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Edição 29

A vida com os algoritmos

Os riscos e as vantagens de um mundo baseado em dados

Branca Nunes
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O despertador do celular toca às 7 horas. Ainda na cama, uma rápida checagem nos grupos de WhatsApp indica se algo relevante aconteceu durante a noite ou se o mundo pode esperar mais alguns minutos para começar. Depois de acessar a playlist montada especialmente em sua homenagem pelo Spotify, você sai para correr 5 ou 10 quilômetros com a ajuda de um aplicativo sincronizado com o Google Watch. Durante o café da manhã, aproveita para se atualizar com as mais recentes notícias do dia.

O Waze indica o melhor caminho até o trabalho. Durante as próximas horas, Google, Twitter, Instagram, Facebook, Pinterest, Linkedin e YouTube disputarão cada segundo de seu tempo livre — e, muitas vezes, do tempo teoricamente reservado a outras atividades. À noite, depois que o Waze o conduz de volta para casa, um filme na Netflix, na Amazon Prime ou na HBO, antes de mais uma espiada em alguma rede social. O despertador, acionado pela Siri, decide a hora em que tudo vai recomeçar.

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A cada like dado num post qualquer, a cada filme visto, a cada música escolhida, a cada assunto pesquisado no Google, a cada segundo a mais que se passa observando uma foto no Instagram, os algoritmos vão analisando sua personalidade com o único objetivo de oferecer a você aquilo de que você gosta. Parece perfeito? Não é bem assim.

Os algoritmos

“O algoritmo nada mais é do que a linguagem do computador”, resume Mário Campello, diretor da Codenuts, empresa especializada no desenvolvimento de softwares. “Ele serve para mostrar à máquina o que ela deve fazer.” Por exemplo, ao acessar o aplicativo ou site de um supermercado, o algoritmo oferecerá promoções baseadas no histórico de compras de cada cliente. Se não tem filhos pequenos, dificilmente ele receberá uma oferta de fraldas. Nas redes sociais, o funcionamento é semelhante. Para o usuário, porém, as consequências são bem menos vantajosas.

 

Quem tem uma linha de pensamento mais conservadora, rejeita o aborto e não acredita no aquecimento global, por exemplo, será invariavelmente direcionado a reportagens, vídeos e notícias que corroboram essas ideias. O oposto também é verdadeiro. “Não adianta você publicar um texto pró-Lula no Facebook pensando que aquilo vai impactar os que são pró-Bolsonaro, porque isso dificilmente acontecerá”, exemplifica Campello. “O algoritmo não vai entregar. Se antes falávamos que a televisão ia deixá-lo burro, hoje são as redes sociais. Elas só vão apresentar algo com que você se identifica. O objetivo é não tirá-lo da zona de conforto para que você continue navegando.”

O dilema das redes

O papel das redes sociais e seu poder de manipulação voltaram à pauta com o lançamento há algumas semanas do documentário O Dilema das Redes, dirigido por Jeff Orlowski para a Netflix. No filme, ex-funcionários de empresas como Facebook, Google, Instagram e Twitter revelam as estratégias dessas companhias para vender anúncios, manipular os usuários e mantê-los cada vez mais conectados às redes sociais. Graças a isso, elas se tornaram extraordinariamente rentáveis. Essa relação entre “fornecedores” e “usuários” pode ser resumida numa frase, que virou chavão entre empresas de tecnologia e é citada no documentário: “Quem não está pagando pelo produto é o produto”.

Embora não seja propriamente uma novidade, o assunto merece ser posto em pauta também pela influência das redes sociais especialmente sobre os jovens. A parte ficcional do documentário retrata uma típica família de classe média norte-americana. Dos três filhos do casal, a caçula é a mais dependente das redes. Apesar de algumas vezes parecer exagerada, sua suscetibilidade aos comentários positivos e negativos sobre as fotos que publica não foge ao que acontece na vida real.

“Estudos mostram que a busca pelo like é tão viciante como droga, sobretudo para o cérebro em formação, como é o caso dos jovens até os 21 anos”, explicou a psicoterapeuta Karen Scavacini, autora de E Agora? Um Livro para Crianças Lidando com o Luto por Suicídio, numa entrevista ao UOL. “Eles são menos capazes de racionalizar. Não é que todos sejam inconsequentes, mas há uma impulsividade maior.”

Se antes o bullying era restrito ao ambiente escolar, o cyberbullying se prolonga pelas 24 horas do dia, levado pelos celulares e computadores. “O jovem também não questiona o que vê nas redes sociais”, observa Karen. “Quanto mais horas ele passa ali, vendo vidas perfeitas, maior o risco de depressão e suicídio.” Entre 2011 e 2018, o número de suicídios entre garotas de 10 a 14 anos cresceu 150% nos Estados Unidos.

O controle do tempo que os jovens passam nas redes sociais e do conteúdo acessado, além da presença da família no dia a dia desses adolescentes, é essencial para a manutenção de uma relação saudável com a tecnologia. “Quando pergunto a alguns pais o que conversam com seus filhos, muitos respondem que procuram saber o que eles aprenderam na escola, que nota tiraram. Isso não é uma conversa”, afirmou a psicóloga Valdeli Vieira no programa Perguntar Não Ofende, da rádio Jovem Pan. “Quanto mais momentos de convivência os pais conseguirem manter com seus filhos, mais os vínculos se fortalecem. E um vínculo forte oferece suporte para a criança falar do que ela está vivendo.”

