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Ilustração: Shutterstock AI
Edição 216

Os três cavaleiros do apocalipse brasileiro

Intervenção estatal, insegurança jurídica e centralização de poder

Roberto Motta
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Este caso não tem nada a ver com conter o domínio das grandes empresas de tecnologia ou reduzir os riscos para a democracia ou mesmo proteger as crianças das redes sociais. Esta é uma luta entre uma Suprema Corte politizada e os críticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Isso mostra que o Brasil não tem mais um Judiciário independente. A triste realidade é que a sua democracia está morrendo em plena luz do dia.
(‘Elon Musk resiste à censura brasileira, artigo de Mary Anastasia O’Grady, The Wall Street Journal, 14/4/2024)

Liberdade e justiça estão sendo corroídas no Brasil por três movimentos simultâneos. Esses movimentos estão por trás de ações governamentais, projetos de lei, decisões judiciais e medidas econômicas que conduzem o país na direção da censura, do crime, da pobreza e do autoritarismo.

Para identificar esses movimentos é preciso dar um passo para trás e examinar o que vem acontecendo no país nas últimas décadas, especialmente depois da pandemia. Três movimentos, distintos mas complementares, aparecem claramente. Esses movimentos são amplamente apoiados por aquilo que chamamos de “guerra cultural”, um suporte ideológico e social fornecido pelos grandes veículos de comunicação e pela indústria do “entretenimento” (TV, música, cinema), e chancelados pelo sistema educacional, especialmente o de nível superior.

O primeiro movimento é o aumento acelerado da interferência do Estado na vida do cidadão e na iniciativa privada — uma interferência cada vez mais agressiva e desavergonhada. As justificativas são as mesmas de sempre. É preciso regular tudo. É preciso proteger o cidadão e o trabalhador “hipossuficiente” da fúria capitalista. É necessário circunscrever e limitar cada vez mais a liberdade individual em nome do interminável combate à “desigualdade”, à “desordem informacional” e ao “discurso de ódio”.

Está acontecendo em todo o mundo.

Ilustração: Jozef Micic/Shutterstock

O segundo movimento é o cultivo de uma insegurança jurídica crescente, na qual estão mergulhados indivíduos e empresas, pobres e ricos, passado, presente e futuro. Leis que não existem são aplicadas; leis existentes são ignoradas ou aplicadas seletivamente; novas leis são criadas do nada, através de decisões judiciais, por “analogia” (um atentado obsceno ao Estado de Direito).

Regulamentos internos de corporações estatais passaram a valer mais que a Constituição. Princípios legais centenários são abandonados como se nunca tivessem existido, por pessoas que construíram sua carreira ensinando esses princípios. A Constituição é como uma partitura tocada por músicos de jazz; as interpretações são sempre únicas, surpreendentes, autorais. A censura do bem, que teve seu término prometido para o final de outubro de 2022 (afinal, o objetivo era apenas combater a desordem informacional durante as eleições), se tornou permanente e agora encontra defensores até entre aqueles que vivem de se expressar publicamente. O Brasil — país que tem mais escolas de Direito do que todos os outros países do planeta somados — foi conquistado pelo Direito freestyle, cujo único mandamento parece ser “esqueça a Constituição e faça o que seu coração mandar”.

Coração, ou bolso.

Ilustração: Shutterstock

O resultado imediato da insegurança jurídica é o medo. Nunca sabemos quando o Estado nos cobrará alguma dívida criada por uma alteração retroativa da lei, ou quando ele se servirá de nossa propriedade (porque toda propriedade precisa ter função social, e quem define o que isso significa é o Estado), ou quando seus agentes armados baterão à nossa porta, com um mandado de busca e apreensão nas mãos, como represália por alguma afronta, real ou imaginária, cometida por nós em um discurso, uma postagem ou até uma piada.

Há pouco tempo conversei com quatro dos maiores empresários do país, homens com histórico de décadas de produção de riqueza, criação de empregos e geração de bilhões de reais em impostos. Todos confessaram que têm acordado sobressaltados, no meio da noite. A causa do sobressalto é o Estado.

Isso é grave.

Foi criada no Brasil uma elite burocrática próspera e autoritária como nenhuma outra no mundo. Tudo vai piorar com a criação de uma autoridade decisória tributária incontestável de última instância, o Comitê Gestor do IBS

O terceiro movimento é de concentração e centralização: concentração de poder no governo federal e centralização do controle nas mãos de poucos indivíduos e grupos.

Essa agenda avança todos os dias através de incontáveis iniciativas administrativas, jurídicas e políticas que vão desde a tentativa de controlar centralmente o aparato policial do país (mal camuflada nas ideias de “reinventar a polícia” e de criar um certo “SUS da segurança pública”) até uma “reforma tributária” que destrói a federação, transferindo poder de governadores e prefeitos para burocratas. Inclui-se aí também o instituto das “decisões monocráticas”, um eufemismo tecnicista que descreve a capacidade que um único burocrata estatal não eleito tem de anular decisões tomadas por todo o Congresso Nacional.

