“A universal and perpetual peace, it is to be feared, is in the catalogue of events, which will never exist but in the imaginations of visionary philosophers, or in the breasts of benevolent enthusiasts.”
[“Uma paz universal e perpétua, é de se temer, está no catálogo de eventos que nunca existirão senão na imaginação de filósofos visionários ou no peito de entusiastas benevolentes.”]
(James Madison, quarto presidente dos EUA)
Embora largamente ignorado por um establishment midiático que, cada vez mais homogêneo sociopoliticamente (graças à ação de entidades como o Poynter Institute, financiado por George Soros e Pierre Omidyar para formatar o jornalismo mundial em favor de suas causas), trocou o jornalismo pelo agitprop globalista, o grande levante dos agricultores europeus contra as políticas ambientalistas draconianas impostas pela União Europeia (UE) parece ter surtido efeito. Segundo informa uma matéria de Oeste, a UE recuou diante da dimensão, do alcance e da intensidade do movimento, e desistiu do corte de defensivos agrícolas.
O recuo foi anunciado na última terça-feira, 6, por Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. Ao que parece, fracassou desta vez a estratégia globalista detalhada há mais de 20 anos pelo antecessor de Leyen, Jean-Claude Juncker, que confessou ao jornal alemão Der Spiegel, em 26 de dezembro de 1999: “Nós primeiro decidimos algo, e então lançamos a ideia, aguardando um pouco para ver o que acontece. Se não houver grandes rebeliões e gritos de protesto, porque a maioria das pessoas nem sequer entendeu o que foi decidido, nós vamos em frente — passo a passo, até não haver mais volta”.
No caso dos fazendeiros europeus e seus muitos apoiadores, para o azar de Juncker, Leyen e demais globalistas, houve, sim, grandes rebeliões e gritos de protesto. Para uma significativa parcela da população europeia, já foram longe demais as taras ideológicas e o desprezo elitista pelo common sense dos burocratas sem rosto de Estrasburgo e Bruxelas. O episódio marca mais um capítulo no grande conflito que, conquanto inexistente para a imprensa dita “profissional”, tem marcado a história contemporânea desde, ao menos, o fim da guerra fria: a disputa entre os globalistas (ou defensores da “governança global”) e os soberanistas.
A bem da verdade, embora envolto em outros trajes, essa luta esteve presente em vários outros momentos da história, remontando até mesmo aos relatos bíblicos sobre o surgimento de Israel, representante prototípico do desejo de soberania nacional (donde, por exemplo, sua gigantesca influência sobre os “Pais Fundadores” dos Estados Unidos) em face dos grandes experimentos imperiais da época, a exemplo dos impérios egípcio, assírio e babilônico. E, como sugere Yoram Hazony, o globalismo nada mais é que uma versão contemporânea de imperialismo.
Com efeito, desde o alvorecer da política, muitos têm imaginado uma autoridade universal que pudesse garantir paz e harmonia ao mundo. Na Idade Média, por exemplo, Dante Alighieri já defendia em De Monarchia um império mundial liderado pelo imperador do Sacro Império Romano-Germânico, tido por sucessor histórico dos imperadores romanos. Segundo julgava o poeta, apenas a sujeição geral dos povos a uma autoridade global única poderia propiciar a paz e a justiça universais. Durante o Iluminismo, Immanuel Kant — o patriarca intelectual do globalismo contemporâneo — pregou a favor de uma federação mundial de repúblicas que formariam um “poder unido, com decisões governadas pela lei de uma vontade unida”, de modo a criar e manter o que o filósofo chamava de “a paz perpétua”. Já no século 20, um vasto rol de intelectuais e cientistas proeminentes — como H. G. Wells, Arnold Toynbee, Bertrand Russell, Robert Maynard Hutchins, William Douglas, Edmund Wilson, Carl Sagan, entre outros — defendeu a ideia de governo mundial ou algum tipo de sistema federal mundial. Impactado com a recém-encerrada Segunda Grande Guerra, ninguém menos que Albert Einstein propôs em Por um Governo Mundial, de 1946: “Deve-se criar um governo mundial, capaz de resolver conflitos entre nações por decisão judicial. Esse governo deve ser baseado em uma constituição clara, aprovada pelos governos e pelas nações, e que lhe dê a única disposição para o uso de armas ofensivas”.
