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Érica Gorga, advogada, pesquisadora e professora | Foto: Divulgação
Edição 199

Érica Gorga, advogada: ‘Não há provas de tentativa de golpe’

De acordo com a especialista, o Supremo, o PT e a imprensa tradicional tentam ‘criar uma narrativa política descolada da realidade’ sobre o 8 de janeiro

Loriane Comeli
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A versão que a mídia tradicional prega sobre o 8 de janeiro de 2023 é de que houve uma tentativa de golpe de Estado, orquestrada sabe-se lá como pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que estava no exterior. É uma tese, contudo, que não se sustenta juridicamente, como dizem os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Para a advogada Érica Gorga, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) com ampla carreira como professora no Brasil e nos Estados Unidos, ficou clara a ausência de coordenação, de liderança e de uso de armas de fogo na manifestação em Brasília.

Somente com a presença desses fatores seria possível configurar os crimes de abolição violenta do estado democrático de direito e de golpe de Estado — duas das cinco acusações contra participantes dos atos de 8 de janeiro. “Havia uma impossibilidade absoluta de se atingir o resultado, o que torna o crime impossível”, diz.

A advogada, que lecionou na Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) por dez anos e em universidades dos Estados Unidos, explica que a falta de individualização das condutas — pela falta de provas contra os manifestantes — é uma ilegalidade não admitida no Direito Penal do Brasil.

Érica Gorga atuou como perita numa ação coletiva que tramitou na Justiça dos Estados Unidos para o ressarcimento de acionistas minoritários da Petrobras, prejudicados pelo esquema de corrupção petista. “Infelizmente, a única explicação que encontramos é a tentativa de construção de uma propaganda política”, observa.

Confira os principais trechos da entrevista.

Há provas de uma tentativa de golpe no 8 de janeiro?

Não há provas. A grande questão é que não existia uma coordenação, uma liderança unida direcionando os manifestantes para esse propósito. Os manifestantes estavam em Brasília com os mais variados propósitos. Alguns apenas com o intuito de participar de uma manifestação, como já existiram inúmeras manifestações de cunho político na história do país. Outros estavam ali passando, ou seja, nem estavam com o intuito de participar de uma manifestação, mas resolveram parar para ver o que estava acontecendo e foram pegos de surpresa. E alguns foram presos. Não se pode classificar esses manifestantes como golpistas, não existem provas de que tenha havido coordenação. Também não havia — considerando-se todas as provas que conhecemos e todas as imagens que foram divulgadas — armas de fogo, que costumam estar presentes nos países em que são comprovados os golpes de Estado. Não existiam metralhadoras, fuzis, canhões, tanques nem veículos aparelhados para empreender uma tentativa de tomada de controle. Para conseguir tomar um país, um grupo político obviamente tem de entrar numa guerra para executar o golpe. E mais: seria necessário haver um grupo político pronto e organizado para tomar o poder. E o que se viu foram pessoas que vieram das mais diversas partes do país e que não tinham sequer uma coordenação entre si. Não tinham nenhum plano de assumir o governo, são sabiam quem seriam os dirigentes. Não foram demonstradas provas de que houvesse um plano arquitetado com essa finalidade. Isso tudo mostra a impossibilidade absoluta de atingir o resultado.

Seria um crime impossível, hipótese na qual se apoiou o ministro Nunes Marques em seu voto, nos casos do 8 de janeiro?

Sim, porque a legislação não permite punir uma pessoa pelo que se passa na cabeça dela — sem que ela tenha tomado ações concretas e utilizado meios eficazes para a realização do plano, ainda que seja um plano ilícito. Se uma pessoa pensar em assaltar um banco, mas não tomar ações concretas para assaltar o banco, não pode ser punida por tentativa de assalto a banco. A analogia é a mesma aqui. Pode passar pela cabeça de uma pessoa que seria bom se houvesse outro dirigente político para o país. Mas, se ela não tomar ações concretas e eficazes para a tomada de controle do poder, não vai se configurar um golpe. Numa democracia o pensamento é livre.

8 de janeiro
Manifestantes durante invasão à Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
E o crime de associação criminosa armada foi praticado?

