda tem muito para crescer com sustentabilidade garantida.

Frutas e legumes | Foto: Nathan Aparise/Shutterstock
O que o mundo pode aprender com o Brasil em matéria de agronegócio?

Pode aprender muito. O Brasil hoje é imbatível em segmentos como soja, carne de frango, carne bovina, suco de laranja etc. No milho, estamos chegando perto dos campeões, que são os norte-americanos. Em muitos setores, a referência é o Brasil.

Defensivo químico ou biológico? Qual é o melhor caminho?

Os dois são complementares. Existem produtos biológicos que potencializam a absorção dos defensivos. Então não é “ou”, é “e”. E, quanto mais uso de biológicos, melhor, já que são renováveis, diminuindo o uso dos químicos. Porém, não tem como virar tudo orgânico e alimentar toda a população. As pragas estão aí. Na agricultura tropical, onde se fazem duas safras, há umidade e calor. Desse modo, não dá para abrir mão dos defensivos.

O Brasil fornece cerca de 60% de toda a soja que a China importa. Os chineses podem abrir mão do agronegócio brasileiro?

Nem a China pode abrir mão do Brasil, nem o Brasil pode abrir mão da China. É uma dependência bilateral. Costumo brincar que, se os chineses não comprarem a nossa soja, teremos que fazer até piso com ela. E eles precisam da nossa soja como alimento. Não devemos deixar a China de lado, e sim conquistar mais participação em outros mercados para reduzir a dependência das nossas exportações.

Bandeiras da China e do Brasil cobertas de grãos de soja | Foto: J.J. Gouin/Shutterstock
A produção de soja brasileira será recorde por mais um ano. Existe um limite para isso?

A produção nacional seguirá crescendo. O país é imbatível em custos para essa cultura, mesmo com a logística que tende a melhorar. Há também o cultivo em consórcio com milho, trigo e outros grãos como segunda safra na mesma área. Além disso, os concorrentes do Brasil no plantio da soja não têm planos arrojados de crescimento. E a demanda para esse grão ainda tende a aumentar. Os Estados Unidos, responsáveis pela segunda maior safra do planeta, têm um plano arrojado para converter soja em biocombustíveis, reduzindo a oferta do produto in natura no mercado externo.

O agronegócio pode ser uma solução para gerar energia barata e promover a reindustrialização do Brasil?

Já é. A energia feita com o bagaço da cana-de-açúcar é um exemplo. Visitei granjas no interior de Mato Grosso onde o dejeto do porco é tratado para fazer biogás e gerar toda a eletricidade para abastecer o próprio local. O que sobra ainda vira fertilizante para ser aplicado mecanicamente — com a mesma fonte energética — nas plantações.

A derrubada do marco temporal das terras indígenas pelo Supremo Tribunal Federal criou insegurança para o setor?

Faltou uma visão mais econômica e de sustentabilidade. Essa decisão, apesar de tomada pela ampla maioria dos ministros, é inconsequente e irresponsável, porque não existe caixa para pagar por ela. A miséria e a pobreza em que parte dos indígenas vive não se devem à escassez de área. De todo o território brasileiro, 14% estão demarcados para eles — são 118 milhões de hectares. O agronegócio brasileiro produz 322 milhões de toneladas de grãos utilizando uma área equivalente a menos da metade disso. A queda do marco temporal joga todo o Brasil em insegurança jurídica. Uma empresa pode decidir, por exemplo, não investir em uma concessão de rodovia com receio de que, cinco ou dez anos depois, um laudo antropológico afirme que em 1930 viviam brasileiros de origem indígena naquele local. A medida também coloca em risco milhões de produtores rurais de todos os portes. A lista inclui pequenas propriedades, como algumas de Santa Catarina, e pode jogar as famílias que vivem nelas na miséria.

Povos indígenas de diversas etnias | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.

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3 comentários
  1. Julio José Pinto Eira Velha
    Julio José Pinto Eira Velha

    O stf precisa de pessoas de visão como o entrevistado, mas só possui míopes.

  2. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente entrevista. Bastante esclarecedora. Parabéns.

  3. VERLAINE Barros Vieira
    VERLAINE Barros Vieira

    O mundo precisa do nosso agro. O Brasil pode ser primeiro mundo só pelo agro.

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