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Claudine Gay, presidente da Universidade de Harvard, Liz Magill, presidente da Universidade da Pensilvânia, Pamela Nadell, professora de história e estudos judaicos na American University, e Sally Kornbluth, presidente do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, participam de audiência do Comitê de Educação e Força de Trabalho da Câmara, em Washington, para prestar contas de sua ação contra o antissemitismo nos campi (5/12/2023) | Foto: Reuters/Ken Cedeno
Edição 195

Falta de clareza moral

As reitoras serão lembradas por tentar racionalizar e 'contextualizar' a judeofobia de boa parte de seu corpo discente e docente

Flávio Gordon
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Em seu livro The Silent Revolution, o escritor Barry Rubin propõe o conceito de “Terceira Esquerda”, que sucedeu a assim chamada “Nova Esquerda” dos anos 1960, assim como esta sucedeu a esquerda sovietizada da primeira metade do século 20. Segundo Rubin, a “Terceira Esquerda” resulta do processo de amadurecimento (tanto cronológico quanto estratégico) da geração de jovens radicais da Nova Esquerda, que passaram a se apresentar (e a ser vistos pelos mais ingênuos) como moderados e centristas, não obstante jamais haverem abandonado seus projetos de poder, senão apenas os métodos anteriores. 

Independentemente dos méritos da história intelectual da esquerda proposta por Rubin, percebe-se que, ao longo das fases de desenvolvimento dessa corrente política, ao menos nos Estados Unidos, duas ideias fundamentais de Marx e Engels foram mantidas. Em primeiro lugar, a premissa da exploração, ou do “jogo de soma zero”, segundo a qual, ao longo da história humana, é necessário que uns percam para que outros ganhem. Em segundo, a ideia da determinação material da consciência, a tese marxista segundo a qual cada “classe” concebe o mundo a partir de suas condições econômicas, notadamente, segundo a sua posição na estrutura produtiva. 

Capa do livro Silent Revolution, de Barry Rubin | Foto: Divulgação

Quanto à segunda ideia, todavia, houve uma mudança significativa de foco. As classes originais em luta — “burguesia” e “proletariado” — foram substituídas e multiplicadas, tendo as novas clivagens outros critérios para além dos que estabelecia a estrutura produtiva: de “raça” (ou cor), sexo, gênero, preferência alimentar, meio de transporte etc. Toda ação humana foi politizada, ou seja, vista como disputa por poder, e os possuídos por essa ideologia passaram a se ver como ativistas e representantes de uma causa. Além de a ação humana ter sido politizada, a política foi inteiramente moralizada, segundo o modelo que o cientista político australiano Kenneth Minogue definiu como “moralismo político”.

Pintura de Marx e Engels, teóricos do comunismo | Foto: Wikimedia Commons

Com efeito, na retórica contemporânea, fulano já não se diz apenas homossexual, mas se apresenta como um combatente da causa LGBTQIA∞ contra a heteronormatividade; sicrano não é só alguém que não come carne, mas um vegano militante em luta heroica contra o holocausto animal; beltrano já não anda de bicicleta simplesmente: ele é um cicloativista enfrentando o reacionário e retrógrado sistema de locomoção urbano.Se, antes, conforme o marxismo ortodoxo, cada classe manifestava a sua ideologia própria, agora quem o faz é cada “raça”, sexo ou gênero. Se, como Althusser formulou classicamente, o sujeito nada mais era que “o suporte das relações de produção”, ele agora não passa do suporte de relações raciais, sexuais e de gênero. Assim, a nova (ou terceira) esquerda passou a postular que negros pensam como negros; brancos, como brancos; mulheres, como mulheres; homens, como homens; gays, como gays; lésbicas, como lésbicas; transexuais, como transexuais; veganos, como veganos; ciclistas, como ciclistas; e assim sucessivamente… 

