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Pôr do sol em São Paulo durante o solstício de inverno (21/6/2019) | Foto: FJGSalinas/Shutterstock
Edição 222

Viva o solstício de inverno

O 21 de junho é o dia mais curto e a noite mais longa do ano no Hemisfério Sul

Evaristo de Miranda
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O fortunatus nimium, sua si bona norint agrícolas!
(“Felizes seriam os agricultores, se soubessem quão felizes são”, tradução livre)
(Virgílio, Geórgicas II, 458)

O sol nasce para todos e sempre a leste. Ab Oriente lux. Nunca no mesmo local onde nasceu no dia anterior. Dada a inclinação do eixo rotacional terrestre, o sol não nasce, nem se põe, exatamente no mesmo local. Ele está em permanente e aparente deslocamento. Durante o outono, o sol se dirige em direção ao norte. Em dado momento, ele para. É dia de solstício.

O sol estaciona, como evoca a etimologia de “solstício”, “solstitium“: sol sistere, ele não se mexe. O sol estaciona no dia do solstício, sua declinação mais setentrional. No dia seguinte, 22 de junho, começa a “voltar”, agora em direção ao sul. Duas manifestações desse fenômeno astronômico são fáceis de ser observadas em casa, nas escolas e no trabalho.

Primeira: a marcação do sol, como sabem e fazem os agricultores. Da janela, varanda da casa ou sacada do apartamento, marque o local onde o sol surge ou desaparece no horizonte nesses dias. Até mesmo alguns dias depois do solstício de inverno. Compare esse ponto, essa referência, com a posição do nascer ou do pôr do sol em dezembro, no solstício de verão, perto do Natal. A distância será grande. Quanto mais ao sul do Brasil, maior. Imperceptível no dia a dia. A partir do solstício, nascente e poente se deslocarão para o sul. Dá para ver “da janela lateral” o caminhar do sol. E começa o inverno.

O 21 de junho é o dia mais curto e a noite mais longa do ano no Hemisfério Sul. Existem monumentos astronômicos, criados há milhares de anos, para marcar os solstícios, como o desconhecido e impressionante Observatório Astronômico de Calçoene, no Amapá, com mais de 2 mil anos. O Observatório Astronômico de Stonehenge é o Calçoene da Inglaterra.

Observatório Astronômico de Calçoene, no Amapá, com mais de 2 mil anos | Foto: Carina Furlanetto/Shutterstock

Segunda manifestação: o ângulo das sombras e da luz. Nos dias próximos ao do solstício de inverno, os raios solares penetram profundamente no interior das casas, pelas janelas voltadas à face norte. No solstício de inverno observam-se as sombras mais longas de todo o ano, bem direcionadas ao sul. Ao meio-dia, sobretudo nas Regiões Sul e Sudeste, o sol sobe pouco na abóbada celeste. Poderia ser chamado “o dia das sombras longas”. Esse fenômeno astronômico preciso é observável no quintal de casa, nas escolas e calçadas. A cada dia, na mesma hora, essa sombra diminuirá de tamanho.

Essas observações nas escolas são um material pedagógico concreto e excepcional para uso no ensino de ciências, geografia, ecologia, matemática e história. Quem usa? Quais professores sabem disso? Entre cerca de 80 países participantes do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), o Brasil anda lá pela 60ª posição. E não melhora.

O triângulo retângulo formado entre a altura do objeto e a extensão de sua sombra permite calcular, por simples trigonometria, a latitude. E construir, com engenho, um relógio solar ou calcular a circunferência terrestre. Assim procedeu, na baía de Santa Cruz de Cabrália, o mestre João Emeneslau de Fares, médico, cosmógrafo e físico da expedição de Pedro Álvares Cabral. No Ano da Graça de 1500, ele calculou a posição do desembarque com um astrolábio: 17 graus de latitude sul, próximo do valor exato (60 quilômetros de diferença). À noite, ele observou e nomeou a constelação do Cruzeiro do Sul. E a desenhou em sua famosa carta, escrita em um misto de espanhol e português quinhentista, ao rei de Portugal D. Manuel I.

Representação do Cruzeiro do Sul na Carta do Mestre João de Fares | Foto: Divulgação

No dia do solstício de inverno, o sol está a pino a 23 graus e 27 minutos de latitude norte. Por lá, ao meio-dia, os raios solares incidem perpendiculares ao solo. Postes, casas e pessoas na posição vertical não “apresentam” sombra projetada sobre sua base. A projeção do caminho do sol no chão “traça” o paralelo conhecido como Trópico de Câncer. Em 21 de junho, o sol passa a pino sobre 16 países no Hemisfério Norte: Taiwan (em Shuishang há um belo monumento ao Trópico de Câncer), China, Índia, Emirados Árabes, Egito, Líbia, Argélia, Mauritânia, Bahamas, sul dos Estados Unidos, México e Havaí. Enquanto por aqui, nestes dias, o sol anda bem baixo na abóbada celeste.