Assim como outras figuras de proa dos mundos intelectual e político da época, Einstein fora influenciado por um livro publicado no ano anterior. Intitulado Anatomia da Paz, e autorado por Emery Reves, o livro foi escrito no rescaldo imediato do bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki. Escritor e editor badalado, muito amigo de Winston Churchill, Reves afirmava que a paz só poderia ser alcançada sob um governo mundial. Na Carta Aberta ao Povo Americano, que acompanhava a obra, o autor sugeriu que a Carta da ONU de 1945 era inadequada, uma vez que, “ao manter as soberanias absolutas dos Estados-nações rivais”, impedia “a criação de uma lei superior”. No lugar da Carta da ONU, dizia Reves, “devemos visar a uma constituição federal do mundo, uma ordem legal mundial funcional, se esperamos evitar uma guerra mundial atômica”. A Carta de Reves foi endossada por senadores americanos, ministros da Suprema Corte dos EUA, intelectuais como Thomas Mann e Mortimer Adler, além de um alto oficial da CIA. E, claro, também por Einstein.
Desde então, a ideia de governo mundial, posteriormente atenuada pelo eufemismo “governança global”, tem marcado firme presença na mente e no coração da elite política, intelectual e financeira do mundo ocidental. Em 1999 (coincidentemente, o mesmo ano em que o ex-presidente da Comissão Europeia confessou o modus operandi globalista ao Der Spiegel, conforme citação acima), o famoso âncora da CBS Walter Cronkite, em palestra na Associação Mundial Federalista, resumiu o sentimento geral das elites globalistas cansadas de guerra (e da insubmissão dos cidadãos comuns do mundo às suas fórmulas infalíveis para a felicidade universal):
“A muitos de nós parece que, se quisermos evitar o eventual conflito mundial catastrófico, devemos fortalecer as Nações Unidas como um primeiro passo em direção a um governo mundial com um legislativo, executivo e judiciário, e uma polícia para fazer cumprir suas leis internacionais e manter a paz. Para fazer isso, é claro, nós americanos teremos que ceder parte da nossa soberania. Isso exigiria muita coragem, muita fé na nova ordem… Hoje, precisamos desenvolver estruturas federais em nível global. Precisamos de um sistema de leis mundiais impositivas — um governo mundial federal democrático — para lidar com problemas mundiais” [grifo meu].
Assim pensaram e pensam os globalistas, os quais, por meio de seu poderoso aparato de propaganda e imposição de consensos no debate público, costumam patologizar os opositores, estigmatizando-os como teóricos da conspiração, nacionalistas xenófobos, arcaicos, obscurantistas, inimigos da globalização etc. Por incrível que pareça, esses apologistas da “governança global” não se vexam mesmo de utilizar o linguajar tradicional das democracias liberais contra os críticos, como se a ideia globalista fosse mera extensão quantitativa dessa longa tradição política ocidental, e não, como de fato o é, a sua completa negação.
Segundo os representantes das elites globalistas reunidos em Turtle Bay, Genebra, Davos, Haia e onde quer que o G20 se encontre, a governança global é uma evolução natural da história, contra a qual apenas mentalidades fossilizadas se pronunciariam. Líderes políticos e intelectuais de renome nos dizem que os problemas globais contemporâneos são demasiado complexos para o “obsoleto” sistema de Estados-nações. Alegam que “problemas globais requerem soluções globais”, e que a soberania deve ser redefinida como algo que precisa ser “compartilhado” ou “agrupado”. Querem nos convencer, em suma, de que não há qualquer contradição entre as noções de federação mundial e de democracia, e de que “um governo mundial democrático” — para falar como Cronkite — é possível.
Os globalistas argumentam que, na “governança global”, os eleitores têm mais poder real como resultado do “agrupamento” de sua soberania em órgãos transnacionais que exercem maior influência nos assuntos internacionais. O que eles não explicam é como os eleitores podem realmente exercer esse poder
Mas não é. Porque, entre o internacionalismo tradicional com o qual os cidadãos das nações soberanas ocidentais estão acostumados e o transnacionalismo proposto pelos advogados da “governança global”, há uma diferença irredutível de natureza. E a diferença é magistralmente resumida por um próprio adepto do partido da governança global, o senhor John Ruggie, professor de relações internacionais e ex-vice-secretário-geral das Nações Unidas:
“Simplificando, as instituições do pós-guerra, incluindo as Nações Unidas, foram construídas para um mundo inter-nacional. Mas, hoje, entramos em um mundo global. As instituições internacionais foram projetadas para reduzir as fricções externas entre os Estado, e o nosso desafio hoje é criar formas mais inclusivas de governança global.”
