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Edição 21

TikTok: um app bobinho no centro do equilíbrio mundial

A China tem de escolher. Não dá para ser, ao mesmo tempo, o país do TikTok — moderno, livre, aberto, próspero e competitivo — e a nação comandada por um “Grande Líder”

Dagomir Marquezi
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O TikTok se apresenta como um refúgio da ingenuidade. Com ele, o usuário grava vídeos de menos de um minuto, e o aplicativo permite uma série de intervenções na gravação. Mudança das vozes, distorções da imagem, truques de edição, multiplicação de figuras, uso de legendas, inserções de elementos gráficos etc. Está presente em 150 mercados globais.

Na homepage, o TikTok declara que sua missão é “inspirar criatividade e alegria”. Longe, portanto, da guerra ideológica que intoxica outras redes sociais. Alguns usuários conseguem ser realmente inovadores. Mas o tom geral é bem infantil. Quase todo post acaba numa dancinha. O humorista Whinderson Nunes tem 9,3 milhões de seguidores. O jogador Neymar, 5,6 milhões. A maior estrela é a dançarina norte-americana Charli D’Amelio, de 16 anos, com 78,6 milhões de seguidores. Isso mesmo: mais que a população de todo o Reino Unido. E provavelmente você nunca ouviu falar dela.

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O difícil mesmo é entender como um aplicativo tão bobinho quanto o TikTok virou o centro de um conflito tão sério entre duas das três maiores potências mundiais.

A acusação é que o TikTok colhe dados em excesso da navegação e conexão dos usuários

O primeiro problema é que a empresa que o criou, a ByteDance, limpa do TikTok vídeos que tratem de assuntos como os protestos em Hong Kong, o massacre da Praça da Paz Celestial, a ocupação do Tibete, a independência de Taiwan ou o genocídio cultural da minoria uigur. São temas que, por “coincidência”, a ditadura chinesa não gosta de discutir.

O segundo problema é mais bombástico. Em 6 de agosto, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva dando um prazo até o dia 20 de setembro para que dois aplicativos made in China, o TikTok e o WeChat, sejam comprados por empresas norte-americanas. Caso contrário, serão virtualmente banidos do país, por “ameaçarem a segurança nacional, a política exterior e a economia dos Estados Unidos”.

A acusação que pesa sobre o TikTok é que ele colhe dados em excesso da navegação e conexão dos usuários. E, pela lei chinesa, pode colocar essa informação no colo do Partido Comunista da China. O que, portanto, potencialmente permite às autoridades chinesas “seguir a localização de empregados federais e contratantes, montar dossiês de informação pessoal para uso em chantagem e praticar espionagem corporativa”.

A ByteDance garante que protege os dados dos usuários norte-americanos do TikTok. Lembra que se tornou uma corporação internacional, representada por 11 escritórios em dez países no exterior, incluindo Los Angeles, Nova York e Paris. E que os dados coletados nos Estados Unidos ficam nos Estados Unidos, fora do alcance do governo chinês.

O app começa a coletar os dados do celular antes mesmo que o usuário se inscreva

A possível instalação de redes de internet padrão 5G pela empresa Huawei já havia levantado essa polêmica. A relação promíscua entre o governo da China e suas empresas não inspira confiança no Ocidente. É difícil saber onde acaba um e começa o outro.

Vinte processos federais foram unificados nos Estados Unidos contra o TikTok por pais de adolescentes que tiveram suas medidas biométricas coletadas pelo aplicativo. Segundo os autos, “o aplicativo TikTok clandestinamente coletou e transferiu para servidores na China (e outros servidores acessíveis à China) vastas quantidades de dados particulares e de identificação pessoal que podem ser usados para identificar, perfilar e acompanhar a localização física e digital de atividades dos usuários nos Estados Unidos agora e no futuro”.

Os advogados da causa consultaram especialistas em cibersegurança, que diagnosticaram que o aplicativo começa a coletar os dados do celular antes mesmo que seu usuário se inscreva. E que mandam para a empresa todos os vídeos captados, mesmo os que ainda não foram finalizados. Ou, na dramática fala de Peter Navarro, diretor de política de comércio e indústria da Casa Branca: “São 10 horas. O Partido Comunista Chinês sabe onde seus filhos estão?”.

O TikTok apareceu até no recente conflito entre Índia e China

Os Estados Unidos não são o primeiro país a bloquear a presença do TikTok. No fim de junho, a Índia enfrentou um curto mas violento conflito com forças chinesas por causa de disputa fronteiriça na região do Tibete. Indignado com a morte de 20 de seus soldados, o governo indiano bloqueou o TikTok e nada menos que 58 aplicativos criados na China.

O ministro da Eletrônica e da Tecnologia da Informação acusou o app de “roubar e sub-repticiamente transmitir dados dos usuários de maneira não autorizada a servidores localizados fora da Índia”. Foi um baque para as empresas chinesas de tecnologia, que perderam um de seus maiores mercados. Seis dos dez aplicativos mais baixados por indianos eram chineses. Os 59 aplicativos banidos haviam tido um total de 4,9 bilhões de downloads no país.

A revista Forbes noticiou que Japão, Paquistão e Austrália estão seguindo o caminho indiano de banir o TikTok. A decisão da ByteDance de localizar seu QG internacional em Londres foi adiada devido à crescente tensão entre o Reino Unido e a China.

No volátil ambiente da indústria de tecnologia, um único passo em falso para uma empresa como a ByteDance pode ser fatal. Seu TikTok é um fenômeno de mercado. Mas se sumir não vai deixar vácuo. No início de agosto o Instagram (que pertence ao Facebook) lançou em mais de 50 países o Reels, uma espécie de TikTok genérico. Outros aplicativos similares — Zynn, byte, StoryFire e Triller — já buscam um lugar ao sol nesse mercado.

