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Edição 33

Um drinque na Lua

A descoberta de água no satélite da Terra pode acelerar a exploração espacial. Tornará menos complexa a instalação de uma base fixa para servir como parada técnica a caminho de Marte

Dagomir Marquezi
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Quando alguém aponta para a Lua, o idiota olha para o dedo. É o que diz o velho ditado. Muitos dedos estão neste momento sendo apontados para nosso brilhante satélite prateado. A Lua é a musa de grandes transformações.

Em primeiro lugar, tem a água. Quando os primeiros astronautas pisaram na Lua, em 1969, a areia (conhecida como “regolito”) que ficou presa a suas botas chocou pela secura. A Lua parecia ser um deserto morto. Dois anos depois, astronautas da Apollo 14 colheram amostras de vapor de água.

Em 1976, a nave soviética Luna 24 trouxe amostras do solo lunar para a Terra. Os cientistas perceberam que havia 1% de água nessas amostras. A Lua já não era mais considerada um deserto absoluto. Pesquisas mais avançadas revelaram em 2010 a presença de água gelada ao redor dos polos. Calculou-se que as regiões polares poderiam conter 600 milhões de toneladas métricas de gelo. Mas só em locais que a luz do Sol não alcançava.

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A água lunar se tornou uma possibilidade real. Ela poderia ser usada para o consumo humano e transformada em combustível para as naves (em forma de hidrogênio líquido). Por causa da água, planos para novas alunissagens passaram a focar as proximidades do polo sul.

No dia 26 de outubro, a Nasa anunciou (na revista Nature Astronomy) os surpreendentes resultados da pesquisa realizada com o Sofia. O Sofia (uma sigla mais sexy para Observatório Estratosférico Astronômico Infravermelho) é um telescópio montado a bordo de um Boeing 747SP voando a 13 mil metros, bem acima das nuvens.

O Sofia estudou especificamente a segunda maior cratera do lado visível da Lua, a Clavius, localizada no sul do satélite. A Clavius tem 231 quilômetros de diâmetro, um buraco pouco menor que a distância entre Curitiba e Florianópolis. Ficou famosa na ficção como cenário do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço. Graças ao Sofia, agora soubemos que Clavius, mesmo exposta à luz solar, tem traços de água. Essa descoberta mudou um paradigma. Os astronautas futuros poderão se estabelecer teoricamente em qualquer ponto da Lua, e não apenas nas regiões polares.

A água não existe ainda (ao que se sabe) em forma líquida

Como essa água se formou na Lua? Existem duas possibilidades. Uma, a de que foi levada por meteoritos que se chocaram com o satélite. A outra possiblidade é que o hidrogênio carregado pelos ventos solares reagiu ao contato com o rarefeito oxigênio da Lua. (Não sabemos exatamente nem como a água surgiu na Terra.)

A quantidade de água encontrada pelos sensores infravermelhos do Sofia é muito pequena. O solo da Lua é cem vezes mais seco do que o Deserto do Saara. Nos polos, a extração da água será mais difícil — e mais farta. A perspectiva é que não exista um grande lago subterrâneo. Mas a soma de microdepósitos de gelo pode chegar a 40 mil quilômetros quadrados de água — pouco menos que a área do Estado do Rio de Janeiro ou da Dinamarca.

Essa água não existe ainda (ao que se sabe) em forma líquida. São moléculas de hidrogênio e oxigênio muito esparsas. Mas estão prontas para ser manipuladas pelo equipamento apropriado para virar H2O.

Humanos poderão beber essa água lunar? Shuai Li, da Universidade do Havaí, assinala que ela vai estar misturada com o regolito e materiais remanescentes dos meteoritos. Pode conter também traços de anortosito, uma pedra clara e rica em cálcio. Basalto e sal podem estar também presentes. Ou seja: seu sabor não deve ser muito agradável. Nada que uma boa filtragem não resolva.

Em 2021, o foguete Artemis I levará os veículos Lunar Flashlight e Lunar IceCube, destinados a analisar o solo em detalhes inéditos. No ano seguinte será lançado o Lunar Trailblazer, que vai produzir um mapa em alta resolução de localização de água no satélite.

