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Quando o Estado do Rio de Janeiro, dominado por bandidos, falha em sua função fundamental, a população assume as rédeas da própria segurança | Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock
Edição 194

Gotham City tupiniquim

Quando o Estado, dominado por bandidos, falha em sua função precípua, a população assume as rédeas da própria segurança

Rodrigo Constantino
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“Soco-inglês, roupa preta, lista de presença e escolta armada: ‘justiceiros’ criam grupos para ‘caçar’ ladrões em Copacabana.” Essa era a chamada do G1 nesta semana, com o seguinte subtítulo: “Em grupos de rede social, integrantes definem como adeptos devem se vestir, esconder tatuagens e levar ‘máscaras de covid’ para tapar rosto. Praticantes de jiu-jítsu também se mobilizaram.”

Quando o Estado, dominado por bandidos, falha em sua função precípua, a população assume as rédeas da própria segurança. Assim nascem as milícias, é verdade. Nada disso é desejável ou alvissareiro. A demanda por justiceiros, porém, surge do fracasso estatal. Afinal, o Estado é justamente o pacto social entre indivíduos para delegar a sua proteção contra terceiros. Mas e quando o próprio Estado só protege os marginais?

Ilustração: Shutterstock

“Estado de uma sociedade caracterizada pela desintegração das normas que regem a conduta dos homens e asseguram a ordem social.” Assim o dicionário define o termo “anomia”, cunhado pelo sociólogo Durkheim. É a palavra que melhor define o perigoso momento que vivemos atualmente. 

O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas de Berlim, escreveu em 1985 um livro chamado A Lei e a Ordem, que o Instituto Liberal traduziu, onde traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países desenvolvidos nessa época e a era que antecedeu o nazismo.

Para impedir a anomia, era necessário punir todo tipo de crime, para dar o recado, para mudar o mecanismo de incentivos perversos

Seu principal alerta era quanto ao caminho para a anomia, que costuma anteceder regimes totalitários. Afinal, os índices de criminalidade estavam em alta nesses países desenvolvidos, ameaçando a paz e a ordem dos cidadãos.

Dahrendorf estava preocupado com a incidência da impunidade, cuja consequência é a anomia, “quando um número elevado e crescente de violações de normas torna-se conhecido e é relatado, mas não é punido”. A anomia é, pois, “uma condição em que tanto a eficácia social como a moralidade cultural das normas tendem a zero”. Tudo passa a ser visto como permitido, já que nada é punido.

Quando atos criminosos são praticados à luz do dia, carros da polícia são incendiados, a população é refém dos marginais e ninguém é preso, ou, se é, logo acaba sendo solto, isso é um convite para novos e mais ousados atos criminosos.

Capa do livro A Lei e a Ordem, de Ralf Dahrendorf | Foto: Reprodução

Nova York já foi a capital do crime na década de 1970, e foi somente quando as autoridades compreenderam a teoria da “janela quebrada” que as coisas começaram a mudar. Haveria tolerância zero, mesmo com pequenos delitos, como grafiteiros no metrô. O respeito à lei e à ordem deveria ser pleno. Para impedir a anomia, era necessário punir todo tipo de crime, para dar o recado, para mudar o mecanismo de incentivos perversos. 

Gotham City, a famosa cidade de Batman, é claramente inspirada em Nova York em seus anos terríveis. “Nós não vamos chamá-la de Nova Iorque porque queremos que qualquer pessoa em qualquer cidade se identifique com ela”, explicou o escritor Bill Finger. A primeira menção de Gotham City numa história em quadrinhos da DC foi em 1940. Isso serve para lembrar que o caos nova-iorquino não foi novidade na década de 1970. Basta ver o filme Gangues de Nova York para deixar isso claro.

A boa notícia é que as coisas podem melhorar, se a polícia efetivamente cumprir sua tarefa, e o sistema judiciário for duro com bandidos. Quando o crime está totalmente entranhado nas instituições de Estado, porém, reverter o quadro sombrio é um desafio e tanto. O Rio, nossa Gotham City tupiniquim, já é praticamente um narcoestado. Não é que exista muito bandido na política; é que a política virou basicamente uma extensão da bandidagem! 

