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Ato na Avenida Paulista contra as decisões autoritárias dos ministros do STF e pela morte de Cleriston Pereira da Cunha, preso na Papuda após o dia 8 de janeiro de 2023 | Foto: Aloisio Mauricio/Estadão Conteúdo
Edição 193

O espetáculo totalitário

Ao premiar quem deveria responder pela morte de um custodiado do Estado, a ditadura lulopetista não apenas não deu a mínima para a vida perdida como sapateou em cima do caixão do morto

Flávio Gordon
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Ao mesmo tempo que a família velava Cleriston Pereira da Cunha, morto na Papuda no último dia 20, o descondenado-em-chefe homenageava Alexandre de Moraes com a medalha da Ordem do Rio Branco, por suas pretensas “virtudes cívicas” e “serviços meritórios” prestados. Enquanto a viúva descrevia o seu “grito por socorro”, inaudível a ouvidos olímpicos, a Nomenklatura neorrepublicana congraçava-se e entregava-se a espetaculosos rituais de autolisonja e interbajulação, tão típicos de regimes totalitários. Em suma, ao premiar justo quem deveria responder pela morte de um custodiado do Estado, a ditadura lulopetista não apenas não deu a mínima para a vida perdida no cárcere político, como foi além, sapateando em cima do caixão do morto e cuspindo no rosto de seus parentes enlutados.

Lula condecora Alexandre de Moraes com a medalha da Ordem do Rio Branco | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Mas a ousadia dos tiranos não parou por aí. No domingo passado (27), como se sabe, milhares de brasileiros foram à Avenida Paulista protestar contra a morte de Cleriston, denunciar a ditadura socialista ora em curso, e exigir o impeachment de Alexandre de Moraes. E qual foi a resposta do regime ao clamor popular pela redemocratização no país? A indecorosa nomeação de Flávio Dino, ministro da Justiça do regime e corresponsável, junto com Moraes, pelo uso do aparato repressivo do Estado contra opositores políticos, para a Suprema Corte do país. Uma semana após a morte de Cleriston, os donos do poder voltavam a exibir, despudorados, o seu escárnio e o seu desprezo pelos anseios por justiça de parte considerável da sociedade brasileira, já farta de um Judiciário partidarizado e irrefreado pelos limites constitucionais. 

“Para Hitler e Stalin, seu pecado mortal seria fracassar em proteger a raça ou o Estado socialista da ameaça de destruição. Essa inversão moral tornou possível os regimes mais assassinos do século.”
(Richard Overy)

O que dá tamanha segurança aos líderes do regime — que reúne, num estranho consórcio obviamente alheio aos parâmetros básicos de uma democracia, membros do Judiciário e do Executivo —, a ponto de um dos seus integrantes, o ministro Gilmar Mendes, não ter mais qualquer pudor em relembrar o papel do Judiciário partidarizado na retomada do poder pelo lulopetismo, ao cobrar de seus aliados uma posição quanto à “traição rasteira” (nas palavras da porta-voz Eliane Cantanhêde) de Jaques Wagner, líder do governo no Senado, que votou favoravelmente à PEC que limita poderes do Judiciário? Afora o hoje conhecido suporte da cúpula militar à campanha de lawfare contra Jair Bolsonaro, só consigo pensar numa resposta: o sucesso, no Brasil recente, do velho truque totalitário que consiste em justificar quaisquer ações do regime, ainda que “inovadoras” e à margem da lei, sob o pretexto de proteger a democracia. Não foram poucos os ditadores ao longo da história que agiram em nome de uma suposta “democracia defensiva”.

Lembro-me, por exemplo, do que escreveu o historiador Richard Overy em The Dictators — Hitler’s Germany and Stalin’s Russia: “Os funcionários da NKVD soviética eram agraciados com a medalha de Herói da URSS pelos infindáveis sofrimentos infligidos em suas vítimas. O universo moral da ditadura tornou os crimes do Estado explicáveis não como crimes, mas como precauções necessárias à prevenção de uma injustiça maior. De fato, para Hitler e Stalin, seu pecado mortal seria fracassar em proteger a raça ou o Estado socialista da ameaça de destruição. Essa inversão moral tornou possível os regimes mais assassinos do século”.

Já em Backing Hitler: Consent and Coercion in Nazi Germany, Robert Gellately alude às “inovações” que, em fevereiro de 1933, os nazistas julgaram por bem implementar para preservar o Estado alemão após o Incêndio do Reichstag (o 8 de janeiro da época): “O governo insistia em dizer que reagia contra uma ameaça revolucionária, a qual requeria medidas emergenciais de curto prazo. Assegurava constantemente o público de que, uma vez passada a crise, o império da lei e as liberdades seriam restituídos na Alemanha. Restava óbvio, porém, ao mesmo tempo que essas vagas promessas eram feitas, que as inovações introduzidas seriam características permanentes da ditadura de Hitler”. 

