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Ilustração: Marko Aliaksandr/Shutterstock
Edição 194

Um grande cassino virtual

O mercado de sites de apostas esportivas explodiu — e não apenas no Brasil

Dagomir Marquezi
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Não há como escapar hoje do bombardeio de publicidade de sites de apostas esportivas. Ligue em qualquer canal de TV, navegue na internet, escute o rádio, e você vai ver que a propaganda não acaba. E essa publicidade corresponde a um mercado em rápida expansão.

O site Mobile Time publicou em maio uma pesquisa com mais de 2 mil brasileiros sobre o uso de sites de apostas esportivas. Segundo o levantamento, um quarto dos brasileiros que possuem smartphone já participou de sites de apostas esportivas. Como 160,4 milhões de brasileiros possuem celular, o número de pessoas que já apostaram no Brasil chega a 40 milhões. Cerca de 20% dos entrevistados revelaram ter ganhado mais do que perdido, e 60% estavam na situação contrária — perderam mais do que ganharam. A parcela dos que ficaram no empate entre ganhar e perder foi de 17%. Entre os apostadores, 36% estão na faixa dos 16 aos 29 anos. Proporcionalmente, e esse dado é surpreendente, os que mais apostam estão nas classes D e E (30%).

Uma cadeia varejista brasileira citada pelo jornal O Globo divulgou uma pesquisa mostrando que brasileiros das classes C, D e E já estão usando pelo menos 5% de seu orçamento em sites de apostas.

Ilustração: Shutterstock
A marca da hipocrisia

A 1xBet, só para citar um exemplo de site, permite apostas em futebol, tênis, basquete, hóquei no gelo, vôlei, críquete, ping-pong, corrida de cavalos, dardo, rúgbi, squash, salto de esqui, polo aquático, sinuca, futebol gaélico, badminton e esqui alpino. 

Mas você pode ter seu dia de James Bond virtual também, jogando ao vivo com players ao redor do mundo numa mesa de bacará (ou blackjack, pôquer ou roleta). As apostas nesses cassinos virtuais vão de 10 centavos a 5 mil, em dólares ou euros.

Como pagar (e receber) suas apostas? Escolha seu método: Pix, boleto bancário, bancos particulares e estatais, cartões de crédito e débito. Está tudo liberado. O que demonstra com clareza didática uma das marcas da alma brasileira: a hipocrisia.

Se nossos celulares viraram um cassino internacional completamente legalizado, por que não temos cassinos reais, como os de tantos pontos da Europa, das Américas e da Ásia? Por que a atividade continua proibida desde 1946, sob o argumento de que é uma atividade “degradante para o ser humano”? Veja o que diz a Lei de Contravenção Penal, em vigor no Brasil, segundo o site oficial do governo federal:

“Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: 

(…) 

§ 2o Incorre na pena de multa, de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador. (Redação dada pela Lei nº 13.155, de 2015.)

§ 3º Consideram-se jogos de azar:

a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;

b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;

c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.”

O mesmo Estado que proíbe o jogo de azar em nove artigos da Lei das Contravenções Penais patrocina, organiza e ganha uma montanha de dinheiro com dez tipos diferentes de loterias, por meio da estatal Caixa Econômica Federal: Loteria Federal, Lotomania, Quina, Mega-Sena, Lotofácil, Dupla Sena, Timemania, Dia de Sorte, Super Sete e +Milionária.

Foto: Shutterstock
O perigo da manipulação

Essas formas tradicionais de jogos são bem simples. A Lotofácil, por exemplo, oferece 60 números por jogo para que o apostador escolha 15. Já as apostas em jogos de futebol envolvem um grande número de variáveis. O resultado pode variar dependendo de muitos fatores: um jogador que se machuca, um VAR mal aplicado, a decisão errada de um treinador etc.

E onde há tantas variáveis existe a possibilidade de fraude. A Itália sofreu com denúncias de jogadores e técnicos que estavam manipulando resultados em sites de apostas. Em maio deste ano, uma CPI foi instalada no Congresso brasileiro para investigar a manipulação de resultados nos Campeonatos Paulista e Gaúcho de Futebol. 

Em setembro, a CPI foi encerrada sem uma votação do resultado final. O deputado Wellington Roberto (PL-PB) pediu vista do relatório, segundo declarou para a CNN Brasil: “Não diz nada com nada, não diz nem aquilo que deixou de acontecer aqui nesta comissão, que foram debates acalorados, requerimentos aprovados de convocação e de convites que não foram concretizados”. Outros três parlamentares se juntaram ao pedido de vista conjunta.

O relator Felipe Carreras (PSB-PE) concluiu com a proposta de criação de quatro projetos de lei determinando responsabilidades legais (de jogadores, treinadores, técnicos e dirigentes) para possíveis manipulações de resultados. Propôs também a adesão do Brasil à Convenção de Macolin (da Suíça), que atua na área de fraudes em resultados esportivos. Nove países da Europa já assinaram, e outros 32 se comprometeram a aderir.

A fúria arrecadatória

Em 2023, a explosão dos sites de apostas despertou o apetite do aparelho estatal brasileiro. Partindo do governo, criou-se uma medida provisória com dois objetivos básicos: regulamentar e arrecadar. Quem ganha mais de R$ 2.112 em apostas paga 30% de imposto. Outros 18% são cobrados sobre o gross gaming revenue (GGR, que corresponde à receita bruta menos os prêmios).

Ilustração: Wan Wei/Shutterstock

O governo federal já tomou a primeira providência: criar uma secretaria dentro do Ministério da Fazenda com 70 funcionários e custo de R$ 3 milhões por ano. O ministro Fernando Haddad calculou que a nova secretaria vai arrecadar R$ 2 bilhões em impostos no ano que vem. 

