Eh, oh, oh, vida de gado
Povo marcado, eh!
Povo feliz!
(Zé Ramalho, Admirável Gado Novo)
Perdoem, agricultores. Caráter é coisa de pecuarista. A pecuária vai bem no Brasil, para frigoríficos e supermercados. Já para pecuaristas, nem tanto. O pecuarista precisa ter muito caráter para lidar com esse gado. Caráter designa a maneira habitual de agir e reagir, própria a cada indivíduo. Ele evoca firmeza, coerência e é um sinal distintivo, exclusivo de cada pessoa. Inerente desde o nascimento, o caráter é positivo. Se negativo, é adjetivado: “mau-caráter”, “sem caráter”, “caráter duvidoso”, “fraco de caráter”, e por aí vai.
No mundo rural, sobretudo no Nordeste, só existem dois tipos de pessoas: as com caráter e as sem. “Reputação é você fazer em frente às pessoas; caráter é você fazer na ausência delas”, dizem. Ou: “O tempo desmascara aparências, revela a mentira e expõe o caráter”. Palavra densa, “caráter”. Designa cada sinal da escrita e tipografia (letra, número, pontuação etc.).
Para a filosofia, por pleonasmo ou tautologia, “caráter” designa um conjunto de caracter-ísticas relativas à maneira de agir e reagir de um indivíduo ou grupo. Na psicologia, pelo menos para Jacques Lacan, o caráter é aquilo que não se oferece à interpretação. Qual é a origem ou caracter-ística da palavra “caráter“, escrita com sete caracteres? A resposta está na pecuária.
Desde o Neolítico, animais domésticos são marcados. Na Grécia Antiga, “caráter” (χαρακτήρ) designava o ferro utilizado para marcar o gado: o gravador. A marca dava identidade, proteção mágica e pertença ao animal. Em cada ferro havia um sinal ou emblema, por ele produzido ou impresso, daí seu segundo sentido: marca. Em latim, “character” também designava o instrumento e a marca a ferro quente.
Condenados eram marcados na testa a ferro na Roma Antiga. Levavam à vida o traço indelével, a cicatriz identificadora do crime cometido, visível a todos. Com o tempo, passaram a ser marcados nas mãos e pernas. No Ancien Régime, marcavam-se com “V” ladrões (voleur); com “GAL”, condenados às galeras; com “F”, falsários etc. A prática só foi abolida em 1832.
Com o advento do Cristianismo, o nome do instrumento migrou à caracterização da pessoa e pertença, pela simbologia do batismo. Nele, o batizado recebe a marca da fé, o sinal da cruz, “por caráter indelével” (Cânon 849). Os marcados pelo batismo pertencem a Cristo. Essa marca divina, Dominicus character, ninguém pode tirar, nada pode apagar. Batismo é para sempre. Imprime caráter sagrado, inviolável e santo nas crianças. Batiza-se para a criança “ter caráter”.
Na pecuária, o ferro de marcar, o caráter, está saindo de cena. Em 2024, o governo de São Paulo dispensou a marcação a ferro na face das bezerras para identificar vacinação contra brucelose. Basta um brinco. Recebeu elogios de pecuaristas e ambientalistas, focados no bem-estar animal. O cuidado com o bem-estar animal se reverte em produtividade. Marcar com ferro é prática a ser eliminada. Nada simples com furtos e roubos de gado tão frequentes no meio rural. Há recursos alternativos (tatuagens, brincos, brincos eletrônicos, chips etc.) que não geram sofrimento ou trauma ao animal. É tempo de acabar com a insegurança e o caráter na (e não “da“) pecuária.
Não é simples marcar, quanto mais rastrear, um rebanho bovino com mais de 200 milhões de cabeças. Dos 6 milhões de estabelecimentos agropecuários do Brasil, 2,5 milhões dedicam-se à pecuária. Deles, 1,9 milhão tem menos de 50 cabeças; e 600 mil, mais de 50 cabeças. “Quem planeja o que não executa e depois avalia o que não fez” muge políticas e controles aos governos para os pecuaristas.
