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Edição 199

Um ‘herege’ contra a tirania politicamente correta

Novo livro de Brendan O’Neill, lançado neste mês no Brasil, é um manifesto em defesa da liberdade, não apenas de expressão, mas de pensamento

Bruno Lemes
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No início de 2024, a LVM Editora traz para os leitores brasileiros a edição em português de A Heretic’s Manifesto: Essays on the Unsayable, terceiro livro do autor e comentarista político britânico Brendan O’Neill. Repórter-chefe de política da revista inglesa Spiked, O’Neill é também colunista de Oeste, com textos exclusivos para assinantes.

O Manifesto Herege: Aquilo Que Não Pode Ser Dito apresenta uma coletânea de textos do autor que discorrem sobre uma nova tirania: a do politicamente correto, que vem censurando, punindo e destruindo o pilar da liberdade que funda a civilização ocidental. Com destaque para o mundo anglo-saxão, em especial Estados Unidos e Reino Unido, os eventos e fenômenos mostrados por O’Neill são observáveis em todo o Ocidente.

livro brendan o'neil
Livro O Manifesto Herege: Aquilo Que Não Pode Ser Dito, de Brendan O’Neill | Foto: Reprodução/Redes Sociais
Por uma ética herética

O título faz referência aos hereges de outrora, ou seja, a católicos que eram acusados, julgados e eventualmente condenados pelo Tribunal da Inquisição. Tais acusações se baseavam em desvios fundamentais da fé católica, de acordo com a doutrina que tinha como autoridade exclusiva a Igreja.

Por extensão, “herege” refere-se a todo divergente dentro de determinada comunidade, acusado de desviar-se do caminho e deturpar aquela doutrina; no entanto, ele próprio entende estar percorrendo justamente o caminho correto, perdido pelas autoridades oficiais. Em seu Manifesto, O’Neill não é acusado: se “confessa” um herege, dizendo aquilo que é proibido nos tempos atuais, passível de punição. No lugar do religioso, está o cidadão; em vez da Igreja Católica, a comunidade é o próprio Ocidente herdeiro do Iluminismo.

Ao longo de seus dez capítulos, a obra destrincha as principais agendas por meio das quais elites culturais e financeiras impõem seu controle de pensamento, obtido, por sua vez, graças ao controle da linguagem. Afinal, ao melhor exemplo do distópico 1984, de George Orwell, a censura ao que se diz e publica é tamanha que, gradualmente, a linguagem e, consequentemente, a capacidade de expressar-se vêm sendo reduzidas ao ponto de tornar impossível o próprio pensar diferentemente.

E quais seriam as “heresias” de hoje, segundo O’Neill? Não apenas ideias testadas e consolidadas pelo tempo e a expressão delas, mas o próprio bom senso (que, em inglês, é chamado de “senso comum”, sem a carga negativa que se tem em português). Dizer que mulheres não têm pênis, por exemplo, é ofensivo.

Brendan O’Neill | Foto: Reprodução
Ideologia de gênero: opressão a mulheres e homossexuais

Propositalmente, o título do primeiro capítulo chama atenção por sua jocosidade: “O pênis dela”. Mas o ridículo da primeira impressão do leitor se torna um senso de absurdo, à medida que O’Neill descreve como a imprensa, a classe política e até mesmo instituições como a polícia têm não apenas aderido, mas reforçado e em certo grau imposto modos de referir-se a mulheres transexuais; ou seja, homens que, em dado momento, identificam-se como mulheres e fazem uma transição para o sexo oposto, feminino, em termos estéticos, hormonais, performáticos e, eventualmente, cirúrgicos.

Há todo um esforço de remodelação da linguagem, de modo a manipular a opinião pública. O caso de uma transexual acusada de pedofilia, por exemplo, a quem usuários no Twitter/X se referiam como homem, levou uma conta oficial da polícia local a “alertar” que não seriam admitidas referências à acusada como sendo alguém do sexo masculino, independentemente dos crimes pelos quais seria julgada. Mulheres que sofreram lesão corporal, cuja autoria fora de transexuais, entrariam para as estatísticas como vítimas de outra mulher, não de um homem. A ideologia, portanto, prevalecia sobre a biologia.

Os próprios gays e lésbicas têm sido criticados, quando não coibidos, com relação à própria orientação sexual. O que antes era a própria definição da homossexualidade, ou seja, a atração por pessoas do mesmo sexo, tem sido tratado como “fetichismo genital”, pela militância da ideologia de gênero. Uma lésbica que se recuse a relacionar-se com uma mulher transexual que também goste de mulheres, por causa do seu (“dela”) pênis e outros atributos físicos tipicamente masculinos, estaria a discriminando, sendo preconceituosa e intolerante.