A Colômbia foi a pioneira na América Latina na regulamentação de sites de apostas, em 2015. Por lei, a maior parte da arrecadação vai para o setor de saúde. Na Argentina, a regulamentação é por conta de cada província. Os jogos são regulamentados também na Bolívia, Chile, Costa Rica, Guiana, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.

Nos Estados Unidos, a decisão também é estadual, e 34 dos 50 estados autorizam algum tipo de jogo de aposta. Os europeus são mais agressivos no intervencionismo e controle burocrático. Jogos são permitidos na Espanha, no Reino Unido e na Itália, onde apostas esportivas são legais desde o tempo de Benito Mussolini. Na África, os apostadores mais fanáticos estão na Nigéria (onde a atividade tem importância na vida econômica local) e no Quênia, onde foram legalizados em 2011. O mercado está crescendo na Índia, nas Filipinas e na Austrália.

Jogo patológico

Esse crescimento dos sites de apostas vai expandir um mercado de trabalho no Brasil, mas é a semente de outros problemas. “Muitos jovens estão viciados em apostas esportivas on-line, especialmente de futebol”, declarou o psiquiatra Fabio Aurelio Leite, de Brasília, para o site Metrópoles. “O vício em apostas esportivas on-line é, na verdade, um transtorno que pode ser chamado de ludomania ou jogo patológico. Torna-se preocupante a partir do momento em que atrapalha as atividades sociais do jogador ou o faz cometer loucuras para continuar apostando.”

No dia 14 de novembro, o deputado Luciano Vieira (PL-RJ) apresentou o Projeto de Lei nº 1.931/2023, menos voltado para a arrecadação e mais para a regulamentação dos sites. O projeto, segundo a Agência Câmara de Notícias, “proíbe a publicidade de sites que comercializem apostas sem autorização ou concessão do Ministério da Fazenda. O texto também veda a participação de menores de idade em apostas de temáticas esportivas, as chamadas apostas de quota fixa”.

E o que são as apostas de quota fixa? A Agência Senado as definiu como “um sistema de apostas que inclui eventos virtuais de jogos on-line e eventos reais de temática esportiva, como jogos de futebol e vôlei, por exemplo. Nessa modalidade, o apostador ganhará caso acerte alguma condição do jogo ou o resultado final da partida”. 

Calcula-se que o mercado vai crescer 10% ao ano e ultrapassar os US$ 140 bilhões em 2028

Uma emenda (acolhida pelo relator) destina a arrecadação com essas apostas de quota fixa da seguinte forma: 36% para o esporte, 28% para o turismo, 14% para a segurança pública, 10% para a seguridade social e 1% para “o Ministério da Saúde aplicar em medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos nas áreas de saúde”. O 1% restante será entregue a entidades benemerentes e para a Polícia Federal.

O senador Eduardo Girão (Novo-CE) pediu (mas não conseguiu) um adiamento da votação para discutir melhor a questão da ludopatia, ou o vício em jogos. Uma coisa é fazer um joguinho de fim de semana; outra é se tornar dependente. A ludopatia se torna um caso clínico quando o usuário atinge qualquer uma das cinco seguintes características: 1) a necessidade de jogar cada vez mais; 2) a incapacidade de parar o jogo; 3) o uso de dinheiro destinado a outras finalidades no jogo; 4) mentir sobre seu envolvimento com o jogo; e 5) usar de meios ilegais para financiar o jogo.

Ilustração: Shutterstock
Dinheiro da poupança

Para ter uma visão realista da situação, é preciso em primeiro lugar que se reconheça: o mercado de apostas esportivas veio para ficar. Já tivemos ondas anteriores — as casas de bingo, o pôquer, os videogames, que continuam à toda. E hoje o maior público cliente dos sites de apostas brasileiras está concentrado nas classes C, D e E.

O Instituto Locomotiva realizou uma pesquisa, a partir de agosto, com 750 pessoas dessa faixa de renda e descobriu que elas estão usando os recursos da poupança e o dinheiro que usavam em restaurantes para apostar. O objetivo não é nenhuma surpresa: ganhar dinheiro de forma fácil e não produtiva. Com a crise econômica que se anuncia para o ano que vem, essa realidade pode gerar problemas crescentes nessas classes mais populares.

Mas não adianta fugir da realidade. Segundo a empresa Grand View Research, com sede em São Francisco, o mercado global de sites de apostas esportivas estava avaliado em US$ 66,98 bilhões em 2020. De lá para cá, as condições para seu crescimento só aumentaram: a estrutura da internet, a regulamentação dos sites, o número de pessoas com celulares pelo mundo, e a multiplicação de ligas esportivas. A Grand View Research calcula que o mercado vai crescer 10% ao ano e ultrapassar os US$ 140 bilhões em 2028. Esse quadro deverá proporcionar o mesmo ritmo de crescimento no Brasil, onde já existem 238 sites de apostas esportivas.

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3 comentários
  1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Muito bom os dados, Dagomir. E sou favorável a discussão sobre legalização de cassinos, como em Nevada EUA, Las Vegas principalmente.

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Abaixo da crítica deputados na CPI dos jogos de azar, esses deputados são o Azarão do Brasil

  3. Romulo Vilela
    Romulo Vilela

    Gostaria de conhecer uma pesquisa que mostrasse o percentual de casos patológicos advindos do hábito de jogar em relação aos jogadores que apenas se divertem sem comprometer sua saúde financeira e/ou mental.

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