O rebanho brasileiro dobrou em relação aos anos 1970. Em três décadas, cresceu 13%; a produção de carne, 108%; e a produtividade por área de pasto, 147%. A área das pastagens diminuiu 16% (Revista Oeste, edição 135). Como crescem rebanho e produção de carne e cai a área das pastagens? Os ganhos de produtividade nas pastagens decorrem de novas variedades de capins, pastos bem manejados, mais produtivos, com maior qualidade nutricional, mais resistentes a seca, cigarrinhas e outras pragas, além da suplementação mineral, proteica e de outros aditivos. Ainda há muito a avançar: apenas metade do rebanho bovino recebe suplementação mineral adequada.
No país, em graus variados, aumentou a natalidade nos rebanhos, diminuiu a mortalidade, houve redução na idade de abate e crescimento no desfrute do rebanho. A qualidade da carne, do couro e de outros produtos da pecuária melhora, bem como a de circuitos de distribuição de insumos genéticos, nutricionais e farmacêuticos, e de sistemas de gestão.
No mundo não tem sido assim. O rebanho mundial, outrora superior a 1 bilhão de cabeças, hoje é inferior a 950 milhões. E segue em queda. O rebanho brasileiro é o maior e representa 22% dos bovinos ruminando e mugindo mundo afora. Depois do Brasil, em efetivo decrescente, estão Índia, Estados Unidos, China, União Europeia, Argentina e Austrália.
Em 2023, pela estimativa do IBGE, foram abatidos mais de 34 milhões de bovinos (dados formais nos circuitos de comercialização). A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec) estima valores mais elevados com dados informais de abates em fazendas, autoconsumo etc.
A pecuária é exemplo de economia circular e upcycling, como ilustra a Associação Brasileira de Reciclagem Animal (Abra). Por exemplo: como por aqui os bois têm quatro patas, o abate gerou mais de 140 milhões de cascos, destinados à produção industrial de farinhas, pó de extintor, adesivos, condicionador, xampu, papel de parede, compensados e laminados, vernizes, tintas, mordedores para cães etc. (Revista Oeste, edição 115).
Do abate bovino em 2023 resultaram 10,8 milhões de toneladas de carne (TEC). Desse total, 72% atenderam ao consumo interno. O volume exportado foi recorde: mais de 2,5 milhões de toneladas. Ainda assim, segundo a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), a receita das exportações de carne bovina para 173 países caiu de US$ 13 bilhões em 2022 para US$ 10 bilhões em 2023. O preço da carne bovina despencou de US$ 5,7 mil por tonelada em 2022 para US$ 4,6 mil por tonelada em 2023.
Cinco estados respondem por 76% da exportação de carne bovina. São Paulo lidera com 575 mil toneladas (23%). Seguem Mato Grosso, com 520 (21%); Goiás, com 344; Mato Grosso do Sul, com 243 (9,5%); e Minas Gerais, com 229 mil toneladas (8,5%).
Dadas a dimensão da pecuária e a estruturação profissional do setor, um excedente da ordem de um quarto da produção faz do Brasil o maior exportador mundial de carne bovina. E o mundo quer mais carne.
Em 50 anos, o consumo de carne quase dobrou no planeta: de 34 milhões de toneladas (1970) para cerca de 58 milhões (2022). Isso resulta do crescimento da população de 3,7 bilhões de pessoas para mais de 8 bilhões, da urbanização e da renda, sobretudo na Ásia (Revista Oeste, edição 166). Para a OCDE e a FAO, a produção mundial de carne bovina nos próximos dez anos alcançará 77,8 milhões de toneladas.
Entre 2013 e 2023, o consumo de carne na China cresceu 70%, de 6,5 milhões para 11 milhões de toneladas. Na Índia cresceu 42% e na Europa caiu 14%. Dada a dimensão da população, o consumo chinês é baixo, de cerca de 7 quilos por habitante por ano. E cresce. Os cinco maiores países consumidores de carne são Argentina (47,5 kg/hab/ano), Zimbábue (41 kg/hab/ano), Estados Unidos (38 kg/hab/ano), Brasil (37 kg/hab/ano) e Austrália (29,5 kg/hab/ano).
