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Foto: Colagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 193

Que vença o pior

Parece até que a conjuntura brasileira e mundial descarregou sua eletricidade bizarra nos estádios

Guilherme Fiuza
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O futebol está na boca do povo — inclusive do povo que não é de futebol. A temporada 2023 resolveu imitar a vida — ou seja, uma coisa muito louca — e dinamitou todas as previsibilidades. 

Parece até que a conjuntura brasileira e mundial descarregou sua eletricidade bizarra nos estádios. O futebol é emocionante justamente por ser uma metáfora simplificada da saga humana (uma bola batendo na rede pode representar a glória eterna ou a definitiva catástrofe). Mas este ano os deuses dos gramados capricharam no teor dramático. 

Um time de jogadores desconhecidos, que tinha voltado à primeira divisão apenas um ano antes, disparou a ganhar de todo mundo como jamais se vira em qualquer edição do Campeonato Brasileiro. Com um futebol de baixo orçamento e alto nível, o Botafogo massacrou seus adversários e construiu a liderança mais exuberante da história — chegando a se distanciar 15 pontos do segundo colocado na competição. Uma enormidade. 

Aí começam os flagrantes antropológicos. Uma das grandes obsessões do ser humano é tentar domar o futuro. Como ele não pode assumir isso, que não fica nem bem, o disfarce é “analisar” o presente com uma tal precisão que lhe permita “projetar” o que acontecerá adiante — um jeito dissimulado de bancar o adivinhão. 

Pois então choveram “analistas” afirmando que o Botafogo já era o campeão brasileiro na metade da competição. Ou dizendo isso de forma menos peremptória, mas caindo na mesma tentação de cavalgar uma lógica inexistente — e indicando, no final das contas, que o futuro já estava resolvido e liquidado. 

Foto: Shutterstock

Aconteceu o improvável, e o impressionante Botafogo de 2023 se tornou impressionante com sinal trocado. Desandou a perder e fez uma das piores campanhas do segundo turno da competição. Aí sobreveio o flagrante mais pedagógico das pretensões sobre-humanas. Os engenheiros faraônicos começaram a querer retocar às pressas os seus edifícios, usinas e pontes de concreto como se eles fossem arquivos digitais. Sai todo mundo rapidinho desse arranha-céu que ele na verdade é uma praça — só preciso dar uma ligeira corrigida nas linhas mestras!

O mais apaixonante desse rebolado foi a tarefa de tentar encontrar o novo campeão pré-datado, já que a liderança folgada dos botafoguenses tinha virado milimétrica — e era claro que os profetas (ou melhor, os analistas de tendências) precisavam se desfazer do futuro prometido. Para não quebrar a cara — ou, mais precisamente, para consertar a cara que já tinham quebrado —, eles precisavam anunciar um futuro novo. 

O novo futuro era o Palmeiras. Numa virada épica no fim do jogo, o time paulista derrotou o Botafogo no Engenhão por 4 a 3 e realojou as certezas: o final feliz era verde. Duas semanas depois, o “novo campeão” levou uma surra de 3 a 0 do Flamengo, que não estava em nenhuma profecia. Após uma chuva de pigarros e coçadas de cabeça, surgiu um novíssimo futuro: o Grêmio, que vinha comendo pelas beiradas e aplicou outra virada histórica sobre o Botafogo. 

Mas aí o incrível Grêmio, com seu artilheiro internacional Luis Suárez (que era agora o óbvio sinal do final feliz), apanha em casa do desesperado Corinthians. Silêncio no Olimpo. Precisamos imediatamente de um novo futuro. 

Não dava para reconsiderar o Botafogo? Claro que dava, mas ninguém queria. Afinal, estavam todos já muito bem agarrados à nova tese de que “já era”, não há mais “clima”, “confiança”, “estrutura emocional” etc. etc. para o êxito daquele que nós anunciamos como implacável e agora dizemos que é o exemplo vivo e acabado do fracasso. Só que no futebol, que não cabe nas certezas filosóficas de ocasião, a coisa é um pouco diferente. 

Foto: Roman Samborskyi/Shutterstock

E o Botafogo, apesar de realmente inferior ao que era antes, ainda deixaria de ganhar algumas vezes por caprichos do destino, por um triz mesmo — nada explicável por essa suposta depressão profunda, incapacidade fatal de prevalecer sobre os adversários ou um desses diagnósticos terminativos que os seres humanos gostam de disparar em bando, achando que domesticaram a verdade. 

Aí o futuro passou a ser o Bragantino. Bragantino? Sim! Descobrimos na tabela que é o que tem a situação mais sólida para, combinando sua pontuação elevada com a juventude dos seus jogadores, nos oferecer enfim a certeza que tanto queremos. Por uma coincidência atroz, porém, bem nessa hora o incrível Bragantino desanda a perder — e por muito pouco não perde em casa também para o “morto-vivo” Botafogo, o que obrigaria os profetas a nascerem de novo para voltar a profetizar. 

