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Foto: Revista Oeste/IA
Edição 239

Quaisquer palavras

O primeiro dos Poderes é o Congresso dos representantes do povo, para o qual o voto dá poderes para agir em nome do povo, tendo assim a palavra final

Alexandre Garcia
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Em 2 de setembro de 1968, na tribuna da Câmara Federal, o deputado Márcio Moreira Alves fez um discurso exortando os brasileiros a não comemorarem o 7 de Setembro; os pais a não permitirem que seus filhos fossem ao desfile; às moças a não dançarem com cadetes nem namorarem jovens oficiais. O ministro da Justiça pediu ao Supremo para processá-lo. O Supremo alegou ser questão interna de outro Poder. O caso foi para a própria Câmara decidir. Em 12 de dezembro, os deputados rejeitaram a licença para processá-lo, por 216 a 141 votos. No dia seguinte saiu o AI-5. Márcio tinha o mandato cassado, e o Congresso entrava em recesso.

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Para evitar que isso acontecesse de novo, os constituintes de 1988 pensaram muito sobre o teor do artigo 53 da nova Constituição. Ficou assim: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. “Quaisquer” foi pedra de toque — para poder representar os eleitores, o povo, de onde emana todo poder, a palavra dos representantes está acima de qualquer lei, inclusive a de Segurança Nacional. Se faltar ao decoro com palavras, o parlamentar será denunciado pelo Conselho de Ética e julgado pelo próprio Legislativo. Na vigência da Constituição de 1967, o Supremo não invadiu o Legislativo. Hoje, só para citar dois casos, o senador Marcos do Val está cerceado, e o deputado Marcel van Hattem acaba de saber que há um inquérito no Supremo porque, na tribuna, fez referências desairosas a um delegado federal. 

Deputado Marcel van Hattem | Foto: Reprodução/Câmara dos Deputados
Deputado Marcel van Hattem | Foto: Reprodução/Câmara dos Deputados

O Legislativo se mobiliza ante o avanço do Supremo; está dividido, mas parlamentares querem conter o ativismo do STF. O decano e o presidente do Supremo reagiram às quatro recentes aprovações de projetos na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O ministro Gilmar Mendes disse que, “se a política voltou a respirar ares de normalidade, isto também se deve à atuação firme do STF”. O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que não se deve mexer em instituições que funcionam bem e estão cumprindo o seu papel. A Comissão, por 38 a 18, acolheu a proposta de emenda constitucional já aprovada no Senado por 52 a 18, que restringe decisões de um único ministro do STF que suspendam leis aprovadas pela maioria de deputados e senadores. E, por 32 a 12, admitiu o projeto de emenda à Constituição em que dois terços da Câmara e do Senado podem suspender decisões do Supremo que invadam a competência do Legislativo. Além disso, começaram na CCJ a tramitar dois projetos: um que estabelece novas hipóteses de crime de responsabilidade para juiz do Supremo, e outro que dá poder aos plenários sobre a pauta hoje ao arbítrio dos presidentes das Casas. O Psol e o Solidariedade já tomaram partido: estão do lado do outro Poder. Entraram no Supremo com ações para suspender a tramitação das PECs. Mas, se o Supremo é o sujeito das propostas, como vai julgar em seu próprio interesse? Foi para as mãos do relator Nunes Marques.

Não se trata de disputa entre Poderes. O Legislativo não quer julgar. Quer manter-se como Legislativo, e a Constituição manda que os congressistas defendam suas prerrogativas, no artigo 49: “É de competência exclusiva do Congresso Nacional — XI: Zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.

No artigo 2º, a Constituição põe o Poder Legislativo em primeiro lugar. Porque é por meio dele que o povo exerce o poder citado no primeiro artigo. Os deputados e senadores são os representantes do povo e dos Estados federados. Por isso o Congresso é diversificado em geografia, etnia, religião, sexo, cor da pele, doutrinas e ideologias, religiões, profissões — enfim, é o retrato da nação, com as virtudes e os defeitos da nação. Por isso o Congresso é o lugar da política. O Judiciário vem em terceiro lugar na Constituição, porque não é órgão de representação, mas técnico, para aplicar a lei e interpretar a Constituição. Os 11 do Supremo não têm representação da diversidade nacional, mas notável saber jurídico, reputação ilibada e idade entre 35 e 70 anos.

Os que defendem as propostas que tramitam no Legislativo alegam que se trata de voltar ao equilíbrio entre os Poderes, pondo um freio no ativismo judicial que tem prejudicado o próprio Supremo. A declaração de Barroso, “nós derrotamos o Bolsonarismo”, em reunião da UNE, é a expressão disso, e é corroborada pela fala já citada de Gilmar, ligando a atuação do STF à política. Quando tomou posse na presidência do Supremo, em setembro de 2020, o ministro Luiz Fux identificou o problema: “Assistimos, cotidianamente, o Poder Judiciário ser instado a decidir questões para as quais não dispõe de capacidade institucional (…) Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, a um protagonismo deletério”. Os ministros do Supremo, que já não podem circular livremente, devem sentir que esse protagonismo prejudica não apenas a instituição, mas sua própria vida cotidiana.

Vivemos tempos estranhos, sem poder confiar em garantias constitucionais, temendo o arbítrio. Nossos representantes não têm sido respeitados em suas prerrogativas, que são as nossas, da origem do poder. O Supremo, que deveria ser guardião da Constituição, está com viés de tutor da nação. O ministro Dias Toffoli já disse “nós somos editores de um país inteiro”. Não é esse o papel do Supremo. A instituição precisa funcionar dentro de suas atribuições. O primeiro dos Poderes é o Congresso dos representantes do povo, para o qual o voto dá poderes para agir em nome do povo, tendo assim a palavra final. Palavra que é garantida pela Constituição, quaisquer palavras.

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2 comentários
  1. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Alexandre Garcia com sua educação Suíça jornalística da lição literária a muitos jornalistas de meia tigela. Abrindo a mente do povo brasileiro. Exemplo para essa imprensa woke e a esse Seboso desse Gilmar Mendes

  2. Maria Silvia Camacho de Castro Silva
    Maria Silvia Camacho de Castro Silva

    Que vontade de usar uma série bem grande e generosa de “quaisquer” palavras pra me referir a uns e outros neste triste Brasil.Parabéns Alexandre Garcia!!!!!!

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