Em 2023, a Nasa (em parceria com a empresa Astrobotic) mandará para a Lua um veículo do tamanho de um carrinho de golfe chamado Viper (Volatiles Investigating Polar Exploration Rover). Em cem dias de pesquisa, o Viper (capaz de cavar até 1 metro sob a superfície) deverá criar um mapa regional indicando onde está a água no polo. Esse mapa poderá determinar onde vai ser instalada a futura primeira base fixa. Em 2024, se tudo der certo, dois astronautas (incluindo uma mulher) deverão voltar à superfície do satélite.

A exploração de água na Lua vai inaugurar uma nova fase da história da humanidade — a criação da primeira economia espacial. Essa água precisa ser localizada, explorada, beneficiada, armazenada. O consórcio United Launch Alliance calcula que a mineração de água na Lua pode virar um negócio de US$ 2,4 bilhões.

“A ideia de minerar a Lua e os asteroides não é mais ficção científica”, resumiu o professor Dan Britt, da Universidade da Flórida Central, que colabora no projeto. “Existem equipes ao redor do mundo procurando maneiras de fazer isso se tornar realidade, e nosso trabalho é ajudar a concretizar essa ideia.”

Pouco antes de a Nasa anunciar a descoberta de água na Lua, foram assinados (em 13 de outubro) os Acordos Artemis. Eles estabelecem princípios práticos para a exploração da Lua, de Marte, de asteroides e outros corpos celestes. O acordo foi proposto pelos Estados Unidos e assinado (em negociações bilaterais) por oito países: Austrália, Canadá, Emirados Árabes Unidos, EUA, Itália, Japão, Luxemburgo e Reino Unido. (O Brasil foi convidado, mas ainda não respondeu.)

A China nem foi convidada para os Acordos Artemis por causa de uma emenda legal (chamada Wolf) que dificulta a cooperação bilateral com o país. Mas a Emenda Wolf, segundo o especialista em segurança espacial Todd Harrison, “não está retardando a China. Ao contrário, está incentivando o país a se tornar uma potência espacial”.

A China já avisou que montará uma estação espacial de órbita baixa. E deixou claro que sua estação vai ser “chinesa” e não internacional, como a ISS, que está a caminho da aposentadoria. Os chineses pretendem também estabelecer sua própria base próximo do polo sul lunar. E querem ser os primeiros. Ao mesmo tempo, o país está disposto a acertar acordos com os EUA em áreas vitais como o tráfego de espaçonaves. O espaço é hostil demais para aceitar bravatas internacionais.

Alemanha, França e Índia, que também desenvolvem programas espaciais, ainda não aderiram. A Rússia não assinou os Artemis por considerar o programa muito “centralizado nos EUA”. Segundo o governo Vladimir Putin, os Estados Unidos estão se impondo sobre o desejo de nações mais fracas para lucrar com a exploração do espaço. O programa espacial russo, que já foi glorioso, está perdendo  importância. Talvez a Rússia resolva que vale a pena para seus interesses negociar a participação nos Acordos Artemis. Ou talvez prefira aliar-se à China e assumir-se como simples coadjuvante.

O direito de exploração econômica é de quem chegar primeiro?

Os Acordos Artemis podem ser resumidos em dez pontos: 1) exploração pacífica do espaço; 2) transparência nas atividades; 3) os signatários devem usar sistemas compatíveis de equipamento para garantir segurança e sustentabilidade; 4) os países-membros se comprometem a ajudar uns aos outros em caso de perigo de qualquer tripulação; 5) as informações científicas devem ser compartilhadas com o resto do mundo; 6) a herança do espaço será garantida por todos e para todos; 7) a exploração dos recursos naturais deve ser conduzida de acordo com o Tratado do Espaço Exterior, criado em 1967 e assinado até agora por 110 países; 8) as atividades espaciais devem ser isentas de interferência dos países para que conflitos sejam evitados; 9) os signatários se comprometem a planejar o descarte seguro de dejetos espaciais; 10) todos os membros se comprometem a criar um inventário comum dos objetos lançados ao espaço.