Dentro dos campi universitários, esse processo de balcanização sociocultural foi levado ao limite, tendo sido o confronto aberto de ideias e argumentos definitivamente substituído por projetos de aniquilação do outro. Um tribalismo generalizado transformou o ambiente universitário numa praça de guerra entre as mais diferentes facções ideológicas, local no qual, ao contrário da ágora grega, o diálogo se tornou impossível, já que cada facção fala a sua novilíngua particular e incomunicável. Cada nova autoproclamada minoria ou “tribo” urbana passa a se ver como um microcosmo particular, com uma particular estrutura de consciência e uma linguagem própria — cada qual, em suma, com uma Weltanschauung, não apenas exclusiva como irredutível. Para cada uma das categorias coletivas em conflito, toda a realidade parece estar circunscrita aos seus objetivos políticos imediatos, que adquirem, portanto, um caráter quase metafísico. Para citar uma célebre formulação do antropólogo Claude Lévi-Strauss acerca do etnocentrismo, o Ocidente passa hoje, depois de séculos de um projeto de universalismo, por um momento histórico no qual a humanidade “cessa nas fronteiras da tribo”.

Claude Lévi-Strauss, antropólogo francês, em 2005 | Foto: Wikimedia Commons/Unesco/Michel Ravassard

O estado moral e intelectual lastimável do ambiente acadêmico nos Estados Unidos ficou mais uma vez evidenciado no último dia 5 de dezembro, com o depoimento de três reitoras das mais prestigiadas universidades norte-americanas, que estiveram presentes em uma audiência do Comitê de Educação da Câmara e da Força de Trabalho para prestar contas de sua ação (ou, no caso, inação) contra o crescente antissemitismo nos campi, recrudescido após a reação de Israel aos ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro. As três reitoras — Claudine Gay (Harvard), Sally Kornbluth (MIT) e Liz Magill (Universidade da Pensilvânia) — foram ao Parlamento tentar se defender de acusações de omissão em proteger seus alunos judeus de manifestações antissemitas, expressas em apelos por uma nova intifada, loas ao Hamas e no slogan “do rio ao mar”, que não esconde o projeto genocida de aniquilação de Israel. Mas, por suas falas desastrosas, acabaram se complicando ainda mais.

Com efeito, no decorrer da audiência, a oportunidade para as três porta-vozes acadêmicas transmitirem confiança pública em suas ações acabou se transformando em veementes protestos (pluripartidários) da comunidade judaica e em pedidos de renúncia, depois que Gay, Kornbluth e Magill — egressas do que Rubin chamou de Terceira Esquerda — recusaram-se a se posicionar de maneira firme contra os apelos ao genocídio do povo judeu. As reitoras ficaram desconfortáveis durante todo o tempo, mas o golpe de misericórdia em sua credibilidade veio ao final das quatro horas de audiência, quando a deputada Elise Stefanik (Partido Republicano-Nova York) teve a oportunidade de questioná-las pela sexta vez, depois que outros republicanos cederam o seu tempo. Stefanik dirigiu às três depoentes uma mesma e simples pergunta: “Apelos ao genocídio dos judeus violam as políticas de sua universidade contra assédio e bullying?”.

Claudine Gay, presidente da Universidade de Harvard (5/12/2023) | Foto: Reuters/Ken Cedeno

A reitora da Pensilvânia, Liz Magill, disse que uma tal bandeira poderia violar as políticas da escola, mas “dependendo do contexto”. Sally Kornbluth, do MIT, disse que os apelos precisariam ser “generalizados e severos”, o que, só então, justificaria uma investigação. Claudine Gay, de Harvard, disse que só agiria caso o discurso antissemita — que, portanto, ela autorizava — resultasse em atos antissemitas (como se, no caso do antissemitismo, a passagem de um discurso ao ato já não representasse um momento no qual talvez fosse tarde demais para reagir). As respostas evasivas provocaram um tsunami de reações, obrigando ao menos uma das reitoras (por ora), Liz Magill, da Pensilvânia, a pedir demissão. 

Mas o radicalismo político, o esquematismo interpretativo pós-colonial, que concebe Israel como uma potência imperialista a oprimir os colonizados palestinos, não explica tudo na postura das três reitoras. Faltou-lhes, mais do que serenidade, clareza moral. Em vez de se olhar no espelho, Magill preferiu culpar os advogados por seu desastrado desempenho, e pediu desculpas protocolares. Mas a pergunta que lhe foi feita não exigia uma análise jurídica sofisticada. Era uma simples questão moral, para a qual só havia uma resposta concebível. Magill não a conhecia.