Palácio do Planalto, em Brasília | Foto: Alexandre Siqueira/Shutterstock

Com a reforma do Judiciário em 2004 foi dado o primeiro grande passo na direção da centralização de poder. Entre outras medidas, a reforma inventou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Foi criada no Brasil uma elite burocrática próspera e autoritária como nenhuma outra no mundo. Tudo vai piorar com a criação de uma autoridade decisória tributária incontestável de última instância, o Comitê Gestor do IBS (IBS é o Imposto sobre Bens e Serviços que, de acordo com a “reforma tributária”, substituirá o ISS, imposto municipal, e o ICMS, imposto estadual). Os iluminados do comitê vão decidir tudo a respeito daquele que será o principal tributo do país. O comitê vai regulamentar o imposto, operar a arrecadação e decidir como serão resolvidas as disputas com contribuintes. Há quem veja nisso o fim do modelo federativo.

Garantida essa autoridade decisória incontestável de última instância, o próximo e natural estágio será a subordinação total da “reforma tributária” a esse soviete supremo — desculpem, “Comitê Gestor”.

Munida de poderes superlativos, essa nova elite fiscal tenderá ao exercício absoluto do poder econômico. Quantas vezes a história já registrou isso? Imaginem as consequências de dar, a um grupo de burocratas não eleitos, o poder decisório irrecorrível sobre a receita fiscal de uma das maiores economias do mundo. Pois foi exatamente isso que o Congresso brasileiro aprovou e que acontecerá em breve.

Essa é a questão mais importante do país — e, no entanto, a maioria dos parlamentares, políticos e líderes continua caminhando por essa estrada desastrosa como uma Chapeuzinho Vermelho andando alegremente ao encontro do lobo.

Intervenção estatal, insegurança jurídica e centralização de poder são os três cavaleiros do apocalipse brasileiro. Eles não significam apenas um risco para a federação; o que está em jogo é a própria existência do modelo democrático representativo, baseado em um Estado de Direito e em Três Poderes iguais e independentes.

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15 comentários
  1. Carmen Fernandez Pardo
    Carmen Fernandez Pardo

    É muito triste, pior é não saber para onde correr!

  2. Alex Rodrigues dos Santos
    Alex Rodrigues dos Santos

    E viva a República Democrática Tupiniquim da Banana!

  3. Célio Antônio Carvalho
    Célio Antônio Carvalho

    É meu ca ro Motta. Quem diria? Em pleno século XXI vemos o mundo penso à esquerda. Uma situação esdrúxula para qualquer um é normal para um grupelho que se acostumou não fazer nada, a não ser atrapalhar a vida alheia! Mandar prender quem pensa e escreve, quem diverge da cartilha, normal agora. Uma perseguição implacável à chamada direita, aos perigosos para a “democracia”!
    Muito estranhoe esses tempos de hoje. Mas há sim esperanças. Vamos ver a partir das eleições municipais.

    1. Célio Antônio Carvalho
      Célio Antônio Carvalho

      caro***; estranho***

  4. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Estamos todos atordoados diante de nossa incapacidade perante tanto descalabro jurídico .

  5. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Um país com a quantidade de advogados e escolas de advocacia que possui, em detrimento de engenheiros, por exemplo, está fadado ao fracasso.
    Esta lógica necessita ser invertida.

  6. Alexandre paixão
    Alexandre paixão

    O cipual de leis existente, abrangendo os mais amplos aspectos da vida, transforma praticamente todos em eventuais infratores e possíveis alvos da justiça, quando não serve para livrar o criminoso. O pacote anticrime de Moro (Lei 13.964/19) é um exemplo.

  7. Edgard de Araujo Salles Junior
    Edgard de Araujo Salles Junior

    Excelente artigo. Agarro-me à tênue esperança representada por um certo “acordar” da população brasileira, adormecida há séculos. Veremos.

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    O Congresso Nacional já está desmoralizado perante o poder judiciário e ainda tem uma barbaridade chamada emendas de orçamento, isso tem que ser desmanchado, não cabe na cabeça de ninguém uma anomalia política dessa

  9. ROBERTO MIGUEL
    ROBERTO MIGUEL

    perfeito Motta

  10. RODRIGO DE SOUZA COSTA
    RODRIGO DE SOUZA COSTA

    Será que a oligarquia política ignora a armadilha em que está se metendo ou está enxergando uma nova oportunidade de criar uma casta que sobrevive da concentração do pagamento de impostos e obtenção de riquezas naturais? O socialismo do século XXI é mais esperto, cada dia estamos sendo mais tolhidos na nossa liberdade e ninguém faz nada.

  11. Eduardo Celso Poiano
    Eduardo Celso Poiano

    E os trouxas acreditaram que a maioria do Congresso eleita em 2022 era “de direita”.

  12. Ricardo Siviero
    Ricardo Siviero

    Certeiro como sempre! Pobre país…

  13. simone silva oliveira
    simone silva oliveira

    Acho que agora, depois de ler isto, também não dormirei mais…

  14. Eronilde Santos
    Eronilde Santos

    Disse tudo e mais um pouco. Seus textos sao maravilhosos, esclarecedores.

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