Thomas Hobbes, escrevendo seu Leviatã no século 17, alega que os seres humanos são egoístas por natureza, uma premissa realista e contrária ao romantismo de Rousseau e seu “bom selvagem”. Com essa natureza os homens tenderiam a guerrear entre si, todos contra todos (“bellum omnia omnes“). Assim, para não nos matarmos uns aos outros, será necessário um contrato social que estabeleça a paz, a qual levará os homens a abdicarem da guerra contra outros homens. Mas, egoístas que são, necessitam de um soberano (Leviatã) que puna aqueles que não obedecem ao contrato social. Nasce assim o Estado poderoso.

Capa do livro Leviatã, de Thomas Hobbes | Foto: Reprodução

Quem vigia o vigia? A pergunta, feita pelo poeta romano Juvenal (“Quis custodiet ipsos custodes?“), segue um tanto atual e sem resposta fácil. Para impedir que o próprio Estado se torne a maior ameaça aos indivíduos e suas propriedades e liberdades, cria-se uma série de mecanismos, como a democracia representativa, a Constituição, a divisão entre os Poderes, a descentralização pelo federalismo, os freios e contrapesos. Mas não há garantias. O Estado pode, ainda assim, ser tomado de assalto por um clã, uma tribo, um bando. E, se isso acontece, o resultado é o inferno para os “cidadãos”, tratados como escravos, súditos descartáveis ou vacas leiteiras que servem só para pagar impostos. 

Hobbes queria evitar, com seu Estado Leviatã, que a vida dos homens fosse solitária, pobre, sórdida, brutal e curta. Mas e quando com o próprio Estado a vida de uma maioria decente está exatamente assim? Ora, é aí que surge a demanda por revoluções, por justiceiros, por milícias. É necessário olhar para onde escorregamos, não onde caímos. Ou o Estado volta a servir a população com sua função primordial, ou a população vai buscar meios alternativos. Ninguém suporta o caos da anomia por muito tempo.

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13 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    ”Não é que exista muito bandido na política, é que a política virou basicamente uma extensão da bandidagem”. Nada mais atual.

  2. Tania Bernadete Campos
    Tania Bernadete Campos

    Parabéns Conta ! É na ferida.

  3. JHONATAN SURDINI
    JHONATAN SURDINI

    Acabou o AMOR

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Estamos vivendo uma semi Cuba

  5. Marcus Borelli
    Marcus Borelli

    Parabéns Rodrigo pelo texto. Carioca como você é sabe bem o que diz. O pior é que o caos está contratado só não sabemos como lidaremos com ele quando ele vier. Será uma guerra do bem contra mal.

  6. Ed Camargo
    Ed Camargo

    Se quisermos conhecer a força do gênio humano, deveríamos ler a obra literária de Thomas Hobbes, O Leviatã . Se quisermos ver a insignificância da depravidade humana basta prestar atenção nas firulas do Luladrão e seus comparasas do STF. Um regime aliado aos ladrões e assassinos, juntos destruindo nosso país abandonado ao caos da anomia.
    Estamos numa trajetória semelhante à da Alemanha dos anos 1930.

  7. Luiz Americo Lisboa Junior
    Luiz Americo Lisboa Junior

    A anomia também pode ser comparada a anarquia, desobediência civil. O Rio está a beira disso e o poder estabelecido no Brasil vai arrastar o país na mesma direção.

