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Edição 32

EUA — O que está em jogo

Em confronto, duas visões antagônicas sobre temas como geopolítica e comércio internacional, impostos e saúde, clima e energia, China e Oriente Médio

Ana Paula Henkel
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Há exatos 40 anos, o mundo assistia ao debate da eleição presidencial nos Estados Unidos que mudaria para sempre o rumo da nação. O confronto entre Jimmy Carter e Ronald Reagan em Cleveland, Ohio, no dia 28 de outubro de 1980, foi o segundo debate mais visto na história.

Como Donald Trump, Carter foi um presidente em primeiro mandato cujo caminho para a reeleição se mostrou desafiador, para dizer o mínimo. É difícil imaginar dois homens mais diferentes do que Jimmy Carter, o fazendeiro da Geórgia, e Donald Trump, o magnata do mercado imobiliário, mas há alguns paralelos que podemos fazer entre eles.

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Obviamente, os tempos são outros. O cenário político norte-americano é bem diverso daquele em 1980. No entanto, no último ano de seus primeiros mandatos, Jimmy Carter e Donald Trump enfrentaram crises para as quais eles e o país que lideravam não estavam preparados. Para Trump, foi a pandemia de covid-19 e suas consequências políticas. Para Carter, o desafio foi a crise dos reféns de 1979, quando 52 norte-americanos foram mantidos na embaixada norte-americana em Teerã por 444 dias. Aquela veio a ser a primeira grande experiência dos Estados Unidos com radicais islâmicos, e as tentativas de Carter de negociar não prosperaram, já que o governo formal no poder no Irã tinha pouco controle sobre os estudantes que controlavam os reféns. Em abril de 1980, Carter recorreu a uma ousada operação de resgate militar que falhou espetacularmente, matando militares norte-americanos quando uma aeronave caiu no deserto antes mesmo de chegar à capital iraniana.

Para Trump, o vírus chinês acabou com sua maior vantagem: uma economia pulsante com baixa inflação e com os mais baixos índices de desemprego da história. À medida que o país se fechava em lockdowns severos, principalmente nos Estados democratas, o desemprego disparou e milhões de trabalhadores demitidos começaram a temer nunca mais voltar a trabalhar. O ano eleitoral de Carter também foi marcado por problemas econômicos. Em janeiro de 1980, o país estava em recessão. Sob sua supervisão, a taxa de inflação disparou para dois dígitos e o desemprego aumentou, uma ocorrência incomum na economia dos EUA.

De lá para cá, os partidos também mudaram. O Partido Democrata de John F. Kennedy, ícone da política norte-americana, não existe mais. A social-democracia de Bill Clinton ficou no passado. Hoje os democratas estão mais perto do Psol do que do PSDB e não apenas aplaudem mas tentam implementar políticas tão progressistas que beiram o socialismo “tradicional”.

O Partido Republicano também mudou. O partido de Reagan que duelou com Carter em 1980 há tempos não existe. Os republicanos que não gostam de Trump querem “voltar ao normal”, mas o fato é que está morto o velho GOP, o Great Old Party. A grande virada se deu em 2016, quando Trump “sequestrou” o partido e, embora fosse considerado um republicano, o apoio que o impulsionou à vitória veio de uma nova configuração do eleitorado. Muitos republicanos convencionais ainda não entendem isso, mas provavelmente nenhum outro candidato teria vencido naquele ano.

O que fica cada dia mais óbvio é que ambos os partidos estão travando guerras civis internas. A extrema esquerda do Partido Democrata está se lançando ao socialismo e à destruição não só de estátuas, mas dos valores norte-americanos e dos princípios fundamentais da nação mais livre do mundo. Na verdade, a retórica crescente atualmente empregada pela esquerda não apenas silencia os dissidentes, busca também eliminá-los e forçar, até com o uso da violência, a matriz de suas ideias marxistas. A América está lutando não apenas pela própria identidade, mas por sua vida.

E, com o pêndulo ideológico tão volátil, o que está em jogo na eleição mais importante das últimas décadas? Muito se fala da postura de Donald Trump e Joe Biden, que poderiam estar em lados completamente opostos em um concurso de personalidade, mas o que eles trazem de concreto em suas plataformas que pode afetar não apenas o país, mas o mundo todo?