É preciso individualizar as condutas de cada um. E outra coisa: a pessoa fez uso da arma, do objeto cortante? Carregar um canivete no bolso não é crime. Efetivamente foi feito uso daquele canivete para causar uma lesão a outrem? São questões importantes juridicamente. Não basta ter um instrumento cortante que possa ser eventualmente considerado arma. É preciso fazer uso do objeto em uma atividade criminosa. E isso não foi suficientemente estabelecido na individualização das condutas de cada pessoa. Então, o que cabe discutir são os atos de vandalismo e depredação. Porém, nesses casos, não houve uma discussão suficiente da individualização da conduta. Quem de fato cometeu o vandalismo, e quem estava passando pelo local e foi compelido a entrar em razão do gás lacrimogêneo?

Como comprovar os crimes de vandalismo e individualizar as condutas?

Uma prova seria uma imagem mostrando cabalmente, sem margem de dúvida, que essa pessoa quebrou, danificou e destruiu o patrimônio público. No caso de Cleriston, que faleceu na Penitenciária da Papuda em 20 de novembro, mesmo com parecer da Procuradoria-Geral da República pela liberdade, onde estão as imagens que mostram que aquele senhor depredou alguma coisa? Quais são as provas? Por que ele estava naquela situação? Simplesmente porque fez parte de uma “turba”, de uma “multidão”, como os ministros do STF estão chamando? Tanto o Código Penal quanto o Código de Processo Penal requerem a individualização da conduta criminosa, e a pessoa só pode ser responsabilizada por aquilo que efetivamente causou. Foi um processo muito deficiente desde o início.

Outro ponto é o chamado crime multitudinário. Para o STF, nesse tipo de delito, todos devem responder pelo resultado, mesmo que não seja possível apurar as condutas de modo individualizado. A lei permite que o fato de alguém estar num lugar seja suficiente para a incriminação?

Não. A lógica do crime multitudinário, do artigo 65, é no sentido contrário: é uma circunstância atenuante à pena. Se uma pessoa está numa multidão, e crimes foram cometidos por essa multidão, é uma circunstância atenuante, que diminui a pena. Pela lógica penal brasileira, aquilo pode beneficiar essa pessoa. Vamos supor: se alguém tivesse depredado algo individualmente, pegaria pena “X”. Mas, havendo provas de que depredou algo coletivamente, essa pena “X” teria de ser diminuída. Infelizmente, a lógica adotada pelo STF foi de agravar a situação das pessoas, de colocar penas ainda maiores por terem participado de uma multidão.

“O que está acontecendo no caso dos manifestantes do 8 de janeiro é a supressão da instância, porque os acusados já começam sendo processados no Supremo Tribunal Federal”

Assim que os atos de 8 de janeiro aconteceram, durante alguns meses o STF e a imprensa falaram em terrorismo — crime que nunca ocorreu. Nenhum manifestante foi denunciado por esse delito. O STF e a imprensa desconhecem a lei, ou o uso desse termo foi proposital, com algum outro objetivo?

Infelizmente, observamos pessoas da imprensa utilizando palavras sem nenhum critério sobre seu significado real na língua portuguesa. É impossível caracterizar qualquer ato de terrorismo, mas essa palavra foi utilizada em vários veículos da imprensa nacional. Depois, quando foram criticados, perceberam que o discurso não colaria, que as pessoas estavam achando muito dissonante da realidade. A própria imprensa decidiu abandonar o termo e partiu para o uso do vocábulo “golpistas”, usado para substituir “terroristas”. Mas, de novo, dos pontos de vista histórico e jurídico, não existe nenhuma possibilidade de ter havido, dentro do conhecimento que se tem hoje, uma tentativa de golpe. Estão utilizando palavras absolutamente descoladas de seu significado histórico, do significado na língua portuguesa. Infelizmente, a única explicação que encontramos é a tentativa de construção de uma propaganda política, de uma narrativa política descolada da realidade.

Além disso, há o problema das prisões cautelares alongadas e da recusa de liberdade — mesmo quando há parecer favorável do Ministério Público.

