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Moradores da Vila Renascer pedem revisão do laudo antropológico que ampliou a Terra Indígena de Apyterewa até a região | Foto: Revista Oeste/Thiago Vieira
Edição 194

Uma tragédia humanitária no coração da Amazônia

Levados para a região pelo Incra, moradores da Vila Renascer, no sul do Pará, estão sendo acusados de invasão a terra indígena pelo próprio governo federal

Thiago Vieira
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Em 1993, Erismar José Lobo, na época com 24 anos, fez a inscrição no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão do governo federal, para tentar realizar um sonho: receber uma terra para chamar de sua e poder trabalhar. Morador de Tucumã, município no sul do Pará, ele teve sorte. Em 1994, foi contemplado com um lote na região chamada Vila Renascer, em São Félix do Xingu, distante 170 quilômetros da cidade em que residia, com acesso por estrada de terra.

Na época, o Incra destinou 242 lotes para famílias sem terra morarem e mais cem lotes com cerca de 100 hectares cada para potenciais produtores rurais. De lá para cá, Erismar e outros moradores têm produzido ali cacau, feijão e milho, além de criar gado, galinhas e porcos, para a própria subsistência.

O homem

Pai de quatro filhos e avô de uma bebê, ele tem orgulho de dizer que depende unicamente da terra onde mora para sobreviver. Seu lote foi dividido entre os filhos para que todos pudessem trabalhar.

Depois de quase 30 anos de trabalho naquela terra, Erismar conta que seu maior medo é ter que abandonar a produção e não conseguir sustentar a família. A preocupação de Erismar é antiga. Surgiu quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou um decreto em 2007 no qual definia oficialmente o vilarejo como parte da gigantesca Terra Indígena (TI) de Apyterewa. No mesmo ano, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) foi até o povoado com um mandado para a expulsão de todos os moradores não indígenas e a vaga promessa de que Erismar e todos os demais receberiam uma indenização e a entrega de um novo terreno.

As ações tiveram início efetivo em 2016. Desde então, os moradores estão sendo intimidados e expulsos de suas terras pelas operações da Força Nacional em conjunto com o Ibama, a Funai, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e o apoio do Exército.

Neste ano, a retirada dos moradores foi intensificada. A reportagem de Oeste esteve em São Félix do Xingu para acompanhar a ação da Força Nacional de Segurança, convocada pelo governo federal para expulsar das suas terras os moradores que foram levados para lá pelo próprio governo federal.

Vídeos mostrando a forma violenta como os agentes do Estado tratam os moradores da Vila Renascer circularam pela internet recentemente. A reportagem de Oeste presenciou a brutalidade e a falta de paciência com que os policiais lidam com uma população que está vendo as casas em que vivem há décadas serem colocadas abaixo. As bolsas da equipe de Oeste foram revistadas pelos agentes, mesmo depois da identificação como imprensa. 

“Até hoje nunca fui indenizado nem ganhei outra terra”, disse Erismar Lobo. “A Funai fala que somos invasores. Não somos. Quem é invasor aqui é a Funai, que está invadindo nossas propriedades. Quando cheguei era jovem, conseguia trabalhar. Agora que estou velho, como vou fazer? Vou enfrentar o governo a qualquer custo, serei preso ou morto. Só saio daqui assim ou se me pagarem um preço justo. Não tenho para onde ir.”

A Força Nacional e o Ibama estão destruindo as casas dos moradores da Vila Renascer | Foto: Thiago Vieira/Revista Oeste

Assim como ele, a maioria dos moradores não tem para onde ir. Essa situação tem afetado a saúde mental da população, como é o caso do irmão de Orcimar Arantes do Prado, de 51 anos. Sofrendo de depressão, teve o quadro agravado depois de ter a terra ameaçada e receber uma multa do Ibama no valor de R$ 1,5 milhão por crimes ambientais. Ele cometeu suicídio neste ano, aos 47 anos. Deixou três filhos. “Desde 2016, oito pessoas se suicidaram”, conta Orcimar. 