O projeto de governança global não é internacional no sentido tradicional de uma relação entre Estados soberanos. Trata-se, em vez disso, de um grande experimento ideológico e institucional que promete ser de significado histórico mundial, uma tentativa de criar novas formas políticas acima e para além do Estado-nação democrático liberal. De acordo com uma célebre definição de Abraham Lincoln, o Estado-nação soberano é uma “comunidade política sem um superior político”. O movimento de governança global visa a estabelecer uma comunidade política global que seria, justamente, superior aos governos nacionais das democracias liberais.
O conceito de soberania nacional democrática e o conjunto de ideias e instituições construídas sobre ele refletem as crenças e o senso comum da esmagadora maioria dos cidadãos dos países do Ocidente (outrora) democrático. Americanos, australianos, britânicos, italianos, canadenses (ao menos, antes de Trudeau) e — vejam vocês! — até mesmo brasileiros imaginam ser povos autogovernados, que resolvem questões políticas domésticas por meio do livre debate democrático e do voto majoritário. A despeito de queixas ocasionais sobre a política e os políticos, todos parecem preferir esse modo de vida. Concordando com Churchill, tendem a ver a democracia como o pior regime exceto todos os outros, e provavelmente recusariam a oferta de substituir suas democracias por algum outro sistema político.
Eis que — voilá! — a “governança global” é precisamente esse outro sistema político ou regime. Consiste em retirar o poder político supremo dos parlamentos e congressos responsáveis perante os eleitorados nacionais em Estados soberanos e investi-lo em tribunais, burocracias, ONGs e vários órgãos transnacionais que prestam contas apenas a si mesmos ou a outros órgãos transnacionais. No sistema internacional ortodoxo, a legitimidade flui de baixo para cima: a partir dos eleitores nas eleições, por meio de governos soberanos, via tratados, para organizações internacionais com poderes especificados e limitados previamente definidos. Sob a “governança global”, ao contrário, a legitimidade flui de cima para baixo: partindo de elites pós-nacionais abrigadas em instituições transnacionais, via tratados em aberto, em direção a governos pós-soberanos detendo poderes regulados por burocratas e advogados transnacionais, e só daí então, finalmente, para os eleitores.
Os globalistas argumentam que, na “governança global”, os eleitores têm mais poder real como resultado do “agrupamento” de sua soberania em órgãos transnacionais que exercem maior influência nos assuntos internacionais. O que eles não explicam é como os eleitores podem realmente exercer esse poder. Como podem emendar uma lei internacional? Eleger os membros da Comissão Europeia? Apelar de uma decisão do Tribunal Penal Internacional? Influenciar as agendas da União Europeia (o “laboratório da governança global”, como a chamou certa vez Pascal Lamy, outro ex-presidente da Comissão Europeia), como a sua tentativa de abolir a pena de morte, legalizar universalmente o aborto e impor o ambientalismo radical sobre os Estados-membros? Os eleitores não podem fazer nada disso porque lhes falta a sanção democrática final: eles não podem se livrar dos burocratas transnacionais. Não são os eleitores, mas as elites que dirigem os tribunais, as ONGs e os órgãos transnacionais que exercem o poder soberano em uma luxuriante selva de comitês. O globalismo é, portanto, mais uma tentativa de vender um governo das elites sob um disfarce democrático. Eis, aliás, um assunto no qual o público brasileiro se tornou expert. Há uma verdade que, para o desespero dos velhos cartéis midiáticos, a langue de bois globalista, com seus eufemismos e abstrações, não tem conseguido ocultar: partilhar a soberania é o mesmo que perdê-la. Uma coisa é assinar um tratado internacional com obrigações claramente definidas para com outras nações. Isso é internacionalismo, calcado no exercício da soberania. Outra coisa é assinar um tratado idealizado por entidades pós-nacionais e burocratas sem rosto, que impõem suas exigências atropelando a vontade soberana dos eleitorados nacionais. E isso é transnacionalismo, calcado no exercício da submissão. É exatamente o que o atual mandatário brasileiro, por exemplo, quer impor ao Brasil. Resta saber se o povo brasileiro, amparado pelo artigo 1º de sua Constituição, terá a clareza, a resiliência, o anseio por liberdade e a capacidade de organização demonstrados pelos agricultores europeus e por soberanistas recém-despertos ao redor do mundo.
