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Edição 207

Lições do norte

São comoventes esses ensinamentos da democracia americana, sobretudo quando ocorrem no instante em que o regime de Maduro anuncia as próximas eleições sem a participação da oposição

Flávio Gordon
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No meu livro A Corrupção da Inteligência, apontei o que me parecia ser um fenômeno típico da realidade (in)cultural no Brasil contemporâneo: a literalização das piadas. Na ocasião, comparei o caso brasileiro com o que Karl Kraus identificara na Alemanha Nazista, e que consistia num desaparecimento da metáfora mediante a literalização de ditos populares de teor violento. A Alemanha do Terceiro Reich tornara-se tão absurdamente brutal que a realidade ultrapassara a capacidade de expressão figurada. Em seu A Terceira Noite de Walpurgis, o ensaísta austríaco menciona o terrível exemplo de literalização da metáfora “Salz in offene Wunden streuen” (“deitar sal em feridas abertas”), relatando um episódio em que um velho prisioneiro de campo de concentração, tendo cortado profundamente a mão ao descascar batatas, foi forçado pelos soldados nazistas a mergulhá-la em um saco de sal. Durante o regime nazista, sugere Kraus, a linguagem figurada converteu-se em realidade cotidiana, e “as flores da retórica passaram a ser cobertas por um orvalho de sangue”.

Livro A Corrupção da Inteligência, de Flávio Gordon | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Contrastando a situação alemã com a brasileira — que, já sob o lulopetismo, todavia ainda não se tornara tão sombria quanto hoje —, escrevi então:

“Graças a Deus, nada daquele horror se observa no Brasil (embora não estejamos livres de outros). Para a nossa sorte, a tragédia transmuda-se em comédia ao sul do Equador. Aqui, não é a violência metafórica que se literaliza, mas a piada. O sanatório geral do politicamente correto à brasileira abriu definitivamente as suas portas: para não ofender os alunos provenientes de famílias alternativas, escolas decidem banir o Dia das Mães e o Dia dos Pais; Monteiro Lobato é censurado e acusado de racista; Machado de Assis é ‘simplificado’ pela bagatela de R$ 1 milhão dos cofres públicos, de modo a tornar-se acessível aos pobres, que nossos bem-pensantes, com sua tocante condescendência, julgam intelectualmente incapazes; travestis passam a ser chamados de ‘neomulheres’; institui-se por decreto o dia nacional do encarcerado, a fim de elevar a autoestima dos presos; a tradicional torta ‘nega maluca’ vira torta ‘afrodescendente’; a funkeira Valesca Popozuda é tida por ‘grande pensadora contemporânea’; proíbe-se o comércio de arminhas de brinquedo como forma de ‘combater a violência’ e o de cigarrinhos de chocolate a fim de desestimular o tabagismo. Em algum momento, tudo isso já foi piada. Hoje, não mais. A realidade é tão absurda que se tornou impossível parodiá-la. O humor está sempre atrasado em relação ao cotidiano político e cultural de um país que, não por acaso, foi devidamente qualificado como ‘da piada pronta’.”

O portal de humor The Babylon Bee caçoou dessa previsível reação da mainstream media, publicando a seguinte paródia em forma de manchete: “Num duro golpe contra a democracia, a Suprema Corte decide que os eleitores poderão votar no candidato de sua preferência”

Um acontecimento dos últimos dias provou que, apesar de nos encontramos, enquanto nação, num contexto bem menos engraçado do que outrora, o fenômeno de literalização das piadas permanece tão singularmente nosso quanto a jabuticaba e a gambiarra. Eis o que ainda nos permite rir da tragicômica situação pátria, nem que seja de nervoso. Por “acontecimento dos últimos dias” me refiro à decisão da Suprema Corte americana de não tornar inelegível Donald Trump.

Donald Trump
A Suprema Corte americana decide não tornar inelegível Donald Trump | Foto: Reprodução/Redes Sociais/@reladonaldtrump

Na América, como era de se esperar, o evento caiu como um cataclismo sobre o campo esquerdista e a imprensa cativa do Partido Democrata. Como ilustração prototípica do pânico nas hostes anti-trumpistas, tivemos, entre outras, a manifestação do ultraesquerdista Keith Olbermann, jornalista da MSNBC que, em seu perfil no X, chegou a clamar pela dissolução da Corte: “A Suprema Corte traiu a democracia. Seus membros, incluindo Jackson, Kagan e Sotomayor, provaram ser ineptos em interpretação de texto. E, coletivamente, o ‘tribunal’ mostrou-se corrupto e ilegítimo. Deve ser dissolvido”.