A luta
A Força Nacional tem atuado nas operações de desintrusão | Foto: Thiago Vieira/Revista Oeste

No início das operações de “desintrusão” — como é chamada pelo governo federal a retirada de pessoas não indígenas de terras indígenas —, Erismar foi expulso de sua residência e obrigado a morar na rua com a família. “Vieram, derrubaram minha casa, colocaram as minhas crianças na chuva igual cachorro, morando debaixo de uma lona plástica”, contou. 

Betânia Rodrigues da Silva, de 50 anos, emocionou-se ao ver a destruição das casas. Ela é nora de um dos moradores da Vila Renascer. “Criei meu filho de 13 anos praticamente aqui nesta casa”, contou. “É duro demais ver isto aqui, as coisas que você constrói com tanta dificuldade. O Ibama estava preocupado com ‘onde os carneiros ficam, onde dormem’. Por que eles estavam preocupados com isso? Eles destruíram a casa dos animais.”

Desde a visita da reportagem à Vila Renascer, em novembro, as equipes da Força Nacional destruíram cerca de 50 casas, currais e barracos. Os moradores estão sendo obrigados a ir para a Vila São Francisco, próxima ao local, sem qualquer indenização ou auxílio. Cerca de 620 famílias estão sendo expulsas.

A agressividade e as ameaças dos agentes de segurança encarregados da expulsão dos moradores resvalam até nas crianças. A professora Cleuma Tebrian, de 32 anos, disse que os agentes agiram com brutalidade durante o fechamento da única escola da Vila Renascer. Eles chegaram a pedir que as crianças levantassem suas camisas para ver se estavam armadas. “Nunca tinha presenciado algo tão terrível”, contou a professora. 

A escola era administrada pela prefeitura de São Félix do Xingu e atendia do primeiro ao nono ano do ensino fundamental. Cleuma era contratada do município, mas as atividades foram suspensas, e o ano letivo foi interrompido pela operação. 

Além disso, durante as ações da Força Nacional, Oseias dos Santos Ribeiro, de 37 anos, morreu com um tiro. A corporação assumiu a responsabilidade pela morte e informou que Oseias teria reagido a uma abordagem. Testemunhas negam a versão oficial. 

A terra
O assentamento da Vila Renascer foi criado em 1994 pelo Incra | Foto: Thiago Vieira/Revista Oeste

A Vila Renascer fica localizada dentro da Terra Indígena de Apyterewa — pertencente ao povo indígena Parakanã —, no município de São Félix do Xingu, no sul do Pará. Para acessar a região são necessárias cinco horas de viagem, ao longo de 170 quilômetros de estrada de terra dentro da Floresta Amazônica, passando por alguns vilarejos.

A região é explorada por colonos há décadas, e eles cobram uma revisão no laudo antropológico que expandiu a TI, atingindo a Vila Renascer. Para Vicente Paulo Terêncio Lima, presidente da Associação Vale do Cedro — que representa os moradores do vilarejo —, há um erro no laudo antropológico elaborado por Carlos Fausto em outubro de 1996, e o Ministério Público Federal (MPF) deveria realizar uma revisão. 

“A Extensão Apyterewa foi criada em cima de mentiras”, disse. “O laudo da Funai informa que é uma área tradicionalmente ocupada pelos Parakanãs. Temos um laudo informando que as terras não são tradicionalmente ocupadas por eles. Então entendemos que o papel da Justiça é fazer uma perícia, ver quem está falando a verdade.”

Lima explicou que confrontos entre os próprios indígenas Parakanãs fizeram com que o povo se dividisse. Alguns saíram da área de mata no município de Novo Repartimento, onde moravam, andando cerca de 700 quilômetros até a região de Apyterewa, próxima ao Rio Xingu, na década de 1980. Chegando à cidade de São Félix do Xingu, os indígenas começaram a atacar um ribeirinho, que comunicou o fato à Funai.