Para os antigos gregos, a beleza dos céus estava na precisão matemática dos ciclos celestes. Da beleza do cosmos deriva a palavra “cosmética”. Com o solstício e a passagem do outono para o inverno, a luz retorna (Revista Oeste, “O solstício de inverno”). Doravante, os dias durarão cada vez mais.

O tempo do solstício de inverno está associado ao fim do ano agrícola, ao encerramento das colheitas, ao desfrute dos resultados do suado e árduo trabalho no campo, aos festejos juninos. Apesar de grandes diferenças territoriais no Brasil, até junho encerraram-se as colheitas de soja, milho, arroz, feijão, laranja, amendoim, algodão, tubérculos, frutas e outras. É tempo de aferir, conferir, pesar, contar, vender e armazenar: 300 milhões de toneladas de grãos. Há muito tempo, o agro e a agroindústria brasileira já alimentam mais de 1 bilhão de pessoas.

No Brasil, até junho encerraram-se as colheitas de soja, milho, arroz, feijão, laranja, amendoim, algodão, tubérculos, frutas e outras | Foto: Carlos Rudinei Mattoso/Shutterstock

Os festejos de São João coincidem com o tempo do solstício do inverno. Na origem, as festas juninas são uma celebração católica, estival, ibérica, rural e tradicional de junho, desde o século 4º. O Catolicismo, herdeiro da tradição judaica, sempre celebrou eventos cósmicos (solstícios e equinócios) associados ao calendário litúrgico. Não para “apagar” práticas pagãs. Essas datas já eram festejadas, marcos da Criação. A evangelização ressignificou práticas locais. Inicialmente eram festas joaninas, dado o vínculo com São João, o único santo católico festejado no dia de seu nascimento, e não de sua morte. Com o tempo viraram juninas e até julinas.

No Brasil, desde o século 16, os evangelizadores jesuítas associaram às colheitas indígenas do inverno austral as festas joaninas do solstício de verão boreal na Europa. Com sabedoria. Deu certo. As festas juninas são uma das mais expressivas manifestações culturais brasileiras.

Como a festa para São João é a maior, São Pedro manda uma chuvinha para acalmar os ânimos e atenuar um pouco o seu brilho

A intimidade das pessoas com os santos juninos, Santo Antônio, São João e São Pedro, presentes nos mastros de quermesses e arraiais, é surpreendente. A ponto de serem chamados de compadres. E até arrumarem encrencas: “Com a filha de João, Antônio ia se casar, mas Pedro fugiu com a noiva na hora de ir pro altar”, cantava Dalva de Oliveira, a trágica rainha do rádio e da voz, na canção Pedro, Antonio e João. E conclui: “E no fim dessa história, ao apagar-se a fogueira, João consolava Antônio, que caiu na bebedeira”.

Nas festas juninas, a agrocultura alcança o mundo urbano. A tradição rural invade a cidade e nela planta arraiais e quermesses (Revista Oeste, edição 65, “Nas festas juninas, a tradição rural invade a cidade”). O arraial junino nas cidades, espaço profano e sagrado, é como uma aldeia rural temporária, ao lado de igrejas, escolas e espaços públicos. Ele é organizado com bandeirinhas, portais de bambu, flores do cipó de São João, mastro dos santos, barracas de comidas e bebidas típicas, jogos, danças, músicas e muita diversão. Crianças urbanas se vestem de caipira. Chapéus de palha e botas expressam um jeito de mostrar o homem da roça.

Festividades de São João no Pelourinho, em Salvador, na Bahia | Foto: Joa Souza/Shutterstock

A base da culinária junina são as plantas nativas: milho, amendoim e batata-doce. Degusta-se milho verde, assado e cozido, pipoca, pamonha, curau, mungunzá, canjica, cuscuz, bolo de fubá, além da batata-doce, cozida ou assada nas brasas das fogueiras, o doce de batata-doce, o amendoim, o pé de moleque e a paçoca. No Sul e no Sudeste, o pinhão está presente, com o vinho quente, o chocolate e o quentão. O mundo rural vive intensamente esse tempo de alegria. Em 2023, as festas juninas movimentaram cerca de R$ 6 bilhões e 26 milhões de pessoas, segundo Ministério do Turismo.