“Artemis será o mais amplo e diversificado programa de exploração do espaço da História”, declarou o administrador da Nasa, Jim Bridenstine, no momento da assinatura dos Acordos. “Estamos nos unindo aos nossos parceiros para explorar a Lua e estabelecendo os princípios vitais que criarão um futuro seguro, pacífico e próspero no espaço para que toda a humanidade desfrute.”

Essa nova fase da aventura humana ainda tem muitas zonas cinzentas, com potencial para futuros conflitos. A empresa Starkink (que pertence à SpaceX) diz nos termos de serviço para seus clientes: “As partes reconhecem Marte como um planeta livre e nenhum governo baseado na Terra tem autoridade ou soberania sobre as atividades marcianas”.

Já a empresa Lunar Land está oferecendo terrenos na Lua, próximo do Mar da Tranquilidade. Os pacotes começam com US$ 30 e chegam a US$ 250 (“81 mil metros quadrados, documentos de posse, nome no certificado de propriedade, mapa da Lua”). A empresa oferece também terrenos em Marte, Mercúrio, Vênus e em uma das luas de Júpiter. Isso é legal? Provavelmente não. Mas ninguém sabe ao certo.

E existe o caso do asteroide 16 Psyche, com 225 quilômetros de diâmetro, que circula entre Marte e Júpiter. É um bloco esburacado em formato de batata, composto basicamente de ferro e níquel. Resolveram calcular quanto valeria esse depósito de metais flutuando no espaço, com os preços de mercado atuais. O valor teórico do 16 Psyche chegou a US$ 10 quintilhões. Transformaria o PIB somado do mundo inteiro (US$ 87 trilhões em 2019, segundo o Banco Mundial) num troquinho.

Não existem — ainda — planos de minerar o 16 Psyche. De qualquer jeito, até pelo valor científico do asteroide, a Nasa já programou um voo não tripulado do SpaceX para lá em 2022. Deverá chegar em janeiro de 2026. E se as pesquisas indicarem valer a pena explorá-lo? A quem pertence esse asteroide?

Segundo o artigo 2 do OST (Tratado do Espaço Exterior), assinado em 1967, “o espaço exterior, incluindo a Lua e outros corpos celestes, não está sujeito a apropriação nacional por declaração de soberania, no sentido de uso ou ocupação, ou por quaisquer outros meios”. Mas, como destaca artigo do New Indian Express, “o mundo de 2020 é diferente do mundo de 1967”. O mundo não está mais na Guerra Fria dos anos 1960. Nem no século 17, quando reinos disputavam nacos de território nas Américas com canhonaços mútuos. A iniciativa privada faz a maior diferença nesse sentido.

Em 2040 nossos descendentes pensarão em migrar para a Lua, como seus tataravós migraram para o Brasil? Viajarão em naves montadas com metais extraídos de 16 Psyche? Farão visitas guiadas ao memorial da primeira base lunar? Tomarão água geladinha extraída da cratera Clavius?

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De Dagomir Marquezi, leia também “Nos encontramos em Marte”

 


Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de Se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.

 

6 comentários
  1. Satélite 100% brasileiro vai entrar em órbita – Farol.News
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    […] também: “Um drinque na Lua”, artigo do colunista Dagomir Marquezi publicado na edição 33 da Revista […]

  2. Natan Carvalho Monteiro Nunes
    Natan Carvalho Monteiro Nunes

    Artigo excelente. Li e discuti parágrafo a parágrafo com meu pai, que tbm é muito interessado no assunto. Parabéns, Dagomir.

  3. Sebastiao Márcio Monteiro
    Sebastiao Márcio Monteiro

    Mais um texto primoroso. Excelente!

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Muito interessante. Espetacular.

  5. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Super interessante.

  6. Rogerio
    Rogerio

    Spock, é você?

  7. Silas Veloso
    Silas Veloso

    Brilhante texto, bálsamo diante dos cri-cris intolerantes q destroem estátuas, reputações e queimam o q julgam inferior moralmente

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