A fundação então indenizou o ribeirinho e delimitou uma terra indígena de 266 mil hectares, chamada de Terra Indígena de Apyterewa, em 1987. Em julho de 1988, uma comissão foi aberta e ampliou a área para 980 mil hectares, destinando o território aos Parakanãs e atingindo a Vila Renascer. O laudo realizado pela Funai informa que havia uma ocupação tradicional da região pelo povo indígena. 

A reportagem teve acesso ao laudo antropológico realizado em 1996 que embasou o decreto de 2007, e o documento confirma a versão contada por Lima. O relatório detalha os conflitos entre os indígenas e afirma que os Parakanãs “ocidentais”, como são chamados os indígenas da região de Apyterewa, caminharam por diversos anos em busca de uma área “pacífica”, mas não diz que eles são tradicionais da região. 

Na mesma época, o próprio relatório cita que havia uma política de colonização na região pelo governo federal, anunciada em 1977, e realizada pelo Incra, que teria levado moradores não indígenas para o local. “As informações davam conta do assentamento de colonos, com aval e apoio do Incra, dentro do território declarado de posse permanente dos Parakanãs”, afirma o documento. 

Em 2002, o então ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, anulou a Portaria nº 267/92 e reduziu a área para 773 mil hectares, sem a realização de novo laudo antropológico. Para Lima, a retirada de 207 mil hectares prova que o laudo está incorreto. 

“O documento continua o mesmo, informando que a área tradicionalmente ocupada pelos indígenas é de 980 mil hectares”, disse Vicente. “Como eles reduzem uma área sem fazer uma nova perícia e um novo laudo antropológico? Se não tivesse falha no laudo, a terra continuaria com 980 mil hectares.”

Segundo o presidente da associação, o local é rico em minérios. E o principal objetivo do governo ao ampliar a área é fortalecer o Estado e as organizações não governamentais (ONGs), pensando em retirar o minério no futuro. A visão é a mesma explicada pelo ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo.

“O objetivo é congelar uma parte significativa do território brasileiro, do solo e do subsolo”, explicou Rebelo. “A área se tornaria uma reserva de recursos naturais para os países ricos e industrializados. Esse é o nível da ação do Estado brasileiro. Essas políticas são orientadas a partir de fora.”

Rebelo também disse que as ordens partem de agências norte-americanas e europeias que financiam ONGs no Brasil. O governo brasileiro, por meio do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, da Funai e do Ibama, acata as opiniões dessas organizações. O ministro também acusou o Ministério Público Federal de participar das decisões. 

Segundo Rebelo, as ONGs e o Ministério Público Federal exigiram uma compensação de terra pelos problemas ambientais que a construção da Usina de Belo Monte causaram. Foi então que ampliaram a área para a região habitada. “Para atender à ampliação, tem que remover essas pessoas, como se elas fossem invasoras de áreas indígenas”, explicou. “Na verdade, foram as demarcações que invadiram as áreas onde já estavam as pessoas. Então é uma coisa completamente absurda.”

Questionado sobre a revisão do laudo antropológico, o MPF informou, por meio de nota, que “não identificou nenhuma fraude no laudo antropológico que embasou as decisões e, portanto, seguirá atuando pela retirada de não indígenas da Terra Indígena Apyterewa”.

A Procuradoria-Geral da República informou que não recebeu nenhuma denúncia dos moradores. “Não conseguimos localizar nenhuma manifestação de moradores a respeito de possíveis laudos fraudulentos sobre a Terra Indígena Apyterewa.”

O jornalista Alexandre Garcia, colunista de Oeste, chamou a atenção para as ações que têm acontecido na região num artigo publicado na edição 187 da revista. Garcia destaca que, em vez de comentar a tragédia humanitária no Brasil, a mídia tradicional preferia concentrar-se numa guerra que ocorria a 10 mil quilômetros de distância, em Israel. Cada vez mais intensos, os conflitos em São Félix do Xingu continuam longe dos holofotes.