Liz Magill, presidente da Universidade da Pensilvânia (5/12/2023) | Foto: Reuters/Ken Cedeno

Claudine Gay e Sally Kornbluth não se saíram melhor. E, muito embora tenham conseguido se segurar no cargo por enquanto, é irreversível o dano à sua reputação causado pela pergunta nada esfíngica de Stefanik. Pelo resto de suas carreiras, se não de suas vidas, as três reitoras serão lembradas — com a ajuda de memes absolutamente implacáveis — por tentar desculpar, racionalizar e “contextualizar” a judeofobia de boa parte de seu corpo discente e docente. E pensar que, ao menos em matéria formal, elas tinham apoio nos próprios termos de conduta de suas instituições para oferecer ao público uma resposta clara e moralmente justa.

O preâmbulo do Código de Conduta do Estudante da Universidade da Pensilvânia, por exemplo, começa citando Benjamin Franklin, que descreveu a missão da instituição que viria a fundar como “educação para a cidadania”. Conforme declara o preâmbulo, a Universidade da Pensilvânia “compromete-se a criar um ambiente propício à investigação e ao aprendizado, e a fomentar a cidadania responsável na sociedade em geral”.

Audiência do Comitê de Educação e Força de Trabalho da Câmara, no Capitólio, em Washington (5/12/2023) | Foto: Reuters/Ken Cedeno

Já o Manual do Estudante da Harvard afirma: “É a expectativa da universidade que todos os estudantes se comportem de maneira madura e responsável”. E acrescenta que os padrões de conduta, sejam escritos ou não, têm o objetivo de “estabelecer uma base para a sociedade respeitosa e responsável, que Harvard procura promover entre seus estudantes, professores e funcionários”. Ao explicar como essas regras devem ser interpretadas, o manual instrui: “É implícito na linguagem da Declaração de Direitos e Responsabilidades que o assédio pessoal intenso, a ponto de configurar um desrespeito grave pela dignidade alheia, deve ser considerado uma violação inaceitável dos direitos individuais sobre os quais a Universidade se fundamenta”.

Ora, se qualquer grupo não judeu fosse vítima de manifestações equivalentes, a resposta teria sido firme e inequívoca

Também o Manual do MIT orienta de maneira semelhante: “Espera-se que todos os membros da comunidade do MIT se comportem com profissionalismo, integridade pessoal e respeito pelos direitos, diferenças e dignidade alheia. Esses padrões de conduta pessoal aplicam-se a todas as formas de comunicação, sejam elas orais, escritas ou gestuais”. Como resultado, o MIT possui políticas rigorosas contra o assédio, definido como “conduta indesejada de natureza verbal e não verbal, que seja suficientemente severa ou disseminada a ponto de criar um ambiente de trabalho ou acadêmico que uma pessoa razoável consideraria intimidador, hostil ou abusivo, afetando adversamente o ambiente educacional, de trabalho ou de convivência de um indivíduo”.

Sally Kornbluth, presidente do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (5/12/2023) | Foto: Reuters/Ken Cedeno

Diante do que disciplinam os documentos de suas respectivas instituições, resta indagar às três reitoras como é que a ocorrência de centenas de estudantes marchando pelos campi aos gritos de “intifada” e “do rio ao mar”, que apelam ao genocídio dos judeus israelenses e endossam o massacre de 7 de outubro, pode estar em conformidade com os nobres princípios de “dignidade” e “cultivo da cidadania responsável” defendidos pelos códigos fundamentais dessas instituições. Ora, se qualquer grupo não judeu fosse vítima de manifestações equivalentes, a resposta teria sido firme e inequívoca. No entanto, em vez de fazer cumprir os próprios padrões de comportamento de suas instituições, as três reitoras se reuniram com advogados na esperança de estancar a sangria. Tarde demais. O que elas fizeram e disseram não tem conserto. No fundo, as três reitoras expressaram quem são e o que suas instituições representam sob suas administrações. Não há como retroceder. Mas, se ainda lhes resta algum resquício de consciência autônoma após décadas de extremismo político e relativismo moral, Gay, Kornbluth e Magill deveriam fazer uma reflexão profunda sobre as patologias ideológicas que as dominaram e que hoje marcam as suas instituições, tornando-as incapazes de responder da única maneira sensata e justa aos apelos a novos holocaustos dentro do ambiente acadêmico.