Capa do Livro Backing Hitler, de Robert Gellately | Foto: Reprodução

Com efeito, “inovações” de tipo ditatorial nunca se limitam à pretensa situação emergencial, “excepcionalíssima” e “defensiva” que as teria motivado, e que tudo justifica. Elas sempre acabam virando permanentes. E, por óbvio, precisam ser justificadas por mais e mais mentiras, e mais subversões revolucionárias da linguagem comum, por meio das quais palavras como “democracia”, “justiça” e “direito” já não guardam qualquer correspondência com seus significados tradicionais, passando a significar aquilo que a Nomenklatura quer que signifiquem. Entra-se no terreno do puro arbítrio linguístico, no reino de Humpty Dumpty. Como diz o famoso personagem de Lewis Carroll em Alice Através do Espelho: “Quando uso uma palavra, ela significa o que eu quiser que ela signifique. Nem mais nem menos”. Alice ainda tenta argumentar: “A questão é se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes”. Ao que responde o “Cabeça de Ovo”: “A questão é quem manda”.

Mas, além da farsa vocabular, há também o que chamei de rituais de autolisonja e interbajulação, em que os companheiros premiam-se entre si para provar, para si próprios, quão heroicos eles são e quão vultosos são os seus feitos. Trata-se, obviamente, de premiações postiças, pois, independentemente da presença de algum mérito real dos laureados (sejam eles magistrados, jornalistas, intelectuais ou artistas), o que se celebra é apenas a sua utilidade para a manutenção e o acréscimo de poder nas mãos do regime. 

Em Viagens aos Confins do Comunismo, o psiquiatra Theodore Dalrymple descreve bem o fetiche por prêmios, homenagens, comendas e títulos por parte dos ditadores da antiga Cortina de Ferro, mecanismos de criação de onipresença. Sobre a Albânia, por exemplo, Dalrymple descreve o desagradável sentimento dessa onipresença em relação ao ditador Enver Hoxha, líder do Partido Trabalhista, que governou o país por mais de quatro décadas. O hotel em que o psiquiatra se hospedou em Tirana, capital da Albânia, ficava na Praça Skanderbeg, nome de um herói nacional albanês. Mas a enorme estátua erguida no centro da praça não era de Skanderbeg, mas de Hoxha, “um tiozão roliço e metálico com seu pesado sobretudo de bronze”. Percorrendo o Boulevard dos Mártires, chegava-se ao prédio da Universidade Enver Hoxha, à esquerda do qual estava o estádio de futebol Enver Hoxha. No mesmo Boulevard, havia também o Museu Enver Hoxha, que abrigava a Biblioteca Enver Hoxha, cujo acervo era quase todo composto de encadernações variadas dos 60 volumes das Obras Completas de Enver Hoxha. 

O mesmo se passava na Romênia, onde Nicolae Ceaușescu cansou de premiar a sua mulher com títulos honorários por méritos científicos inexistentes. Referindo-se particularmente às campanhas de autoexaltação promovidas pela ditadura de Ceaușescu, Dalrymple menciona a desfaçatez do regime em autoproclamar-se parteiro de uma “era da luz” no instante mesmo em que, graças ao colapso econômico, a luz era racionada em todo o país. Imagino que, em face desse teatro, a população romena da época deveria sentir algo não muito distante do que, hoje, sente o brasileiro diante de uma declaração como esta:

“O Presidente Lula indicou dois grandes juristas e competentes homens públicos para o Supremo Tribunal Federal e para a Procuradoria-Geral da República. Flávio Dino e Paulo Gonet são escolhas sérias e republicanas e, uma vez aprovados pelo Senado Federal, contribuirão para o fortalecimento de nosso estado democrático de direito.”

Ilustração: Shutterstock

Qual era o referente do signo “uma era de luz” na Romênia de Ceaușescu? Justamente, a falta de luz. E qual é o significado de “estado democrático de direito” no Brasil de nossos dias? Concluímos lembrando mais uma vez de Humpty Dumpty, o “Cabeça de Ovo”: “Quando uso uma palavra, ela significa o que eu quiser que ela signifique”.

Leia também “A malignidade do wokeísmo”

11 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Estamos em um regime nazifascistacomunista

  2. Sérgio Augusto Buchweitz
    Sérgio Augusto Buchweitz

    Flávio Gordon parabéns pelo excelente trabalho. Minha modesta contribuição é com um comentário. O STF está apoiando suas ações contra os patriotas que foram presos no dia 08 de janeiro em uma teoria jurídica chamada “direito penal do inimigo”. Sugiro você dar uma olhada nisso

  3. Odilon Soares Teixeira da Silveira
    Odilon Soares Teixeira da Silveira

    Excelente artigo!!!!!!!!! E muuuito informativo

  4. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Realmente, tiranos tem fascínio por condecorações e coisas do tipo. Auto-premiação.

  5. Angela Alves
    Angela Alves

    Excelente artigo!

  6. Fernando B. Monte-Serrat
    Fernando B. Monte-Serrat

    Excelente artigo. Parabéns!

  7. Bruno Araujo Barbaresco
    Bruno Araujo Barbaresco

    Artigo maravilhoso. Parabéns.

    1. MNJM
      MNJM

      Show Flávio, espero q os Senadores pelo menos uma vez tenham responsabilidade e lucidez NÃO DINO.

  8. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Ótimo artigo Flávio Gordon .

  9. Paulo Roberto de Souza Freitas
    Paulo Roberto de Souza Freitas

    Fantástico, estamos no limiar de uma guinada que poderá custar muito caro ao povo brasileiro.

    1. Zulene Reis
      Zulene Reis

      Sempre perfeito, Flávio Gordon!

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