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Edição 28

O DNA do Brasil

A substituição de Celso de Mello por Kássio Nunes informa: não há perigo de o Supremo melhorar

Augusto Nunes
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O Brasil parido pela chegada das caravelas de Cabral já nasceu metido a esperto. Souberam disso tarde demais aqueles viventes cor de cobre, sem roupas no corpo nem pelos nas partes pudendas, os homens prontos para trocar pedras preciosas por quinquilharias, as mulheres prontas para abrir o sorriso e as pernas para forasteiros pois os nativos do lugar praticavam sem remorso o que era pecado só do outro lado do grande mar, e não poderiam ser tementes a um Deus que não conheciam nem queriam conhecer porque desde o começo dos tempos adoravam deuses muito mais lúdicos.

O Brasil já nasceu carnavalesco. Nem um Joãosinho Trinta em transe num terreiro de candomblé teria ousado, como fez na pintura famosa o português Henrique Soares — a maior autoridade religiosa presente e celebrante da primeira missa naquelas imensidões misteriosas —, juntar numa mesma alegoria um padre de batina erguendo o cálice sagrado, navegantes fantasiados de soldados medievais, marinheiros com roupa de domingo, índios com a genitália desnuda que séculos depois seria banida dos desfiles por bicheiros respeitadores dos bons costumes e a cruz dos cristãos no amistoso convívio com arcos, flechas e tacapes.

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O Brasil já nasceu amalucado. Marujos recém-chegados do outro lado do mundo, mareados pela travessia do Atlântico e atarantados com paisagens paradisíacas, decidiram que aquilo era uma ilha, e portanto deveria ser batizada de Ilha de Vera Cruz, e assim a chamaram até perceberem, incontáveis milhas depois, que era muito litoral para uma ilha só, e pareceu-lhes sensato rebatizar o colosso ausente de todos os mapas com o nome de Terra de Santa Cruz, porque disso ninguém duvidava: era terra aquilo que pisavam.

O Brasil republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que mais cafajeste

O Brasil já nasceu preguiçoso. Deslumbrados com a demasia de praias com areias finas e brancas, banhadas por ondas em todos os matizes de verde e azul, muita mata, muita flor, muito rio, muito peixe, muito bicho de carne tenra, muita fruta sumarenta e, melhor que tudo, muita índia pelada, os degredados, os marinheiros desertores, os náufragos sobreviventes e os demais colonizadores do território paulista esperaram 200 anos até criarem ânimo para a escalada do paredão verde-escuro que separava o mar do Planalto, e depois esperariam mais um século antes de aventurar-se pelos sertões estendidos por trás da mata virgem.

Foi um esforço de tal forma extenuante que ficou estabelecido que, dali por diante, tanto os filhos da terra quanto os estrangeiros e seus descendentes sempre deixariam para amanhã o que deveriam ter feito ontem, com exceção das coisas que efetivamente merecessem urgência urgentíssima — por exemplo, seduzir a filha do cacique, façanha que transformou João Ramalho, o inventor do golpe do baú à brasileira, em homem rico e poderoso líder político, além de placa em muitas esquinas de um Brasil que não chegaria a conhecer.

O Brasil cresceu coerentemente incoerente. Hostilizou os civilizadores holandeses para manter-se sob o jugo de Portugal, teve como primeira e única rainha uma doida de hospício, tratou com bastante cortesia o filho da rainha que roubou o banco da matriz na vinda e o banco da colônia na volta, promoveu a primeiro imperador um príncipe habituado a passar mais tempo enrolado em lençóis do que sentado no trono, teve um segundo imperador que pelo menos nos retratos era mais velho que o pai, foi o derradeiro país do subcontinente a abolir a escravidão e o último a virar República. Sem saber direito por que saía, Pedro II perdeu o emprego de monarca ainda sem saber direito por que ali chegara.

No país nascido e criado sob o signo da insensatez, o cortejo dos presidentes, ministros, senadores, deputados federais, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores aberto em 1889 informa que a troca de regime não mudou o espírito da coisa: o Brasil republicano é o Brasil monárquico de terno e gravata, só que mais cafajeste. O país que proclamou imperador uma criança de 5 anos que se tornaria adulta aos 15 seria governado, alguns séculos depois, por um presidente que sempre agiu como delinquente juvenil e, em seguida, por uma presidente com jeitão de avó menos ajuizada que neto de fralda. Mas o Brasil não sentiu medo ao ver no trono um menino sem pai nem mãe. Com dois sessentões no comando é quem tem mais de cinco neurônios que se sentiu sem pai nem mãe.

O STF vive mostrando que o que está muito ruim sempre pode piorar

A carta de Pero Vaz de Caminha avisou já em 1500 que o Brasil seria irremediavelmente cartorial ao transformá-lo no único país do mundo com certidão de nascimento, verbosa como ordenam lusitanas tradições e com tamanho suficiente para descrever com minúcias de doutor no assunto o recém-nascido contemplado pelo escriba que nem sequer sabia se aportara numa ilha, num continente, numa extensão das Índias ou na estratosfera, mas não continha a excitação diante das extravagâncias de um lugar cujos habitantes “andam nus, sem cobertura alguma, e não se preocupam em cobrir ou deixar de cobrir suas próprias vergonhas mais do que se preocupariam em mostrar o rosto”.

A história constitucional de um país com tal DNA não poderia ter parentesco com a dos Estados Unidos. A Constituição norte-americana nasceu em 1789 com sete artigos e cinco páginas manuscritas. Passados mais de 200 anos, incorporou 27 emendas. Nesse período, o Brasil teve sete Constituições. Ao ser promulgada em 1988, a mais recente tinha 245 artigos espalhados por 296 páginas. Dois desses artigos foram infiltrados furtivamente pelo relator Nelson Jobim com o consentimento de Ulysses Guimarães. Como o presidente da Constituinte morreu, só Jobim sabe quais são as normas constitucionais aprovadas em votação secreta por dois parlamentares.

Em 2019, ao completar 30 anos, a Carta Magna brasileira fora emendada mais de 100 vezes. Esse cipoal jurídico exige a mobilização de intérpretes, e para isso foi criado o Supremo Tribunal Federal. O problema é que os atuais titulares compõem o mais bisonho Timão da Toga de todos os tempos. Mais angustiante ainda é constatar que o STF vive mostrando que o que está muito ruim sempre pode piorar. Os brasileiros que acordaram na quinta-feira entusiasmados com a iminente aposentadoria de Celso de Mello foram dormir desolados com a decisão do presidente Jair Bolsonaro: o Pavão de Tatuí será substituído por Kássio Nunes. Não há perigo de o Supremo melhorar.

Leia também a matéria de capa desta edição, “A terceira mais extensa Constituição em todo o mundo”, de Selma Santa Cruz

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