Leia também “O espetáculo totalitário”

15 comentários
  1. Tarso Paulo Rodrigues
    Tarso Paulo Rodrigues

    Que artigo lúcido! Parabéns!!

  2. Rodrigo Eduardo Schneider
    Rodrigo Eduardo Schneider

    Excelente matéria, redação e direcionamento crítico!

  3. MB
    MB

    Isso mesmo. Esse Edward Said é o fim da picada! Assisti uma ‘palestra’ boçal desse sujeito numa das ‘FLIP em Paraty, no início do séc XX. Lamentável! Saí envergonhado e desanimado, já imaginando o que iríamos assistir nos anos seguintes.

  4. MB
    MB

    Claríssimo o seu artigo, Gordon. As 3 Reitoras devem ser exoneradas imediatamente! A demora segue manchando a Democracia Norte Americana. Até quando?!!!

  5. Odilon Soares Teixeira da Silveira
    Odilon Soares Teixeira da Silveira

    Análise muito esclarecedora, de como a esquerda(e não progressismo- que sugere progresso e é exatamente o contrário) se “camaleoneou” na direção de movimentos com a mesma filosofia, mas travestidos de “movimentos sociais do bem”

  6. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Artigos como este devem ser expostos nas universidades Brasil afora.

  7. Francisco de Assis
    Francisco de Assis

    As instituições de ensino superior no Brasil passaram a serem uma correia de transmissão do pensamento marxista com uma nova roupagem, a ideia de representar e valorizar a diversidade em todas as suas correntes. Só que na realidade esse discurso diversativo não aceita o contraditório. A voz discordante dentro das academias é sufocada e taxada com os clichês de fascista, homofóbico, racista, machista e outros “istas” (sic) que vem alimentando uma divisão que põe em risco a raça humana.

  8. MARCIO MARQUES PRADO
    MARCIO MARQUES PRADO

    Flávio Gordon, antes de ler a sua excelente coluna, muito bem embasada na obra de Barry Rubin, que não li, estava prestes a consultar minha neta Manuela, estudante do Insper, sobre a esquerda e suas várias vertentes, uma observação que já estava tirando o meu sono. As respostas vieram com a leitura do seu texto. Obrigado

  9. Maki K
    Maki K

    Quem começou com isso tudo nas Universidades norte americanas foi o Edward Said, filósofo docente na Univ Columbia que dizia ser o último intelectual palestino, o que o Olavo desmente revelando que ele nada mais que copiava o que o Renné Guenon dizia. Isso com dinheirama sendo injetado pelo Catar/Irmandade Muçulmana nas Universidades norte americanas já há mais de 30 anos, fortalecendo contratações de docentes antissemitas, possibilitando aberturas de editoras por centros centros de pesquisas fortalecidos com a verba. Flávio Gordon, seria bom vc escrever sobre isto.

  10. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    No mundo todo tem muita gente desprovida de valores morais saindo do armário.

  11. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Excelente artigo, embora prolixo

  12. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Eu sinceramente não consigo entender como os intelectuais em todo mundo evolui pra uma ideologia socialista desastrosa e suicida e os acadêmicos seguem na mesma linha quando os professores da área humana não tem mais sentido depois IA

  13. R. T.
    R. T.

    A visão de mundo da esquerda não se sustenta em nenhum aspecto. Infelizmente, porém, eles são bons de propaganda e contam com a superficialidade de análise do cidadão comum. Trabalhos como este artigo são muito importantes para mostrar com clareza o que a esquerda tenta esconder: suas ideias não param em pé! Belo trabalho Flávio e Revista Oeste! Sigam em frente, escancarando as faces do Mal!

  14. RODRIGO DE SOUZA COSTA
    RODRIGO DE SOUZA COSTA

    Os donos do poder resolveram dividir o mundo. Assim, estamos preocupados com piadas e não com guerras e fome. No Brasil, estamos preocupados com esquerda ou direita e não com o saneamento básico. Enquando isso, eles assaltam o estado e continuam sua nababesca vida, deixando para nós, as migalhas.

  15. Maria Weber
    Maria Weber

    Não poderia ter descrito melhor. A resposta da ״Dr Gay” ainda teve um quê de sadismo pouco acobertado.

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