O que antes representou uma vitória para um homem gay, ou seja, a liberdade de poder declarar e viver sua sexualidade com outro homem sem sofrer repressão (até mesmo estatal) por isso, hoje é visto como constrangimento para pessoas trans; recomenda-se, pois, que não se reafirme sua sexualidade em função da genitália, mas do “sentimento” das outras pessoas, que podem sentir-se homens ou mulheres independentemente de seu “sexo biológico”, que se tornou, para essa ideologia, apenas outra ferramenta de opressão.

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Mudanças climáticas e caça às bruxas

Séculos atrás, mulheres já foram perseguidas e acusadas de bruxaria, torturadas até a confissão, que por sua vez justificava a sua pena — de morte. Mas a acusação que recaía sobre as supostas feiticeiras era bem peculiar: a de alterar o clima, causando prejuízos à navegação com “ventos desfavoráveis” ou mesmo fazendo as temperaturas despencarem, ocasionando escassez de alimentos.

Hoje, as “bruxas” são todos aqueles que ousem questionar, ou apenas defender que se possa discutir a questão das “mudanças climáticas”, já mencionada por vezes como “emergência climática”, de modo a influenciar a percepção do público sobre a alegada urgência do problema. Se nenhuma “bruxa” da atualidade vai para a fogueira ou para a forca pela audácia de ter dúvidas quanto ao fenômeno (ou de defender que se as tenha), é praticamente certo que vá ser “queimada”, em sentido figurado, até a completa carbonização social e moral do ostracismo.

‘Hiper-racialização’, vergonha branca e os cosplayers de minorias

Aspectos de raça, cor e origem nacional têm papel fundamental na histeria ideológica que O’Neill analisa em sua obra. A agenda racialista, avalia, jogou por terra as conquistas dos movimentos dos direitos civis nos Estados Unidos, por exemplo. A luta, ou melhor, o sonho de Martin Luther King, de que um dia seus filhos fossem julgados pelo valor de seu caráter, e não pela cor de sua pele, foi abandonado por uma militância que busca a afirmação e a segregação permanente das raças. Aos negros, caberia reconhecer sua dor, e a fundação do país não na Revolução Americana, mas no desembarque dos primeiros escravos africanos. Aos brancos, uma perene vergonha e reconhecimento de sua violência ancestral e privilégio atual, um ajoelhar-se (literalmente) e desculpar-se por ser branco, persistentemente.

Tamanha seria a nobreza de compor uma dessas populações oprimidas, e a vergonha de ser um branco herdeiro do privilégio do opressor, que um fenômeno lógico aconteceu. Norte-americanos de origem europeia e judaica, por exemplo, passaram a falsificar o próprio histórico, apresentando-se como negros e indígenas, com direito a adereços, maquiagens, perucas e o que mais ajudasse a disfarçar a sua natureza branca. E poderiam ainda usufruir das vantagens acadêmicas, midiáticas e financeiras que seu novo status de oprimido lhe concedia.

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Ódio ‘do bem’ e desprezo ao cidadão comum

Com seu estilo de escrita e desenvoltura ao expressar-se, Brendan O’Neill brinda o leitor com uma análise clara das consequências que tamanha insanidade ideológica geraria para a sociedade ocidental. Uma delas é o que, no Brasil, chamaríamos de ódio “do bem”. Ora, se há um conjunto de ideias e valores que são condenados pela “cultura do cancelamento” como “discursos de ódio”, o mais natural é que se legitime exatamente o ódio direcionado a todas essas ideias e valores. Aqueles que ditam o que deve ser odiado se arrogam o direito de exercer o ódio mais virulento, pois ele seria benéfico, “do bem”.

Assim acontece com os “suínos” eleitores do Brexit, que contribuíram em peso, por causa de sua expressão eleitoral, à saída do Reino Unido da União Europeia, em 2016. Uma gente pouco escolarizada, brancos com tom de pele rosado como cortes de carne de porco, em maioria velhos, que levaram todos os britânicos esclarecidos ao retrocesso do Brexit. O ódio direcionado a “essa gente”, por exemplo, seria legítimo, como o é com relação a mulheres lésbicas que ousem rejeitar “mulheres com pênis”.

Palavras machucam? Sim, e tudo bem

Ao ser confrontado com a ideia de que “palavras machucam”, é normal que alguém com senso das proporções rechace de imediato tal afirmação. Afinal, “paus e pedras podem ferir”, mas palavras são apenas palavras. Entretanto — e aqui O’Neill nos agracia novamente com a sua sagacidade —, esse menosprezo pelas palavras é uma cilada que todo defensor da liberdade de expressão deve evitar. Porque palavras têm o seu poder, inclusive o de machucar. Palavras, entendidas como manifestação de ideias, têm a capacidade de destruir regimes, sistemas e estruturas sólidas inteiras. Não à toa, o controle da linguagem, a destruição da inteligência, da cultura, das tradições e das instituições, por meio da substituição das palavras autorizadas a circular, é a principal arma das elites culturais para controlar o pensamento dos indivíduos e o comportamento das massas.

