Saia na rua agora (se for de dia) e você vai ver pessoas caminhando e olhando para a tela do celular. Ou atravessando ruas e avenidas de olho na telinha. E motoristas dirigindo olhando o celular.
Se um motorista olhando o celular atropelar um pedestre olhando o celular, a primeira coisa que faremos provavelmente vai ser tirar uma foto do desastre com nosso celular e postá-la no Instagram.
Se você entrar num metrô ou ônibus, é bem possível que todos os passageiros estejam de olho na sua telinha. Alguns mais mal-educados estarão conversando pelo WhatsApp com o alto-falante em alto volume, como se não houvesse mais ninguém ao redor. E assim, mesmo que você não tenha celular, estará dentro da cabeça de dois desconhecidos se comunicando aos berros.
Estamos vivendo um momento de insanidade coletiva com essa fixação por celulares. Um problema que está prejudicando as pessoas, incluindo crianças, e nos jogando num estado de transe inútil e permanente.
Mas nada de tecnofobia. Três fatores precisam ser destacados para que essa situação seja compreendida melhor:
- Smartphones representam o mais poderoso instrumento colocado nas mãos de pessoas comuns de todos os tempos. O fascínio hipnotizante por eles é mais do que justificável.
- As cenas absurdas que estamos vendo nas ruas não são causadas por celulares, mas por quem os usa de maneira incorreta.
- Num nível mais profundo, esse comportamento equivocado diz muito sobre o que somos e o que podemos ser.
O que há no seu smartphone?
O meu celular — só como exemplo — tem 185 aplicativos instalados. Está tudo lá: minha agenda, meu guia de localização geográfica, meu escritório, meu correio, minha música, centenas de livros, dezenas de jornais e revistas, rádio, TV, meus bancos, a previsão do tempo, meu cinema, meu relógio, minha câmera de fotografia e vídeo, meu editor de imagem, meu transporte, o controle do tráfego aéreo mundial, calculadoras, enciclopédias, comunicações, os resultados esportivos, meu serviço de faxina, meu plano de saúde, meus documentos, o comércio, o mapa astronômico — tudo isso cabe no meu bolso. E, como se não bastasse, meu celular pode se transformar num cérebro auxiliar, graças aos aplicativos de inteligência artificial.
Com todos esses recursos, fica difícil, muito difícil, não enfiar a mão no bolso e dar só mais uma olhadinha na telinha mágica. Temos na palma da mão uma espécie de gênio da lâmpada de Aladim, capaz de quase qualquer coisa.
Já vimos muitos filmes com essa premissa — instrumentos poderosos usados para o mal. O que estamos vendo atualmente é um pouco diferente. Um instrumento poderoso sendo usado… para nada.
Um passeio pelo carro do metrô mostra que quase todas as pessoas estão usando seus celulares para conversar no WhatsApp, jogar games simplórios e escorregar o dedo indicador pela tela num interminável scroll pelas redes sociais. Em outras palavras: atividades não produtivas.
Não estou escapando dessa classificação. Passo tempo demais, como qualquer pessoa, escolhendo que post vou curtir nas redes, quem vou bloquear, com quem vou levar um papo corriqueiro no Whats, e volto para a infinita coleção de fotos alheias do Instagram.
É mais ou menos como usar um super-robô-computador como abridor de latas. E a culpa por esse mau uso não é do super-robô-computador.
No fundo, esse comportamento reflete o que somos. E, por pior que seja o uso que fazemos de um bom celular, não me parece pior do que a atitude regressista. Se usar mal um smartphone indica uma limitação, não usar o celular parece ainda mais grave.
A relação que mantemos com o celular reflete a relação que temos com a vida em geral. Nossa vida é uma rápida dancinha do TikTok? É um longo papo-furado cheio de “kkkkks”? É um estado permanente de excitação política?
Pode ser tudo isso. E pode ser mais do que isso. Depende do que você quer do seu celular.
Aprender a resistir
O jornalista Eric Athas escreveu para o New York Times um miniguia para uma melhor relação com o smartphone. Alguns exemplos:
- Exerça seu autocontrole. Quando estiver fazendo algo de útil e sentir aquele impulso de dar só uma olhadinha no Instagram, resista. O autocontrole é como um músculo: precisa ser exercitado. E isso vale para tudo. O doutor Richard J. Davidson, diretor do Centro para Mentes mais Saudáveis da Universidade de Wisconsin-Madison, descreve o processo: “Quando você se tornar consciente da necessidade, simplesmente se pergunte: ‘Preciso mesmo fazer isso agora?’”. Pode ser que você decida dar uma olhada no Insta, mas é preciso treinar o cérebro a resistir. É o mesmo processo que nos faz não comer chocolate ou beber álcool o dia inteiro. Disciplina.