Isso é um grande problema na condução dos processos, porque, inclusive, estão sendo desconsiderados pedidos importantes do Ministério Público, responsável por propor a ação penal. Então, se quem propõe a ação penal é favorável à liberdade, como no caso do Cleriston, não há como recusá-la, porque a titularidade da ação penal é do Ministério Público. E, se o Ministério Público entende que o caso daquele acusado merece um benefício, a rigor o juiz deveria acolher. Do contrário, o próprio juiz se transforma na figura de acusador, o que é vedado pelo nosso sistema constitucional, que assegura a separação das figuras do acusador e do julgador. Mas essas garantias não têm sido respeitadas.

Por que parece haver um ‘garantismo penal’ em alguns casos, como de tráfico e de crimes violentos, e não nos casos do 8 de janeiro?

O garantismo penal tem sido usado de acordo com a fórmula de “um peso e duas medidas”. Creio que há motivações políticas ofuscando a busca pela justiça, o que não poderia acontecer num sistema democrático. A garantia do estado democrático de direito, prevista no artigo 5º da Constituição, é que todos são iguais perante a lei, independentemente de sua ideologia. Isso quer dizer que não se pode usar algumas garantias da lei penal para um grupo de criminosos e, para outro tipo de grupo, que pensa de maneira política diferente, não aplicar as mesmas garantias. O garantismo penal está sendo utilizado de ponta-cabeça, porque tem sido defendida a aplicação de supostas garantias que, muitas vezes, nem deveriam ser assim consideradas para criminosos de alta periculosidade — autores de crimes gravíssimos, de crimes contra a vida das pessoas. Esses criminosos têm recebido penas lenientes e até mais leves do que as dos condenados pelos atos do 8 de janeiro — entre os quais não há nenhum acusado de atentar contra a vida de alguém. Realmente é um peso e duas medidas: nossa Justiça está invertendo a ordem dos valores.

stf 8 janeiro
Sessão de julgamento de réus do 8 de Janeiro, no STF (14/9/2023) | Foto: Wilton Junior/Estadão Conteúdo
Essas pessoas condenadas pelo STF a penas elevadíssimas têm a quem recorrer a não ser ao próprio STF?

Aí existe outro grande problema jurídico de todos esses processos, porque, nos âmbitos técnico e jurídico, a competência para esses crimes não deveria estar no STF. O que está acontecendo é a supressão de instância para a defesa dessas pessoas, que deveriam ter amplo direito de defesa, como está previsto na lei. E, para ter acesso à defesa, é preciso ter acesso a todos os recursos. Mas o que está acontecendo no caso dos manifestantes do 8 de janeiro é a supressão da instância, porque eles já começam sendo processados no Supremo Tribunal Federal. Podemos comparar com o processo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele foi processado desde o início na primeira instância, teve acesso a todos os recursos disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro. Esses acusados do 8 de janeiro já estão iniciando seu processo no STF — então, é evidente que estão negando-lhes a plena defesa. É inconcebível que cidadãos comuns sejam processados diretamente no STF, porque esses cidadãos não têm foro no STF. Só isso já implicaria a nulidade desses processos.

Por que a OAB, a maior parte da imprensa e outras instituições nada fazem sobre essas ilegalidades?

Infelizmente, a OAB está deixando de representar os interesses legítimos dos advogados, dos profissionais que representa. Vemos uma falta de posicionamento da OAB. Acho que a imprensa também está faltando com o seu papel de fiscalizadora, de monitoradora, no que tange ao cumprimento das leis brasileiras. Há uma abordagem superficial e enviesada, em razão de interesses econômicos e publicitários em contratos com o governo e com as estatais. No Congresso, vemos um enfraquecimento da função legislativa e dos políticos eleitos para defender os interesses das diversas posições políticas no Brasil. O Congresso não está primando por fazer cumprir as próprias leis que já aprovou no passado. Está abrindo mão de suas prerrogativas legais. Em uma democracia plena, o Congresso tem um papel muito mais ativo. Além disso, quando se cria um ambiente no qual arbitrariedades estão acontecendo, as pessoas tendem a ficar acuadas, por medo de serem retaliadas. Estamos vivendo uma situação de medo coletivo, o que não é bom, porque não é uma característica de um sistema democrático pleno.