  8. CLAUDIONOR BATISTA DE AZEVEDO
    CLAUDIONOR BATISTA DE AZEVEDO

    Amigos(as)
    Infelizmente o Brasil está uma bagunça só.
    Este Desgoverno recheado de COMUNISTAS, CONDENADOS, EX CONDENADOS, TERRORISTAS, CORRUPTOS, ETC… Está fazendo barbaridades todos os dias.
    Os culpados desta situação: A maioria(?) do povo brasileiro que votou no LULADR#*, o Congresso Nacional que se omite de suas funções de fiscalizar o Judiciário (STF), de Legislar .(QUE É SUA FUNÇÃO), deixando que o STF legislar em seu lugar (CRIANDO LEIS, PORTARIAS, INQUÉRITOS, JULGANDO PESSOAS SEM FOROS ESPECIAIS, PRISÕES SEM JULGAMENTOS E CONDENAÇÕES ARBITRÁRIAS, ETC.).
    Mas, como confiar em um Congresso em que a maioria dos parlamentares estão com o RABO PRESO no STF, com processos, inquéritos, denúncias, sindicâncias, tudo engavetado, postergado, adiado pelo STF para ter os parlamentares sob seu julgo,(Ameaça de reabrir os casos, julgar, sentenciar, etc.
    Os Senhores Parlamentares têm que ter consciência que foram eleitos por seus eleitores para LEGISLAR e não passar esta função ao Executivo ou Judiciário. (AS LEIS CONSTITUCIONAIS VÁLIDAS SÃO AQUELAS CRIADAS E APROVADAS PELO LEGISLATIVO), as demais são inconstitucionais.
    Nenhum REGIMENTO INTERNO do STF, STE, CÂMARA OU SENADO, pode se sobrepor a CONSTITUIÇÃO. É onde todos devem se pautar e obedecer.
    Que tal algum parlamentar apresentar um Projeto de Lei para inserir na Constituição, com artigos e parágrafos, etc… CRIANDO: Conselho, Tribunal, Comissão, Colegiado, Etc… Para FISCALIZAR, MONITORAR, VERIFICAR, INVESTIGAR, etc… As contas, os excessos, suas prerrogativas, abusos de poder, inserções em outros poderes, etc…
    Este Órgão com poderes de JULGAR, PRENDER, DEMITIR, AFASTAR, APOSENTAR ETC…
    Seria formado por 11 ou 15 membros de todo Brasil, ESCOLHIDOS POR SORTEIO PELOS NÚMEROS DO CPF, sem indicação de ninguém (Seria inserido o CPF de todos os possíveis sorteados em todo território Nacional). Não seria necessário ser efetivo, permanente ou vitalício, para não gerar mais despesas para a nação.
    Esse órgão seria convocado pelo Senado, Câmara Federal ou Congresso Nacional, sempre que houvesse a necessidade.
    Os membros seriam composto por: 02 membros STM, 02 Desembargadores Federais, 02 Desembargadores Estaduais, 02 Senadores, 02 Deputados Federais e 03 Juízes Estaduais.
    As Remunerações seriam as diárias normais para os deslocamentos e acomodações já previstas na legislação, durante os processos ou julgamentos. Seria somente durante o evento. (Ou que tenha algum ajuste nestas despesas).
    É uma opinião. (Quem sabe algum Dep. ou Sen. compre esta ideia).
    É vergonhoso ver um Congresso Nacional, eleito pelo povo, se submeter aos caprichos de um membro do STF.
    OBS: Repasse este para o maior número de contatos.

  9. Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacerda Nunes Da Silva

    Adorei

  10. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Quando a corrupção se instala no poder,os bandidos ,narcotraficantes pedófilos e assassinos são seus comparsas–os que dividem sempre o produto do roubo,seja ele de qual for.Basta ver o que acontece em um país onde sessenta mil homicídios por ano são contabilizados sem qualquer providência real das autoridades de segurança. Rio de Janeiro está a mercê do crime organizado há décadas, está afastando turistas e investidores. São Paulo melhorou um pouco,mas tomo cuidados para não me expor a situações de risco. Apenas um pequeno exemplo:deixei de frequentar a sala São Paulo por causa da cracolandia,quando termina o espetáculo e saímos pelo estacionamento reservado à própria sala, somos abordados por zumbis. Impossível.

  11. Antonio C. Lameira
    Antonio C. Lameira

    Nós cariocas, já nos acostumamos com essa barbárie, não que não somos insensíveis, que não temos medo estamos vivendo no ninho das serpentes, vivendo um dia após o outro, só temos um pouco de sossego quando grande eventos acontece na cidade, estamos entreguem a própria sorte, só nós damos conta que estamos vivos quando acordamos.

  12. Laercio Cláudio Piazza
    Laercio Cláudio Piazza

    Parabéns pelo texto, espetacular, diz muito sobre a Terra Brasilis dos que se acham donos do poder, “semi-deuses”, Pilotos do Sistema que quer privilégios para poucos às custas de sacrifícios de muitos….

  13. Celso Ricardo Kfouri Caetano
    Celso Ricardo Kfouri Caetano

    Muito bom como sempre Constantino, a diferença entre a Gotham City dos quadrinhos e da Tupiniquim é que não temos um Batman mas um monte de Coringas.

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