Leia também “O que é um progressista?”
Impressionante a vitalidade e resistência de George Soros: noventa e tantos invernos. Dá o botão até hoje.
O globalismo veio da “terra plana”, um lugar onde os mairores negociadores do mundo, resolveram criar o comunismo, para frear o desenvolvimento dos povos e das nações, acreditavam piamente que, diminuindo o número de negociadores do mercado, a realidade da manipulção financeira do mercado seria mais facilmente realizável e seu poder político seria maior. Estão atrás da realização deste plano até hoje!
A ideia do globalismo é uma estupidez sem precedentes na história da humanidade.
Pelo planeta Terra já passaram várias civilizações, culturas, costumes e valores que as diferenciam e justamente por isso as desenvolveram e enriqueceram.
Não cabem todos no mesmo balaio.
Isso é 1984 a obra de ficção de George Orwell tornando-se realidade.
Pensei que sabia bastante sobre o globalismo, mas depois de ler esse magnífico texto realmente fiquei assombrado pelo perigo do fim da nossa liberdade, é assustador, e os globalistas estão seguindo a risca a cartilha do avanço globalista e ele está mais perto de nós do que supúnhamos, temos que sair de nossa zona de conforto se quisermos manter nossa liberdade e soberania.
Excelente texto, como sempre do Flávio só uma opinião contrária: “assinar um tratado internacional com obrigações claramente definidas para com outras nações”, já é, nos dias atuais, perda da soberania, da forma como são impostas as cláusulas dos acordos
ARTIGO MAGISTRALMENTE ESCRITO POR FLAVIO GORDON.
Um rastreamento histórico destas idéias desde os primórdios. Estas idéias para mim são bastante esquisitas. Faço uma comparação – não sei se muito adequada – mas imagina cada família não ser dona de si – ser dominada por OUTROS DOMINANTES. Da mesma forma acho estranho países não serem totalmente independentes – assim como estados de um país – não serem independentes. A dominãncia de territórios não deveria passar de cidade/municipios, estados e país. Precisamos lembrar que territórios – muitas vezes – são limitados não só territorialmente mas , principalmente, CULTURALMENTE. E não se deve querer modificar – por pensamentos de outros – uma cultura. Vamos estragar tudo…O mundo deveria largar destas idéias e trabalhar pela amizade entre CULTURAS.
Os “sem rosto” HABITUALMENTE de maneira COVARDE, querendo tratar a personalidade individual dos povos como se fôssem “gado”.
Os Estados Unidos abrindo mão de parte de sua soberania para compartilhar a governança mundial com outros países, alguns semi analfabetos em vários sentidos? Não será isso que impedirá o uso absurdo e monstruoso de bombardeio atômico. Toda essa turma não consegue nem seguir plenamente a “própria CONSTITUIÇÃO, e vão convencer os povos a obedecerem uma Constituição mundial? DESCARACTERIZAR A PERSONALIDADE DOS POVOS, COM SUA RIQUEZA E INDIVIDUALIDADE? Nada disso vai se concretizar, porque o mal a ser combatido não é nossa pluralidade, mas a DEMASIADA CORRUPÇÃO MUNDIAL.
Uau, Flávio! Que texto! Se alguém não entendia direito o que é globalismo, depois desse texto passou a saber muito bem o que é e o problema que representa.
Excelente texto, uma verdadeira aula, e gostaria muito de ver uma conversa do autor com o Fernão Lara Mesquita, espero que esta sugestão chegue a um dos dois…(ou melhor, que o próprio Flávio Gordon leia meu comentário)
Mais uma aula, mestre. Parabéns!
Sim. A União Europeia é um laboratório do Globalismo. O Mercosul é outro, um laboratório tupiniquim visando o mesmo fim. Parece que os povos estão percebendo aos poucos, para onde estão sendo conduzidos. Fica claro, ainda, que quem vai comandar esse “governo transnacional” não será o Ocidente. Talvez no início, pensavam que fosse, mas não será. Se o globalismo prosperar e atingir seus objetivos, a cultura ocidental greco-romana e a nossa moral judaico-cristã, estarão enterradas em cova rasa. Vamos aprender a comer cachorros e tomas sopas de morcegos.
Ótima análise !