No dia da decisão da Suprema Corte americana, o portal de humor The Babylon Bee caçoou dessa previsível reação da mainstream media, publicando a seguinte paródia em forma de manchete: “Num duro golpe contra a democracia, a Suprema Corte decide que os eleitores poderão votar no candidato de sua preferência”. Mal tivera tempo de me recuperar da gargalhada, e a realidade da imprensa brasileira veio me atropelar, fazendo com que a piada adquirisse braços e pernas, encarnando-se em figuras que, com semblantes de uma gravidade hilariante, me lançaram em novo ataque de riso — seguido, obviamente, por uma profunda depressão.

Em sua coluna no jornal O Globo, por exemplo, a blogueira antibolsonarista Míriam Leitão disse a sério, e literalmente, aquilo que The Babylon Bee dissera de zombaria: “Democracia norte-americana mostra sinais de fraqueza ao não barrar avanço de Trump”. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o também blogueiro antibolsonarista Reinaldo Azevedo (sujeito que, nalgum caminho de Damasco, experimentou uma súbita e arrebatadora conversão ao petralhismo) não pestanejou em sua coluna no portal UOL:

“Trump estar elegível demonstra que, no que diz respeito a segurança jurídica, segurança institucional e a própria segurança da democracia, nós temos instituições melhores do que as deles. Os Estados Unidos não têm um tribunal eleitoral, e a gente ter um tribunal eleitoral aqui é fundamental porque põe um pouco de disciplina naquela zorra eleitoral que eles têm lá, porque é uma bagunça.”

São mesmo comoventes essas lições de moral à democracia americana, sobretudo quando ocorrem no exato instante em que, na Venezuela, o regime de Maduro anuncia as próximas eleições sem a participação da oposição. Como era de se esperar de alguém para quem sempre houve democracia até “em excesso” na Venezuela, o mandatário brasileiro sai a campo para chancelar mais essa farsa eleitoral da ditadura chavista. Se a democracia americana dá sinal de fraqueza ao não barrar a oposição, imagina-se que a democracia venezuelana (e a sua prima-irmã, a brasileira) dê sinal de força ao fazê-lo. É precisamente o que pensa o campo autoproclamado “democrata” no Brasil contemporâneo, incluindo o atual mandatário e seus assessores de imprensa. Contra a “bagunça” da obsoleta democracia americana, nossos luminares exibem as glórias de uma democracia de ponta. A ponta do fuzil.

Maduro decretos | O anúncio dos decretos foi feito durante um discurso a milhares de pessoas na capital venezuelana | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
Na Venezuela, o regime de Nicolás Maduro anuncia as próximas eleições sem a participação da oposição | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Leia também “O velho truque comunista da inversão do Holocausto‘”

11 comentários
  1. GIORDHAN N REIS
    GIORDHAN N REIS

    Preciso como uma navalha, irônico como um estudante de 5 série. Graças a Deus, ainda existe boa informação.

  2. Marco Aurélio Oliveira De Farias
    Marco Aurélio Oliveira De Farias

    Excelente texto, Flávio Gordon. Seu livro já está na minha mira!
    Parabéns!

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    A imagem principal diz tudo. Voto na urna em papel, assim como foi em Portugal último final de semana. E o suprassumo TSE quer nos enfiar goela abaixo que seu sistema eletrônico é infalível. Canalhas!

  4. DONIZETE LOURENCO
    DONIZETE LOURENCO

    As diferenças entre as Constituições do Brasil e do Estados Unidos são gigantescas.
    A Constituição norte americana inicia com a frase:
    “Nós, o povo dos Estados Unidos…”, atribuindo ao povo o poder de delegar mandatos em seu nome;
    Em 230 anos a Constituição norte americana possui 7 artigos e 27 emendas.
    A Constituição brasileira inicia no seu artigo primeiro com o texto:
    Art 1º – A República Federativa do Brasil… Além de estarmos distante do conceito de Estado Federado, a CF atribuiu ao Estado os poderes para tomada de todas as decisões.
    Em 134 anos república – este foi o primeiro golpe político do país – estamos na sétima Constituição com 250 artigos e mais de uma centena de emendas e outros penduricalhos jurídicos.
    Não é necessário ser jurista renomado para entender que estamos mais próximos do abismo da segurança jurídica do que de instituições fortes que agem no estrito rigor da lei vigente.