Trump quer comissão caso a empresa TikTok seja vendida à Microsoft

Donald Trump deseja que a TikTok dos EUA seja comprada por uma empresa norte-americana. A primeira candidata foi a Microsoft, que declarou que, se a negociação der certo, vai manter a experiência para o usuário, adicionando a privacidade e a segurança que os chineses não garantem. (E Trump lançou mais uma de suas polêmicas ao declarar que o governo pretende cobrar uma comissão sobre essa transação.)

O processo duraria de nove meses a um ano. Seria necessária uma sintonia fina entre a matriz da empresa ByteDance, na China, e a Microsoft — o que pode não ser fácil no atual clima político. A empresa criada por Bill Gates e Paul Allen tem dinheiro e experiência de migração de sistemas desde quando adquiriu a rede social LinkedIn. Segundo o Financial Times, já se comenta na direção da Microsoft a ideia de comprar a ByteDance global, não apenas sua filial americana. O Twitter também está interessado numa parceria. Mas ninguém tem certeza de nada por enquanto.

O WeChat é outra história. Usado por 1,2 bilhão de usuários a cada mês, apresenta-se como um “aplicativo gratuito para celulares que oferece chamadas de vídeo e voz, vídeos, imagens, jogos, adesivos e mensagens de texto para ajudar você a permanecer conectado com as pessoas que mais importam”. É, portanto, uma mistura de WattsApp com Facebook e aplicativos financeiros.

Forças chinesas de segurança usam o WeChat para intimidar opositores do regime

Segundo Paul Mozur e Raymond Zhong, do The New York Times, o WeChat representa “um instrumento para que as autoridades chinesas imponham controles sociais. Dentro da China, o app é pesadamente censurado e monitorado por uma nova e empoderada força de polícia da internet. Fora das fronteiras chinesas, o aplicativo é usado como um canal para espalhar propaganda de Pequim. Forças chinesas de segurança também usam regularmente o WeChat para intimidar e silenciar os membros da diáspora chinesa”.

Em entrevista ao NYT, Yaqiu Wang, da Human Rights Watch, declarou: “O governo chinês é capaz de controlar uma porção significativa da informação recebida por chineses que moram fora do país. Isso pode ter implicações na política interna, pois muitos membros da diáspora chinesa são eleitores nos países em que residem e são ou podem ser politicamente mobilizados”.

A questão não é simples. O WeChat funciona como um elemento arejador da claustrofobia chinesa e representa um instrumento importante de contato econômico. Empresários chineses sediados nos Estados Unidos dizem que banir o WeChat provocará uma interrupção em milhões de contatos diários que fazem a íntima relação comercial entre os dois países funcionar, especialmente entre empresas pequenas. Muitos lamentam também porque o WeChat é o único canal que eles possuem para se comunicar com a família na China.

A China deveria ser o exemplo para a Coreia do Norte, não o contrário

Com essa atitude, o presidente Donald Trump é acusado de explorar “sentimentos antichineses” para vencer as eleições de novembro. Mas membros de seu governo lembram que Trump está apenas respondendo ao que a China faz há muito tempo, banindo do país empresas como Facebook, Google e Amazon.

Os jovens chineses que criaram o TikTok (em apenas 200 dias) queriam ganhar um monte de dinheiro com um aplicativo ingênuo e divertido — como qualquer jovem criativo e ambicioso da Holanda, da Austrália ou do Brasil. Conseguiram. O CEO da empresa, Zhang Yiming, de 36 anos, faturou 12 bilhões de dólares em 2018. É uma história de sucesso, que deveria dar orgulho ao país. Mas, enquanto continuar na China, a ByteDance será obrigada a arrastar o peso do regime político que a governa.

O caso TikTok/WeChat é sintoma de algo maior. As energias liberadas por suas empresas são abafadas por um aparelho estatal controlador e implacável. Uma parte crescente da população está se enchendo de uma ditadura que vai completar 71 anos em outubro.

O mundo mudou. Os chineses mudaram. O crescente dinamismo do país não admite mais que seja comandado por um “Grande Líder” com mandato vitalício dado por um partido único de estilo stalinista. A China deveria ser o exemplo para a Coreia do Norte, não o contrário.

A China tem de resolver seu dilema. Ou se apresenta ao mundo como um país moderno, livre, aberto, próspero e competitivo — o país do TikTok —, ou se comporta como um vilão de filme de James Bond. Não dá para ser as duas coisas ao mesmo tempo.

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Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.

 

7 comentários
  1. Anselmo Cadona
    Anselmo Cadona

    Ótimo artigo que reflete a realidade da ditadura chinesa.

  2. Juliano Ferreira Faria
    Juliano Ferreira Faria

    Bela análise!

  3. Nara Rosangela Rodrigues
    Nara Rosangela Rodrigues

    Muito bom!

  4. Fernando Antonio Roquette Reis Filho
    Fernando Antonio Roquette Reis Filho

    Excelente artigo. Nos faz entender porque os aplicativos nos obrigam a aceitar expor nossa agenda e localização, caso contrário não são instalados. Isso sim deveria ser uma preocupação do projeto das “fakenews”.

  5. Altair
    Altair

    Excelente artigo!

    1. Rosi Deamo
      Rosi Deamo

      Síntese perfeita da situação. Excelente.

  6. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Muito boa análise. Mas só há um jeito dual do comunismo chinês mudar: pressões internas e externas. Mesmo assim, como demonstram suas ditaduras ao redor do mundo, é quase impossível tirar as garras do poder

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