Em junho, as fogueiras iluminam as trevas, esquentam amores e corações. E aquecem noites frias. Em muitas comunidades rurais, homens e mulheres caminham descalços sobre as brasas (2Sm 22,13). Soltam-se fogos para acordar São João. Por que chove no dia de São João? Segundo a tradição rural, é inveja de São Pedro. Como a festa para São João é a maior, São Pedro manda uma chuvinha para acalmar os ânimos e atenuar um pouco o seu brilho.

Para os cristãos, João Batista, o Imersor, preparou os caminhos do Senhor Jesus. Foi decapitado por anunciar a Verdade (Mc 6,14-29). O fogo é um símbolo de purificação e iluminação. O solstício, a vitória progressiva da luz, as festas e fogueiras juninas convidam todos, campo e cidade, a se prepararem ao plantio primaveril, serem fecundos, crescerem e darem frutos, como no chamado do início da Criação (Gn 1,28). Tempo de iluminação, tão necessária ao entrevado Brasil. Ab Oriente lux? Ab Occidente progressus!

Fogueira de São João | Foto: Odairson Antonello/Shutterstock

Leia também “Onça e pecuária”

14 comentários
  1. Paulo Ferreira Dos Santos Junior
    Paulo Ferreira Dos Santos Junior

    Que artigo bacana! Acabei por ler também o artigo em PDF disponibilizado. De 2002! Enfim, o Dr Evaristo é um grande escritor!!!

  2. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Excelente conteúdo, Dr Evaristo.
    Acompanho bem este movimento do sol de minha varanda, virada para o norte. Nesta época, quando o sol surge, consigo pegar uma vitamina D de minha varanda. Rs

    1. Eládio Torret Rocha
      Eládio Torret Rocha

      O doutor Evaristo tem um texto esplêndido. Este seu artigo sobre o solstício de inverno é uma delícia, além de trazer informações acerca de um tema tão importante no dia a dia das pessoas, mas que a maioria da população, infelizmente, não conhece, porque a escola não ensina essas coisas simples e belas. Ele é um craque, não há como negar. Esperemos, pois, pelos seus artigos sequenciais, sobretudo, nos devidos tempos, relativamente ao solstício de verão e sobre os equinócios.

  3. Lenart Palmeira do Nascimento Filho
    Lenart Palmeira do Nascimento Filho

    Texto sensacional! Fiz uma viagem pela história, geografia, matemática e terminei celebrando numa festa de São João. Parabéns Dr. Evaristo!

  4. Lenart Palmeira do Nascimento Filho
    Lenart Palmeira do Nascimento Filho

    Texto sensacional! Fiz uma viagem pela história, geografia, matemática e terminei celebrando numa festa de São João. Parabéns Dr. Evaristo!

  5. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Excepcional texto !

  6. Antônio Carlos Lazarini da Fonseca
    Antônio Carlos Lazarini da Fonseca

    Belíssimo texto do Dr. Evaristo de Miranda ! Parabéns .

  7. Carlos Antônio de Carvalho
    Carlos Antônio de Carvalho

    Carlos Antonio de Carvalho muito bom mesmo. Gostei muito por ser esclarecedor. Uma verdadeira aula

  8. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Esse Evaristo é um condenado, quero que você me mande tudo que você escreveu em reportagens para a revista oeste, vou me tornar um mestre em geografia

  9. Francisca Lenita de Menezes Aragao
    Francisca Lenita de Menezes Aragao

    Fantástico, já ouvi 3 vezes e vou ouvir muito mais esse artigo científico, geográfico cultural. Encheu minha alma de suave calma e feliz prazer.

  10. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Professor Evaristo sempre nos ensinando. Que falta faz na condução do Ministério da Educação e Cultura. Quem sabe no próximo governo em 2026.

  11. Letícia Mammana
    Letícia Mammana

    Esse artigo do Dr. Evaristo sobre o solstício de inverno, tão surpreendente e pedagógico, deveria ser distribuído e estudados nas escolas. A riqueza de informações tão essenciais sobre o cosmos que nos habita e dirige, sobretudo como a agricultura segue esses ciclos celestes. Quem sabe ajudaria a luz a retornar vitoriosa em tantas cabeças obscurecidas, desde o povo simples até as togas destruidoras de nossa liberdade.

  12. Alice Helena Rosante Garcia
    Alice Helena Rosante Garcia

    Sempre muito agradvel a leitura dos seus textos Prof Evaristo. Flue naturalmente
    Viva Sao Pedro Sao Joao e Santo Antonio
    Viva nosso agro que sustenta tanta gente
    Que nossos Santos abençoem o Brasil

  13. Domingos de Souza
    Domingos de Souza

    Parabéns, dr.Evaristo.
    Texto excepcional.

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