Política tributária

Há um enorme abismo entre os candidatos presidenciais quando o assunto é política tributária — e estamos falando de trilhões de dólares na próxima década. O presidente Trump está em campanha para dar continuidade à maior conquista legislativa de seu governo, a Reforma Tributária de 2017, que reduziu impostos sobre empresas e indivíduos, trazendo uma série de benefícios para o país, inclusive a repatriação de grandes empresas. Joe Biden, por outro lado, propõe forte aumento de impostos sobre empresas para pagar por programas sociais e ambientalistas, além da taxação de grandes fortunas. Até agora, sua proposta de impostos mais altos não faz parte de nenhum plano de redução do déficit — que também cresceu no governo Trump, verdade seja dita. A agenda tributária democrata inclui impostos mais elevados que financiarão novas agendas verdes malucas de trilhões de dólares, planos de saúde e assistência médica “gratuita” para imigrantes ilegais.

Política externa

Donald Trump e Joe Biden mostram profundas diferenças nas principais áreas da política externa dos EUA, e apenas esse tópico daria um artigo inteiro. Isso inclui alianças, relações com Arábia Saudita, Irã e União Europeia. No entanto, o republicano e o democrata têm opiniões semelhantes sobre alguns objetivos importantes, como o limite de envio de tropas para o Oriente Médio e o Afeganistão.

China

O presidente Trump traçou uma política de confronto com a China mais intensa do que seus antecessores republicanos e democratas adotaram nas quatro décadas desde que Washington e Pequim estabeleceram relações diplomáticas plenas. Essa linha dura provavelmente continuará com uma vitória de Trump, com a guerra tarifária e a proteção à propriedade intelectual norte-americana. Se o democrata levar a eleição de 2020, há indícios suficientes de que os EUA amolecerão com o Partido Comunista Chinês, uma vez que durante a última semana documentos apresentados ao FBI por um ex-parceiro de negócios de Hunter Biden, filho de Joe Biden, mostram laços comerciais fortes da família Biden com empresários chineses desde a época em que o agora candidato era vice de Barack Obama.

Imigração, muro e fronteiras

A imigração foi o tema central da campanha do presidente Trump em 2016 e, desde que assumiu o cargo, ele buscou reduzir quase todas as formas de imigração para os EUA. Entre as mudanças de Trump: construção de muro de fronteira, proibição de viagens provenientes de vários países e fechamento temporário da fronteira sul para requerentes de asilo durante a pandemia do coronavírus. Biden formulou sua própria política de imigração como uma refutação dos termos de Trump, prometendo desfazer quase todas as mudanças implementadas pelo governo republicano.

Polícia, crime e injustiça racial

Policiamento, crime e injustiça racial tornaram-se temas importantes na eleição presidencial deste ano, alimentados em parte por uma série de encontros fatais entre policiais e negros. O presidente Trump e o ex-vice-presidente Joe Biden ofereceram respostas diferentes a essas questões. O democrata dá sinais de seguir a linha da ala radical do partido que quer diminuir com robustez o orçamento para as corporações policiais em todo o país. Já o republicano promete o caminho inverso, aumentar o orçamento e melhorar as condições de treinamento dos policiais.

Comércio

A eleição de Donald Trump em 2016 levou à maior transformação na política comercial dos EUA desde a 2ª Guerra Mundial. Enquanto ele propõe seguir a estratégia de renegociar acordos desfavoráveis aos Estados Unidos, uma vitória de Joe Biden pode mudar de direção novamente. O democrata diz que vai cortejar os aliados atingidos pelas sanções comerciais de Trump, repensar o uso de tarifas e tentar criar uma frente única para enfrentar a hegemonia da China em alguns importantes setores.

Clima e energia

A eleição presidencial de 2020 coloca um candidato que considera a mudança climática como parte de sua plataforma, contra outro que rejeita seu protagonismo e promete continuar promovendo uma agenda de energia sustentável sem acabar com os combustíveis fósseis. A política ambiental é um dos maiores contrastes entre o presidente Trump e Joe Biden. Empresas de energia, montadoras e sindicatos poderão ver grandes mudanças se houver rotatividade na Casa Branca.

Biden tem se atrapalhado com o debate relacionado aos combustíveis fósseis, tema de extrema importância para Estados que podem decidir as eleições como, por exemplo, a Pensilvânia. O democrata adapta sua retórica dependendo do público desde as primárias, segundo os números das pesquisas. Ele não admite publicamente que o fracking (extração de gás e petróleo do solo) tenha libertado os EUA da dependência de meio século do Oriente Médio e reduzido as contas de gás do consumidor. Biden promete implementar o Green New Deal, proposta absurda da ala radical do partido que, além de vários pontos utópicos, pretende acabar com o uso dos combustíveis fósseis em dez anos.