  5. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Flavio, não nos surpreendem esses blogueiros decadentes do Consórcio da Imprensa, mas, com desgosto por ter sido tucano desde a fundação do partido até 2019, ano que se revelaram sem caráter FHC, DÓRIA, JEREISSATI, juristas e economistas, ouvir aos 78 anos Alckimin no altar de uma igreja, dizer esta demência: “quis o destino que Flavio Dino fosse Ministro da Justiça e Segurança na hora certa e no momento certo para ajudar a salvar a democracia e evitar o golpismo”.
    Dá para entender que um fervoroso cristão católico como Alckimin, sem qualquer sentimento humano com os patriotas democratas sem antecedentes criminais sendo condenados a até 17 anos em última instância, pela farsa do 8 de janeiro promovida pelo seu homenageado, falar tamanha blasfêmia?. Como dorme um sujeito desses?. Creio que os TUCANOS foram os arquitetos desse desastre que esta acontecendo em nosso pais com essa aliança LULA/TSE/STF.

  6. James
    James

    Lições de morte !
    O analfabetismo funcional do povo brasileiro sempre foi explorado por diversas entidades maléficas, a estratégia adotada, foi dopar ao povo, que passou décadas na mais perfeita ignorância, de sua própria existência, o nome que deram para essa vassalagem, essa perfídia foi “democracia”. Qualquer pessoa ou grupo de pessoas que venha a revelar as etranhas do status quo, será duramente perseguida e marginalizada, vide o caso dos excelentes jornalistas brasileiros, que desvendaram o funcionamento do deep state e tiveram de se refugiar nos USA.
    Que autoridade moral, a mídia tupinuquim, tem para questionar às decisões da corte suprema norte americana, se não zela nem pela ética no jornalismo local e se comportam como um “coro de dependentes químicos” de verbas estatais?
    Jornalismo independente, livre e inteligente, é algo impensável para a época da implantação do modelo que foi implantado no Brasil mas, está acontecendo.
    Quero rir, mas o grau de perversão intelectual de nossas instituições é tamanha, que visualizo a nação como um grande bingo, que escolhe seus líderes de tempos em tempos , entre pessoas pré aprovadas pelo deep state e transforma a representividade popular em um mero sonho, combatido por forças demoníacas, que sugam as riquezas do país, desde tempos impensáveis!
    Precisamos de uma reforma eleitoral, para ONTEM !
    Como acreditar que um povo que passou 30 anos assistindo a novelas, caiu no conto do vigário da novela do capitólio ?
    LAVAGEM CEREBRAL !
    Vi youtubers, sendo avisados do golpe e da armadilha mas, a fé cega na mão amiga e no braço forte, colaborou para essa reprise de quinta categoria, onde pessoas que não foram eleitas, estão sendo politicamente julgadas por acreditar na última instituição que existia, dentro do mar da decadência moral da exploração, regida pela “Lei de Gerson”.
    O jogo do poder, não é para amadores, Trump está mais habilitado para negociar com os globalistas, ele é um bilionário e Biden ? Coitado ! Não passa de uma ilusão fabricada, para um povo que pensa como o povo brasileiro!
    #Déjàvú

  7. Reginaldo Corteletti
    Reginaldo Corteletti

    Aqui a constituição foi prostituida, enchertada, produzindo todo tipo de injustiças. Está na hora de se elaborar uma nova com a reestruturação do Estado brasileiro; que impeça os ímpios de fazerem do Brasil s sua prostituta de plantão.

  8. Leonardo Abreu
    Leonardo Abreu

    Muito bem escrito. Parabéns.

  9. Osmar Martins Silvestre
    Osmar Martins Silvestre

    Não acompanho o tal de azevedo, acho-o idiota demais para o meu gosto, mas guardo a sua figura com um chapeuzinho ridículo para dizer que tem algo na cabeça.

    1. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
      Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

      kkkkk, gostei.

  10. Paulo Ricardo
    Paulo Ricardo

    Deixei de ler Reinaldo Azevedo desde sua misteriosa conversão ao esquerdismo, mas, pelo trecho reproduzido neste artigo, dá para ver que seus escritos pioraram muito não só no conteúdo, mas também na forma. Quando era conservador, ele tinha um estilo muito melhor. Mais uma comprovação de que, cada vez mais, o esquerdismo emburrece.

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