Em março de 2024, a China habilitou 24 abatedouros de bovinos, um estabelecimento bovino de termoprocessamento e um entreposto. Os frigoríficos JBS, BRF, Marfrig e Minerva ganharam, somados, cerca de R$ 3,8 bilhões em valor de mercado na B3 só com essa decisão da China. Quanto ganharão os pecuaristas?
“Pecuária” vem da raiz latina “pecua” (termo coletivo para gado, rebanho), a mesma na origem de “pecúlio”. Na Roma antiga, pecúlio era a pequena parte do rebanho dada em pagamento ao escravo responsável pela sua guarda, por oposição ao peculiar: a parte própria do rebanho do proprietário. A palavra evoluiu para o sentido de específico ou próprio. “Pecúnia” vem da mesma raiz. Na origem, designava riqueza em animais, depois em dinheiro e, por extensão, moeda e honorários, primitivamente pagos com animais. Com o tempo, “pecuniário”, significado latino de rebanho, estendeu-se ao dinheiro e à riqueza (Revista Oeste, edição 117).
A pecuária é altamente empregadora e distribuidora de riqueza. Demanda mão de obra intensiva, principalmente em frigoríficos, e contribui com mais de 2 milhões de empregos. Da população empregada no Brasil, 2,5% estão na cadeia da pecuária. São cerca de R$ 23 bilhões pagos anualmente em salários. Setores dependentes da carne bovina, não internos à cadeia produtiva, pagam outros R$ 35 bilhões. Tudo isso vai para consumo, contratação de serviços, compra de bens móveis e imóveis, e impacta positivamente a economia local e nacional. Ainda assim, “carimbos” e burocracia não faltam a enquadrar e infernizar a pecuária.
A pecuária foi o grande vetor de ocupação territorial e de desenvolvimento das regiões do Brasil. Pecuaristas têm caráter e coragem. Pegam touro a unha. Enfrentam cartéis, queda no valor da arroba, relações perversas entre governo federal e grandes frigoríficos
Etimologicamente, a palavra “carimbo” teve em português um caminho inverso à da “caráter”. Cortes e escarificações são feitos no rosto de crianças e adultos em diversas culturas africanas, como sinais de pertença a uma etnia ou grupo clânico. Os cortes deixam cicatrizes bem visíveis. Peles negras produzem mais fibroblastos na cicatrização e geram queloides, cicatrizes escuras, elevadas, mal definidas. Em quimbundo, chamam-se kirimbu. Escravos embarcados recebiam marca a ferro, sinal de pagamento dos impostos devidos. Essas marcas também foram chamadas de kirimbu. O vocábulo, incorporado à língua portuguesa, passou a denominar o acessório utilizado para marcar escravos. E estendeu seu nome a outros marcadores de papéis e pergaminhos, para honra e glória da burocracia.
A ofensiva contra a pecuária vai de indivíduos a blocos econômicos. Por vezes, auditores, licenciadores, fiscais, inspetores etc. com seus “carimbos” atacam os pecuaristas em nome do “meio ambiente”, do alto de uma autonomia funcional e burocrática usada em detrimento do interesse público. A União Europeia a cada dia exige mais “carimbos”, certificados e procedimentos a países tropicais para atender a seu Green Deal, em crise e recusado por seus próprios agricultores. Narrativas midiáticas e escolares criminalizam pecuaristas, baldoam sua reputação.
A pecuária foi o grande vetor de ocupação territorial e de desenvolvimento das regiões do Brasil. Pecuaristas têm caráter e coragem. Pegam touro a unha. Enfrentam cartéis, queda no valor da arroba, relações perversas entre governo federal e grandes frigoríficos. Caráter não é sinônimo de reputação. Caráter descreve qualidades distintivas de um indivíduo ou grupo. Reputação descreve opiniões de outros sobre um indivíduo ou grupo. O caráter é interno e autêntico. A reputação é externa e percebida.