As recentes derrotas políticas da esquerda no mundo mostram uma reação real — ainda tímida, é verdade, mas real — às pautas progressistas e identitárias

Tais elites compreenderam e exercem o poder da palavra, que inclui o de machucar. Portanto, defender a liberdade de consciência, de pensamento e de expressão, contra os “odiosos” mecanismos de controle que censuram o que classificam como “discurso de ódio” para assim eliminar o dissenso, passa por assumir e exaltar a plenitude das palavras, das ideias, de sua livre circulação. O herege hodierno, portanto, representa a resistência à hegemonia e ao controle total do pensamento do indivíduo.

PT censura Revista Oeste
Ilustração: Jorm S/Shutterstock
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A reportagem de Oeste conversou com Pedro Henrique Alves, editor-chefe da LVM, responsável pela publicação do livro O Manifesto Herege no Brasil. Confira.

O que despertou o interesse da LVM em traduzir e publicar a obra para o público brasileiro? 

Como trabalhamos diretamente com o ambiente cultural e político, notamos o crescimento de um sentimento anti-iluminista, antiliberal, tanto na sociedade organizada quanto, mais ainda, no mainstream e nos setores de produção cultural — como as editoras, por exemplo. É notório que pensamentos conservadores e liberais, bem como, muitas vezes, a mais simples constatação lógica da realidade, passaram a ser tachados autoritariamente de “preconceituosos”, “fascistas”, entre outros. Em um tempo antiliberal como este, obras que servem de aríete político, como “cafeína” de realidade, são necessárias para salvaguardar e garantir a sanidade do debate.

Vocês já observam semelhanças entre o cenário descrito e criticado por O’Neill — nos âmbitos cultural, social, político e midiático anglo-saxão — e o cenário brasileiro? Ou, talvez, serviria de um ‘alerta’ sobre o que podemos começar a observar por aqui futuramente (em breve ou não)?

Sim, claramente. Logo no primeiro capítulo, intitulado “O pênis dela”, Brendan O’Neill relata várias ocasiões, principalmente na Europa, em que jornais consagrados e instituições estatais e não estatais começaram a utilizar o termo “pênis dela” para referir-se a transexuais, isto é, homens que se identificam como mulheres, e, assim, a aceitar uma imposição ideológica irracional, seja na perspectiva lógica da realidade, seja na própria construção semântica da língua. Recentemente, aqui no Brasil, a Universidade de São Paulo promoveu um painel denominado “A história do corpo e a saúde das mulheres com próstata”. A irracionalidade ideológica não tem fronteiras nem nacionalidade. A linguagem neutra, para utilizar outro exemplo, há poucos meses chegou a ser considerada seriamente no país, até mesmo por lexicógrafos e eruditos. Quando a realidade é subjugada, qualquer coisa é viável; no mundo “psicodélico” de uma ideologia progressista, tudo é possível; basta sacrificar no altar da histeria coletiva a razão humana mais elementar.

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O Brasil está paulatinamente descobrindo uma sólida literatura anti-woke que, há poucos anos, começou a combater essa onda ideológica que assola — principalmente — a América do Norte e a Europa. As recentes derrotas políticas da esquerda no mundo mostram uma reação real — ainda tímida, é verdade, mas real — às pautas progressistas e identitárias. O’Neill, na minha opinião, escreveu um dos livros mais sucintos e bem argumentados para desconstruir essa cortina alucinógena criada pelo progressismo esquerdista. A edição que sairá na primeira metade de janeiro de 2024 promete ser um livro de fácil acesso, tanto pelo linguajar despojado e satírico de O’Neill quanto pela lacuna que ele vem suprir no mercado editorial brasileiro: a de um texto de fácil leitura sobre um tema social complexo, quiçá até “proibido” de ser questionado atualmente.

Leia também “Brendan O’Neill, editor da Spiked: ‘Estamos numa nova era de irracionalismo'”

3 comentários
  1. Laura Teixeira Motta
    Laura Teixeira Motta

    Muito bom que haja editoras brasileiras empenhadas em mostrar ideias “conservadoras”, que no fundo nada mais são do que o velho bom senso.

  2. Rosileide S Matos
    Rosileide S Matos

    Hoje é necessário dizer o óbvio! Obra grandiosa…

  3. Ana Kazan
    Ana Kazan

    Obra muito bem vinda e necessária,

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