Saúde

A maioria das diferenças entre o presidente Trump e Biden tem a ver com uma disputa central: Trump quer reduzir o papel do governo federal na saúde dos americanos, enquanto Biden quer expandi-lo. Trump prefere conceder autonomia a Estados e cidadãos, de modo que possam escolher o tipo de plano de saúde. Biden quer um sistema integrado.

Oriente Médio

O atual presidente tem pressionado mais países árabes para normalizar as relações com Israel. Três importantes acordos de paz foram assinados, negociados por Trump, e isso faz com que os EUA tenham mais aliados na região. Se Biden vencer, existe a dúvida se ele faria esforços para reviver o acordo nuclear de 2015 com o Irã, assinado por Barack Obama, e com isso perturbaria Israel e os países árabes.

Quando Ronald Reagan subiu ao palco na noite de 28 de outubro de 1980, a América não imaginava como o ex-governador da Califórnia terminaria aquele debate com uma série de perguntas que são levantadas até hoje em época de eleições presidenciais. Em suas considerações finais, o ex-ator olhou firmemente para a câmera e perguntou à nação: “Você está melhor do que há quatro anos? É mais fácil sair e comprar coisas nas lojas do que há quatro anos? Existe mais ou menos desemprego no país do que há quatro anos? A América é respeitada em todo o mundo como era? Você acha que estamos seguros e fortes quanto éramos há quatro anos?”.

Saberemos em breve se Trump sairá como Carter, ou se colherá os frutos das políticas domésticas e internacionais do livro de Reagan.

 

12 comentários
  1. Francisco Ferraz
    Francisco Ferraz

    Excepcionalmente Ana estou tendo i prazer de ler seu artigo somente agora… sábado, dia 07, quando já se tem, infelizmente, bem próximo, o anúncio da vitória daquele bastardo de Delawre!
    Seu texto é impecável, imparcial…mas, eu não sou!
    A não ser que se confirmem as grandes dificuldades, que o amiguinho dos “chinos”, terá com a Câmara e o Senado, se não obtiver maioria em nenhuma delas…Mas do contrário, a América viverá dias difíceis! E o resto do mundo também!

  2. Vania L M Marinelli
    Vania L M Marinelli

    Exímia como no vôlei, é como vc está se mostrando em seu jornalismo crítico e consistente. Pelo jeito, gosta de fazer sempre muito bem tudo o que faz. Excelente artigo! Igualmente excelente no JP! Parabéns!

  3. Juarina Teles De Menezes Pereira
    Juarina Teles De Menezes Pereira

    Como sempre ÓTIMA!

  4. Marcello Cruz
    Marcello Cruz

    muito bom

  5. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    Existem plataformas com estudos de possibilidades que apontam que entraremos num ciclo muito conturbado e mais difícil do que aquele encerrado com o término da guerra fria. Teremos problemas planetários não só com vírus, mas com mais violência e mais insanidades.
    Quem irá administrar e liderar momentos complicados com sabedoria e inteligência?
    Independentemente de quem ganhar as eleições nos EUA a polaridade continuará com movimentos sociais de peso. Não imagino um ciclo tranquilo nem para Joe nem para Trump. E…. a mesma coisa com o mundo inteiro incluindo o Brasil.

    1. Luiz Americo Lisboa Junior
      Luiz Americo Lisboa Junior

      Deixou de falar sobre política americana para a América Latina que diz respeito aos interesses brasileiros, maior economia do continente.

  6. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    O Partido Democrata está sendo cínico, pisando com os pés sujos de lama o suntuoso tapete que sempre foram os EUA. Isso não vai acabar bem.

  7. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Agora é torcer pelo Tramp.

  8. Valdenize Tiziani
    Valdenize Tiziani

    Excelente análise, Ana Paula!

    1. Teresa Guzzo
      Teresa Guzzo

      Ana Paula coloca para os leitores didaticamente os fatos reais nos EUA e a atual disputa apertada entre Biden e Trump.Infelizmente voto no Brasil,mas meu voto seria de Trump,para resumir: é extremamente importante para o equilíbrio mundial a vitória do candidato do partido republicano.Nao temos outra saída,essa é a melhor escolha.Biden está senil(acompanhei os debates) e dita cartilha de esquerda.Parece remeter a linguagem de Dilma.

  9. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Onde existir a palavra “marxista” apadrinhando alguma coisa, pode deixar que eu tô fora. Não contem comigo para nada. Fui!

  10. Maurício Fossen
    Maurício Fossen

    Parabéns, Ana Paula. Conheço suas preferências políticas porque a acompanho há algum tempo. Mas a admiro pela análise isenta que você busca fazer sempre embasada em fatos concretos, o que dá muita credibilidade a sua análise. Parabéns.

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