Se lacração, patrulhamento ideológico, consórcios midiáticos e criminosos atentam contra a imagem e a reputação de pecuaristas, seu caráter segue inabalável. Eles trabalham pela qualidade com foco no produtor e no consumidor, como no Grupo Pecuária Brasil (GPB). Seguem plataformas, sugestões de políticas e tecnologias (GTPS, Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, Pecuária Sintrópica…). Pecuaristas investem, conectam, fazem festas, rodeios, leilões, tocam o berrante e tratam os ataques como conversa mole para boi dormir.
Leia também “Benditos frutos da fruticultura”
Achei curioso o dado do Zimbábwe. Parece ser um país próspero, mesmo envolto da pobreza da África.
Excelente conteúdo.
Mais um maravilhoso artigo do Dr. Evaristo. Este artigo deveria ser leitura obrigatória nas escolas e universidades e amplamente divulgado. Parabéns à Revista Oeste pela publicação. Valeu!
Sensacional texto. Sou pecuarista apaixonado pela cria e técnico que atua na reprodução e melhoramento genético através da FIV. Quinta geração de pecuaristas, guardo as marcas do meu avô e do meu pai, que ainda são usadas, com a minha e das minhas filhas. Orgulho dessa tradição.
Sou Advogado. Gostaria de atuar na área da agropecuária. Alguém poderia me ajudar por onde começar? João Carlos, RJ.
Sou Advogado. Gostaria de atuar na área da agropecuária. Alguém poderia me ajudar por onde começar? João Carlos, RJ.
Neste final de semana aprendi a origem e o significado de “caráter” e “carimbo”. E o vínculo surpreendente dessas duas palavras com a pecuária, cujos dados foram sintetizados de forma brilhante pelo Dr. Evaristo de Miranda. Seus artigos citam fontes muito variadas. Tem a qualidade do pesquisador da Embrapa e a didática do professor universitário. Que belo panorama e análise da situação bovinocultura nacional.
Evaristo: sou pecuarista aposentado. Minha operação era engordar 500 bois e dez meses. A compra incluía a sobra do ano anterior e completava 500 dependendo do tamanho da sobra do ano anterior. Ou seja, um pequeno no ramo. A fazenda agora sobre o controle do Lúcio neto mesta plantada de grãos, soja e milho. Eu aposentado! Gosto muito da fazenda! Mas, não opero mais, chegou a vez do Lúcio e ele adicionou a criação de peixe as atividades! Muito trabalhador. Ele e os dois bisnetos adoram lá.
Trabalho na cadeia do Agro no setor de transporte de contêineres exportação e sei o quanto esses “carimbos” prejudicam a produtividade.
Neste mês um contêiner sob nossa responsabilidade ficou no pátio de um frigorífico em Santo Ângelo/RS 12 dias aguardando um “carimbo” do SIF para seguir para o porto de embarque em Navegantes/SC.
O que falta ao dr. Evaristo para ser nosso Presidente da República? Quanta sabedoria, caráter e interesse na prosperidade do povo brasileiro. Parabéns professor, continue nos educando com o seu saber e envolva-se na educação e dignidade do nosso povo para saber votar e exigir transparência e auditoria de resultados.
Sensacional meu caro Dr. Evaristo de Miranda. Aí disse quem entende do assunto. Um dos maiores pesquisadores da nossa EMBRAPA. Uma pessoa singular, dessas que jamais poderiam passar no tempo, envelhecer, perecer.
Muito bem dito, o PECUARISTA brasileiro é um resiliente, responsável, trabalha com a sustentabilidade e preservação do meio ambiente sim. Senão, como se explicaria esse colosso de carne espetacular, com menos área explorada?
Houve sim um ganho de produtividade carne/área absurdo. Isso graças a força e a persistência do Pecuaritsta brasileiro. A sua garra e vontade são sempre maiores do que os vorazes ataques de “especialistas”, de fiscais, de auditores, de quem quer que seja!
Salve a PECUÁRIA brasileira, viva ac saúde que a boa carne oferece!
Eeeh boi, e vamos nesta toada atropelando quem vive no mundo da lua. Conversa para boi durmo dominando Brasil, amigo.
Eeeh boi, e vamos nesta toada atropelando quem vive no mundo da lua. Conversa para boi durmo dominando Brasil, amigo.
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