Algo pode ser feito?

O Congresso brasileiro tem as prerrogativas legais para agir numa situação como esta, para corrigir arbitrariedades que tenham ocorrido. Depende de uma conscientização da sociedade brasileira, que teria de agir para pressionar o Congresso a trabalhar de acordo com o que está previsto na Constituição Federal e nas leis brasileiras.

Leia também “Pilar Rahola, escritora: ‘A esquerda se contaminou com o discurso antissemita'”

9 comentários
  1. Joel Luiz Oliveira Rios
    Joel Luiz Oliveira Rios

    Só existe uma realidade. O Brasil está entregue à uma junta de comunistas poderosos e arbitrários, os quais se apossararam do País na base do “PERDEU MANÉ”, e está faltando à maioria do povo brasileiro, o discernimento e o conhecimento necessários para uma retomada do Brasil das mãos destes comunistas via pressão sobre o Congresso Ncional (Câmara e Senado Federais), e o povo aos milhões irem para as ruas e cumprirmos a Constituição pra fazer valer o seu Art, primeiro que estabelece que “TODO O PODER EMANA DO POVO”. Se a população brasileira de mamando a caducando, nos conscientizarmos desta realidade, o Brasil terá jeito. Se não houver esta consciência e atitudes, com a altivez necessária para lutarmos pela democracia com liberdade de expressão, sem nenhuma censura, e com o cumprimento dos demais preceitos da CF, com o respeito e a harmonia entre os poderes constituídos da nossa República, a vaca vai pro brejo, ou seja, o Brasil vai pro “buraco negro” da ditadura e viraremos uma BRAZUELA”. O povo que ama esta nação, vai deixar isto acontecer já que ainda pode evitar? Espero que não. Esta é a hora de lutarmos contra os inimigos internos e ou externos da nossa Pátria amada Brasil. À LUTA POVO BRASILEIRO. Se lutarmos, a vitória é certa.

  2. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O Brasil e o mundo sabe que isso foi uma armação feita pelo governo e o STF porque são ladrões comunistas narcotraficantes assassinos genocidas. Só resta estabelecer uma junta e colocar todos na cadeia e aguardar julgamento

  3. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Recomendo a Revista Oeste que faça as mesmas perguntas para os presidentes regionais da OAB, diretores de opinião dos meios tradicionais de comunicação, como Estadão, Globo, etc e FHC aquele “democrata” que como ex tucano acreditei ser sério e mesmo após ter confessado em seus 8 anos de governo nos seus “diários da presidência” o que era o PT e a esquerda, foi ressuscitado para fazer o “L”, Alckimin, Jereissati, Serra e outros tucanos.

  4. Ricardo Gouveia Vitale
    Ricardo Gouveia Vitale

    A ditadura da Organização Criminosa do Judiciário brasileiro é mais grave do que pensamos!

  5. Ricardo Gouveia Vitale
    Ricardo Gouveia Vitale

    Alternativa é depender do congresso? Então, não há alternativas.

  6. José Luíz Ferreira Mairink
    José Luíz Ferreira Mairink

    Entrevista esclarecedora e completa.
    Mas, nuvens cinzas de desesperança permanecem e permanecerão por muito tempo.
    Pena…

  7. José Sergio do Amaral Mello Filho
    José Sergio do Amaral Mello Filho

    Meus parabéns à conterrânea Dra. Érica Borba pela lucidez e pela coragem. É parabéns também à Oeste, este farol no meio da neblina.

    1. José Sergio do Amaral Mello Filho
      José Sergio do Amaral Mello Filho

      Ratificando o texto acima, Dra. Érica Gorga.

  8. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Reconfortante mas desesperador ver as colocações da Dra Gorga, certeiras, objetivas, transparentes. Como pressionamos o Congresso, com a grande imprensa comprometida com o “outro lado”? Estamos mesmo acuados, no mato sem cachorro nem gato. Só temos a Oeste.

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