Desde o último domingo, é possível encontrar uma dezena de teses na imprensa mundial sobre o que levou mais de 14 milhões de argentinos a eleger uma figura tão excêntrica e diferente de qualquer outro presidente na sua história como Javier Milei. Uma delas é absolutamente certeira: os argentinos entenderam que, desta vez, o país está falido.
Aos 53 anos, o “libertário” — como ele mesmo se define — e antissistema Javier Milei não será o primeiro presidente eleito alheio ao quase inevitável “peronismo” (leia mais abaixo), que perdura desde a década de 1940 no vizinho sul-americano. Tampouco será inédito um presidente assumir a cadeira diante de um cenário de desastre fiscal. A vitória, contudo, mostra que até a camada dependente de programas sociais — metade da população — entendeu que o país acorda a cada dia mais pobre.
A alternativa a Milei no segundo turno era Sergio Massa, atual ministro da Economia, representante do “kirchnerismo” — que começou com Néstor, morto em 2010, e passou pelos herdeiros do espólio político: sua mulher, Cristina, e o atual presidente, Alberto Fernández. O “kirchnerismo” é a vertente ideologicamente alinhada com a esquerda dentro do enorme espectro do peronismo.
O peronismo pode ser resumido como um movimento — justicialista — que se aproximou do sindicalismo e se tornou um regime. As duas marcas intocadas são o populismo exacerbado e o autoritarismo. Tanto que uma das frases mais célebres de Juan Domingo Perón é: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, nem a justiça” — adaptação de “Aos amigos, tudo; aos inimigos, basta a lei”, de Maquiavel. Perón governou a Argentina duas vezes e morreu na cadeira de presidente. O peronismo perdura como um partido fragmentado em grupos, mas muito forte até hoje — só perdeu uma eleição desde 2003. Mas nunca foi exatamente uma agremiação de esquerda nem de direita. Isso só mudou justamente com a guinada do “kirchnerismo”.
Ao contrário do que acontece no Brasil, não houve interferência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para desequilibrar a disputa. A contagem dos votos impressos foi ágil e segura
‘Kirchnerismo’
Os governos de Néstor Kirchner e seus sucessores se aproximaram dos países que integram o Foro de São Paulo. O principal aliado sempre foi o Brasil de Lula e de Dilma Rousseff. Não à toa, Lula lamentou a morte de Kirchner, o “Pinguino” (“pinguim”), como um dos grandes amigos no continente, e prometeu continuar ajudando — especialmente com os cofres de bancos e empresas estatais — sua mulher, Cristina.
O interesse do petista sempre foi ter maioria no Mercosul, alimentando a ideia de buscar acordos internacionais em bloco com a Europa e depois com a China. Isso explica também por que Lula tentou se meter como nunca numa eleição estrangeira. O petista enviou sua equipe de marqueteiros e injetou dinheiro para tentar eleger Sergio Massa. Num misto de megalomania e obsessão com Jair Bolsonaro, Lula não só foi pessoalmente à Argentina como achou que associar Milei ao rival brasileiro fosse resultar em votos. O PT naufragou junto com o peronismo.
Na campanha, aliás, os emissários de Lula reciclaram uma tática antiga eleitoral do PT: o discurso do medo. Em várias frentes, o modelo foi similar à campanha de 2014, sugerindo que o opositor acabaria com programas sociais e com empregos públicos. Milei concentrou sua força nas redes sociais e em eventos a céu aberto. Ao contrário do que acontece no Brasil, não houve interferência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para desequilibrar a disputa. A contagem dos votos impressos foi ágil e segura.
Milei respondeu à ofensiva de Lula dizendo o que pensava sobre ele em entrevista a um canal de TV peruano: “Um comunista, corrupto, que esteve preso”. E avisou que, se vencesse, não se aproximaria do brasileiro. Eleito, convidou Bolsonaro para sua posse no próximo mês.
Lula certamente não incluirá mais Buenos Aires no calendário de viagens que faz pelo mundo com a primeira-dama, Janja da Silva. A despeito do poderio econômico brasileiro ante os vizinhos do Mercosul — Argentina, Uruguai e Paraguai —, vai ter que deixar de lado sua fixação em comandar o bloco. O Uruguai, aliás, se dependesse só do desejo do presidente Lacalle Pou, já estaria fora. Como o Chile mantém seus negócios de forma bilateral, resta a Lula buscar os amigos da Bolívia, Venezuela e Colômbia.
Outro entrave à vista, que ele mesmo criou, se chama banco do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Com o triunfo de Milei, a Argentina será admitida? Lula fez enorme esforço para incluir o vizinho no grupo. Os demais integrantes demonstraram resistência — afinal, se trata de aceitar um sócio falido —, mas a caneta da chefe do banco, Dilma Rousseff, prevaleceu.