O tempo

O excesso de tempo dedicado à internet e às redes sociais não é exclusividade de uma faixa etária. Em janeiro de 2020, mais de 150 milhões de usuários tinham acesso à internet no Brasil — um aumento de quase 9 milhões de pessoas em comparação com 2019. Desse total, 140 milhões acessavam algum tipo de rede social. Enquanto a média mundial de tempo passado nesse tipo de site é de menos de duas horas e meia por dia, os brasileiros ficam mais de três horas e meia, perdendo apenas para os nigerianos e filipinos. Em contrapartida, os japoneses permanecem cerca de 45 minutos diários nas redes sociais. Alemães, suíços, holandeses, austríacos e sul-coreanos, menos de uma hora e vinte.

“É preciso haver um conceito de educação midiática no Brasil”, defende Manoel Fernandes, diretor da Bites, consultoria especializada em análise de dados. “As pessoas devem ter consciência de que aquilo que a rede social entrega não corresponde à realidade. É imprescindível buscar outras fontes de informação.”

Apesar das evidências em contrário, 38% dos brasileiros confiam nas notícias que recebem pelas redes sociais, perdendo apenas para os turcos (51%). Em países como Inglaterra, Suécia, França, Estados Unidos, Alemanha e Dinamarca, esse índice é inferior a 15%.

“O que existe é uma lógica de retroalimentação”, explica Maurício Moura, CEO da Idea Big Data, empresa de marketing, estratégia e pesquisa. “O usuário procura determinadas informações e recebe cada vez mais um conteúdo que alimenta aquilo em que ele acredita, o que elimina o espaço para a discussão.” Manoel Fernandes complementa o raciocínio: “O mundo, de maneira geral, está sob o império do gosto médio e ele não busca o contraditório”.

Nem Moura nem Fernandes, contudo, responsabilizam exclusivamente as redes sociais pela polarização política que hoje se espalha pelo mundo nem pelo resultado das mais recentes eleições presidenciais nos Estados Unidos e no Brasil, como sugere o documentário da Netflix. “Há evidências de que o resultado do Brexit tenha sido influenciado por fake news publicadas principalmente no Facebook”, informa Maurício Moura. “Entretanto, não é possível que Donald Trump tenha vencido por causa das redes sociais. O que levou Hillary Clinton à derrota tem uma relação muito maior com a alta abstenção de eleitores tradicionais do Partido Democrata.”

Para Manoel Fernandes, a divulgação de fake news e o uso de robôs podem até ter motivado determinados eleitores a votar neste ou naquele candidato, mas não produzem efeitos expressivos num universo de 150 milhões de eleitores. “Quem perdeu não quer admitir a derrota, então transfere a responsabilidade para algo que não existe”, resume. “O que aconteceu em 2018 é que a população queria mudanças, e essas mudanças não reverberaram na pauta da extrema maioria dos candidatos.”

Manipulação

Francisco Brito Cruz, doutor em direito pela USP e diretor do Internet Lab, centro independente de pesquisa em tecnologia, chama a atenção para outro aspecto desse poder de manipulação das redes sociais. “Se por um lado as redes têm hoje elementos para manipular as pessoas como nunca antes na história da humanidade, por outro, esse poder nunca esteve tão fragmentado. Ou seja, mais pessoas podem manipular, o que não deixa de ser um aspecto positivo. Até recentemente, isso era quase uma exclusividade da televisão.”

Segundo Cruz, para mudar tal realidade é preciso colocar as empresas de internet no centro do debate e conscientizar a sociedade. “Cada agente público tem seu papel”, diz. “O da imprensa é denunciar e informar, como fez nos casos da Cambridge Analytica e de Edward Snowden. Cabe ao Estado estabelecer regras essenciais e à população saber que pode e deve questionar as informações que chegam até ela.”

Manoel Fernandes acredita que os limites devam ser impostos pelos próprios usuários. “Toda vez que assuntos desse tipo começam a ser discutidos, uma linha de pensamento acaba flertando com o controle estatal”, critica. “Prefiro que as pessoas decidam por conta própria. É muito perigoso transferir a terceiros a decisão do que é ou não verdadeiro, do que pode ou não ser visto. Para combater as fake news já existe o Código Penal.”

Tudo somado, trata-se de uma questão de dosagem e educação. Curiosamente, aqueles que trabalham com tecnologia e algoritmos são os que menos expõem sua vida a essa tecnologia e a esses algoritmos. Como ensina a citação de Sófocles na abertura do documentário, “nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”.

Nesse caso, as vantagens são infinitamente maiores. Graças às redes sociais, à tecnologia e aos algoritmos, doenças são descobertas e tratadas com antecedência, amigos de infância se reencontram, os carros e as casas estão mais seguros e até tendências ao suicídio podem ser previstas e evitadas. “Mais que as redes sociais, o Google sabe para onde você vai, o que consome e com quem conversa”, constata Manoel Fernandes. “O mínimo que você entrega no fundo já é suficiente para as empresas terem dados como jamais tiveram, mas o que fazer? Se é ruim com eles, sem eles seria muito pior.”

Leia também:
“Lei de Proteção de Dados: um cenário incerto para as empresas”
, matéria desta edição
“Quem manda nas redes?”, artigo de Selma Santa Cruz

 

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