- Não use seu celular em movimento. Além de perigoso, isso empobrece a experiência de vida. Se você vai passear num parque, caminhar até o ponto de ônibus, ou ir de carro até o trabalho, existe muita coisa acontecendo que merece sua atenção. Podem ser coisas boas ou ruins, não importa. Mas sua experiência é enriquecida com elas. Claro que, se você estiver numa caminhada num lugar seguro, pode escutar uma música nos fones conectados ao celular. Mas parar a caminhada a cada cem metros para conferir se chegou mensagem não é saudável. “Estamos perdendo uma riqueza de informações e sinais no mundo ao nosso redor”, resumiu a psiquiatra norte americana Anna Lembke ao NYT. “E também nos privando da oportunidade de processar e interpretar o que vivenciamos.”
- Faça minipausas tecnológicas — quase ninguém propõe mais que alguém desligue o celular por uma semana. Mas desligar o smartphone por 15 minutos pode ser muito terapêutico. É como entrar num quarto escuro e lidar com a ansiedade. Em 15 minutos algo MUITO importante pode acontecer na sua vida? Talvez, mas essa possibilidade é muito pequena. Além disso, uma das coisas que deixam o celular tão útil é o fato de que o que você não viu nesses 15 minutos — uma mensagem, um post imperdível — vai estar lá quando você religá-lo.
Ironicamente, existem aplicativos para ajudar você a manter distância… dos aplicativos. O StayFree contabiliza quanto tempo o usuário passa em cada aplicativo. E também permite que você controle quanto tempo quer doar. Você pode determinar que alguns aplicativos deixem de funcionar por determinado período de tempo.
Ontem (segundo o StayFree) eu passei 32 minutos no WhatsApp, 18 no Instagram e 16 no X/Twitter. (As quatro colocações seguintes foram de leitura — Marvel, The Times, Kindle e Wall Street Journal). Descobri também que meus picos de uso acontecem às 11 da manhã e à 1 da madrugada.
Dados como esses fazem a gente ter consciência do que nós estamos fazendo com nosso tempo. Uma coisa é dizer “estou passando muito tempo no celular”. Outra é saber quanto tempo é esse. (Ontem eu abri o celular 129 vezes e passei 3 horas e 23 minutos ligado no total. Em 65% das vezes minha sessão no celular durou menos de um minuto).
Cultivando abobrinhas
Além do tempo em si, existe outro fator tão importante quanto: de que modo se usa o celular. Como escrevi no início deste artigo, o smartphone é o mais poderoso assessor pessoal de todos os tempos. E, por isso mesmo, um fabuloso instrumento de trabalho e projetos pessoais.
É aí que entra nossa escolha pessoal. O que queremos com nosso celular? O que queremos para nossa vida? Perder tempo ou construir uma obra?
Uma coisa é passar um dia cultivando abobrinhas nas redes sociais. Outra é se informar através dessas redes usando as melhores fontes. Uma coisa é levar papo-furado no WhatsApp. Outra é, por exemplo, escrever um livro. E o seu smartphone está completamente capacitado para isso, da pesquisa inicial à arte da capa.
Os instrumentos para uma vida produtiva estão no seu bolso. O foco, na sua cabeça.
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Artigo sensacional, mais uma vez. Obrigado Sr. Dagomir Marquesi
Eu como sou analfabeto tecnológico e estou no final da vida, desejaria fazer um clone de mim mesmo. Pra viver melhor essa era
Ótimo artigo, talvez o melhor dessa edição 210, compartilho dos mesmos anseios do autor no que tange a não perdermos tempo desnecessário em futilidades. Aqui em casa travo essa guerra com minha esposa, mas enfim, cada um sabe como perder seu tempo né.
Muito bom artigo.Precisamos divulga-lo.
A existência da pólvora é neutra. A utilidade que dela fazemos é que pode ser boa ou ruim. Assim são todas as coisas na vida, inclusive o celular. Artigo excelente! Vou compartilhar com algumas criaturas que conheço e precisam ler isso.