O peso da economia
A Argentina é um raro caso de um país rico que empobreceu. Em 1895, chegou a registrar o maior Produto Interno Bruto (PIB) per capita do planeta. Nos anos 1920 e 1930, uma expressão usual entre os europeus que desembarcavam na América do Sul era dizer “riche comme un argentin“ (“rico como um argentino”), o que causava inveja em franceses, alemães e espanhóis.
A degeneração da economia passou por muitas fases desde então. Sofreu o impacto do regime populista de Perón, da distribuição desenfreada de subsídios às camadas mais pobres, do aumento do gasto público e do inchaço do Estado.
Na virada do século, a economia argentina ruiu depois de bons anos de uma estabilidade chamada “uno-uno“, ou Lei da Conversibilidade, que zerou a hiperinflação anual de 3.000%. A fórmula do então ministro da Economia, Domingos Cavallo, foi a paridade cambial “dólar-peso”. O país também avançou numa agenda de privatizações, ajustes tributários e abertura comercial. O então presidente, Carlos Menem, usufruiu da popularidade. Mas o pesadelo estava no horizonte.
O cenário externo não ajudou Menem com as crises em série na Ásia, Rússia, México e no Brasil. A moeda nacional perdeu força ante o dólar — e a dívida externa crescente era calculada na moeda americana. O déficit disparou. As reservas cambiais acabaram logo. Houve fuga de capitais. O governo, então chefiado por Fernando de la Rúa, impôs o “corralito“, o confisco das poupanças para tentar reter dinheiro no país.
O resultado foi o caos social, com uma onda de protestos e saques. O comércio fechou as portas. Numa cena inesquecível para os argentinos, Fernando de la Rúa teve de deixar a Casa Rosada, cercada por manifestantes batendo panelas, de helicóptero. A Argentina, então, teve cinco presidentes em 12 dias.
Em 2003, começou a era Kirchner. Foi um período de 12 anos, interrompido por Mauricio Macri em 2015, e retomado depois por Alberto Fernández e Cristina Kirchner — que só não encabeça mais chapas porque está às voltas com processos por corrupção. O período tem como marcas o aumento desenfreado dos gastos públicos e o clientelismo.
Como num tango, o drama da hiperinflação retornou — vai chegar a 180% —, assim como a desvalorização da moeda, a dívida externa, a falta de crédito e de reservas. Sergio Massa só concorreu neste ano porque Alberto Fernández abriu mão de tentar a reeleição — algo inédito na história. Segundo institutos de pesquisa, seu nome era rejeitado por quase 80% dos eleitores. O levantamento mais recente aponta que quase metade da população vive em condições de pobreza. O PIB encolheu 3%.
É impossível afirmar que a era do peronismo chegou ao fim. Mas o “kirchnerismo”, ou “peronismo à brasileira”, provavelmente, sim.
Leia também “Peronismo à brasileira”
Parabéns pelo belo texto! Uma aula de história somado aos acontecimentos contemporâneos!
Por que não descentralizar o TSE e deixar a contagem de votos a cargo dos estados? A urna em papel nas eleições da Argentina tem muito a nos ensinar.
Silvio, preciso nas suas colocações.
O excelente e esclarecedor texto pode ser enriquecido com a informação de que a Argentina possui desde 1927 – estatal que nada produz – indústria aeronáutica – FAdeA – com fábrica em Córdoba. Em 1995 foi concedida para a Lockheed, mas em 2009 voltou ao colo do Estado pelas mãos de Cristina Kirchner.
O Brasil só não se transformou em uma Argentina porque ainda tem um Banco Central independente que é satanizado por Lula e sua corja.
O modus operandi do Lula 3.0 é o mesmo que levou a Argentina a insolvência.
Vamos fechar 2023 com um inchaço monstruoso da máquina pública e gastança desenfreada.
O Zaqueu deste desgoverno (Fernando Haddad) não consegue mais extrair recursos da produção de bálsamo do país, para fazer frente a gastança de seu chefe.
Parabéns ao povo e às instituições argentinas
Silvio parabéns pelo texto. Sempre preciso com muita clareza.
Muito obrigado! Abs
“Um país rico que quebrou”! Será que precisamos nos olhar ou é só uma constatação inequívoca que se a condução de um país não for séria, eficiente, capaz e responsável, a coisa sai do controle?!
Pois bem, a Argentina já foi a rainha do mundo. Tanto que o Brasil era só um vizinho que tinha a sua capital em “Buenos Aires”! Isso evidentemente para os turistas europeus que eram frequentes lá.
E hoje a situação mudou, será? Ou então até quando? A continuar do jeito que se demonstrou, não por muito tempo estaremos na mesma situação dos vizinhos, pobres, indigentes, sem nada.
Parabéns SÍLVIO NAVARRO. Você vale por uma redação inteira da concorrência, obrigado, show de reportagem, com informação para os mais jovens e lembrança para nós, coroas!
Obrigado, Célio! Um grande abraço.
Parabéns pelo texto! Muita história relembrada com pertinência! Obrigada por compartilhar sua informação!Maria Lúcia de Sene
Obrigado, Maria Lúcia! Um abraço.