Relaxem e aproveitem o Brasileirão mais louco e emocionante da história

Um dos que bateram o ex-futuro campeão Bragantino foi o Flamengo — para o qual as barbas dos profetas estavam de molho. O rubro-negro já tinha sido uma das promessas de futuro alternativo ao alvinegro, mas aí… adivinha: levou um sopapo do Santos, que lutava contra o rebaixamento. Os profetas assoviaram, disseram que não era com eles e mandaram olhar para outro lado. Mas veio a vitória do Flamengo sobre o Bragantino, e os oráculos bradaram: é ele!

Ou será o Palmeiras? Ou será… Espera! Olha lá quem vem chegando! É o Atlético Mineiro! Dando de 3 no festejado Flamengo em pleno Maracanã. Será o Atlético Mineiro? Ou será que é o… 

Calma. Olha quem está voltando a ganhar! O fracassado, o abandonado, o proibido… Botafogo. Ele mesmo! Ultrapassando num estalar de dedos quase todos os novos donos do futuro, com um gol nos acréscimos. Mas… de novo o sobrenatural arranca-lhe a vitória nos acréscimos dos acréscimos. E os arautos do impossível não explicam, mas se satisfazem com a confirmação mágica da sua tese indigente. 

Pobres profetas, visionários, filósofos, engenheiros e oráculos. Vamos tentar dar-lhes um pouco de paz com um segredinho ao pé do ouvido: nenhum time do Campeonato Brasileiro 2023 é confiável! Relaxem e aproveitem o Brasileirão mais louco e emocionante da história. 

Foto: Shutterstock

Assim como na vida, as sentenças precoces e as certezas de pé quebrado estão em alta. Experimentem viver sem elas, mesmo que isso lhes custe alguns likes. O vencedor leva tudo.

Leia também “O manual do herói moderno”

11 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Fracasso em todos os campos

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Foi um golpe duro para o botafoguense.

  3. Manoel F A Ferreira
    Manoel F A Ferreira

    Os times deixam de lado o BR priorizando outras competições. Daí a bizarrice de um Botafogo voando baixo. Por vias tortas, o natural apareceu na última rodada. Avante, Palestra!

  4. JHONATAN SURDINI
    JHONATAN SURDINI

    To cagando pra futebol! Acredito fielmente que temos muitas outras preocupações mais importantes que esta!

  5. WILSON JORGE LOPES
    WILSON JORGE LOPES

    Que beleza Fiuza.
    Sua crônica beirava erudição, mas antes chufardou os magnos comentaristas que, ao final, assemelham-se a “merchan” de jogadores.

  6. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Grande Fiuza .

  7. A-DDS
    A-DDS

    Impressionante notar como um brilhante JORNALISTA consegue num simples mas esplêndido artigo passar como um trator sobre BESTAS QUADRADAS como Mauro Cézar, Juca Kfouri, Casagrande, Milton Neves e tantos outros.
    Guilherme Fiuza, um comentarista político, dá aos enérgúmenos acima citados uma verdadeira aula sobre futebol.
    Parabéns, Fiuza.

  8. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    Grande Fiúza. Parabéns pela brilhante análise. O Futebol é sim a arte do imponderável! Não há certezas, pelo contrário.
    A magia, às vezes, dá lugar às loucuras. Como é que pode alguém num campeonato de regularidade abrir 15 pontos para o que vem atrás e ser ultrapassado, parar, deixar de pontuar?
    Isso só acontece no futebol, com os times de futebol. É, são muitas as variáveis. Por isso eu digo, nada de euforia, de já ganhou. O jogo é sim jogado e essa coisa matemática nem sempre se confirma.

  9. ROBERTO MIGUEL
    ROBERTO MIGUEL

    triste fim do Fiuza Quaresma.

  10. Benjamin Gonzalez Martin
    Benjamin Gonzalez Martin

    Perfeita analise, Eu como botafoguense raiz nunca me iludi. Sou do tempo de Marechel Hermes. Via o Botafogo já campeão em 71 disparado na frente e na ultima rodada o fluminense ganha um ponto no tapetão e vai pra final com O Botafogo precisando do empate. E nó último minuto do 0 x 0 e a torcida já comemorando o Ubirajara Mota e “charjeado” na área e a bola sobre pro atacante do fluminense, e perdemos. Portante eu só acredito depois do jogo terminado e ainda espero dia seguinte pra saber se não havia algum jogador irregular que possa anular o jogo.

  11. Mauro C F Balbino
    Mauro C F Balbino

    E dando aula ao mundo, uma nova escola tática de treino intenso, o campeão da América, o Fluminense Football Club. ST****

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