Leia também “Fábrica nacional de indígenas”

10 comentários
  1. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    A questão indígena no Brasil é uma grande farsa desde antes da eleição do Cacique Deputado Juruna pelo RJ em 1982.
    O que os detentores do Estado buscam é o recurso fácil de organismos internacionais, ONGs e outros picaretas financiados por países como Alemanha. Noruega, França, etc.
    O episódio desta reportagem remete ao conflito gerado pela Reserva Raposa do Sol que expulsou os agricultores de Roraima que desde então cultivam arroz na Guiana.
    A área demarcada como terra indígena no Brasil é maior que muitos países para abrigar em torno de 900 mil cidadãos brasileiros que devem rapidamente evoluir para 10 milhões pelas manipulações que devem ocorrer no IBGE.
    O território indígena ocupa no Brasil em torno de 14% do território enquanto a agricultura fica com 7,6% e a pecuária com 8,0% representada principalmente por pequenos e médios produtores.
    Somente a COAMO, maior cooperativa agrícola do país tem mais de 33 mil cooperados nos estados do PR, MS e SC.
    A demarcação de terras não representa propriedade para os indígenas mas uma reserva para o Estado que permanece com o controle da área demarcada.

  2. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    A situação só vai melhorar para nós brasileiros o dia que a amazonia for OFICIALMENTE entregue, pois de fato já não nos pertence. Nos livraria das acusações ridiculas de crimes ambientais e o país poderia se fragmentar em pequenas unidades cada uma por si. Só assim o nordeste se desenvolveria, pois não ficaria mais dependendo do sul e sudeste. Seria uma região próspera

  3. Dalva da Silva Prado
    Dalva da Silva Prado

    Parabéns Tiago, por informar sobre a tirania contra brasileiros corajosos. Para satisfazer um poder vingativo, com objetivos suspeitos, tratam pessoas como animais. Até quando?

  4. Ana M Santos
    Ana M Santos

    Que tristeza, meu Deus! O Brasil está caminhando, com passos rápidos, em direção ao descontrole institucional. Espanta ver como o público e os profissionais da justiça trabalhando contra o seu próprio povo!

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Governo comunista terrorista IBAMA funai PRF PF e exército também comunista e terrorista

  6. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Um país de pernas pro ar. Nada faz sentido.

  7. Fabio Reiff Biraghi
    Fabio Reiff Biraghi

    Os três poderes estão destruindo o Brasil.
    Os interesses são vários e excusos.
    Temos, ainda, uma herança boa do governo passado que vai aos poucos desaparecer.
    Os poucos deputados e senadores que tem consciência e compromisso não são suficientes para romper esse muro de corrupção, desmandos e ideologia esquerda.
    Nos resta aguardar e torcer para que nesse longos 3 anos que ainda temos que suportar essa quadrilha, eles não consigam implantar tudo que querem; que esses poucos legisladores, a imprensa livre e mais meia dúzia de gatos pingados tenham sabedoria e resiliência para frear parte dos desmandos.
    No mais, que Deus nos abençoe e proteja!;

  8. Maki K
    Maki K

    Ou seja, é um caso de Venezuela X Guiana Essequibo doméstico, versão Guerra Civil. “Tá lindo.”

  9. Vinicius Moraes
    Vinicius Moraes

    O Estado Brasileiro trabalhando contra Brasileiros para atender interesse estrangeiro. Quer maiores capachos de Imperialistas do que LulE, Babysauro e Marina “ET” Silva?

  10. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Excelente artigo com todas informações possíveis. Essas atrocidades e outras só temos acesso nessa revista.Brasileiros sendo expulsos de terras cultivadas ,sem indenização e com suas vidas destruídas financeiramente e emocionalmente.

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