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Edição 53

A moralidade dos mercados

Execrada como obra do capeta, a economia de mercado proporcionou dignidade a muito mais pessoas do que o Estado do bem-estar

Ubiratan Jorge Iorio
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“O livre mercado não é a salvação do mundo, porém é o que oferece as melhores oportunidades para a prosperidade humana e para que cada pessoa escolha em liberdade.
Robert Sirico

São contumazes, sempre que se aponta o desempenho econômico sofrível das sociedades que se afastaram da economia de mercado, as tentativas de contrapor-se a esse fato — que a História mostrou ser irrefutável —, desviando o assunto para o campo da ética, como se economia e ética, transações voluntárias e princípios morais, liberdade e respeito ao próximo fossem, além de separáveis, mutuamente excludentes. A lábia é que no sistema de livre mercado os indivíduos somente se preocupariam em tirar vantagens dos outros, sem compromissos com as diferenças entre certo e errado, moral e imoral, interesse privado e “consciência social”.

Essas argumentações são falaciosas, porque a superioridade da economia de mercado, da liberdade econômica e dos mercados livres sobre os arranjos econômicos que operam debaixo da intervenção de governos não se limita aos resultados econômicos: é válida também no campo moral. A relutância por parte de muitas pessoas em aceitar as vantagens éticas e morais do livre mercado é, em boa parte, fruto de uma comparação subliminar e sem pé nem cabeça entre defeitos supostamente crônicos de mercados reais e qualidades supostamente ideais de governos e, obviamente, de uma doutrinação competentemente conduzida pelos defensores do intervencionismo, de todos os matizes.

“Eu não aceito que a ética do mercado, que é profundamente malvada, perversa, a ética da venda, do lucro, seja a que satisfaz ao ser humano.” Essa dupla declaração, de amor ao equívoco e ódio à verdade, é do “patrono da educação” no Brasil, aquele que foi canonizado pelos políticos e economistas de esquerda e é invocado nas pregações de teólogos embusteiros, que propõem “libertar” os fiéis impondo-lhes um regime que os levará inevitavelmente à servidão. É claro que o badalado “educador” tinha o direito de aceitar ou rejeitar qualquer coisa, mas é óbvio que sua afirmação acima desnuda uma ignorância espantosa acerca da natureza dos mercados livres, além de outras finalidades pouco retas, como a de enfiar a teoria de exploração marxista na cabeça de estudantes.

Escora-se a falácia na ideia de que os mercados são como convescotes, em que egoísmo e ganância são considerados virtudes, quando na verdade nem um nem outra chegam sequer a ser requisitos para uma verdadeira economia de mercado. Poucas afirmações são tão equivocadas como a de que a liberdade econômica mina a vida social, desconhecendo que essa liberdade é precisamente o arranjo social que mais incentiva o mérito, as trocas e o comércio voluntários, as recompensas, a busca pelos sonhos pessoais, a educação por meio da revelação de erros e vários outros atributos. A verdade, desconhecida por muitos, é que o mercado é um espaço moral em que muitas virtudes — como trabalho, esforço, dedicação, coragem, perseverança e criatividade — são incentivadas como meios justos e lícitos de alcançar recompensas.

A narrativa de que os mercados são moralmente inferiores a outras formas de coordenação social precisa ser desmascarada. Empresários virtuosos precisam deixar de ser considerados generalizadamente como exceções ou contradições e a identificação automática de comportamentos antiéticos com o processo de mercado deve deixar de ser aceita como verdade absoluta, passando a ser vista como exceção. Porém, é preciso ter cuidado para não cometer o erro crasso de, na tentativa de contestar o mito da malvadeza dos mercados, fazer uso de argumentos que exaltam o egoísmo como se fosse uma “virtude”, como fez a escritora libertária e ateísta Ayn Rand.

O caminho correto é mostrar que desde o surgimento espontâneo dos mercados, há milênios, eles são processos inseparáveis dos fundamentos éticos que regem as sociedades. Há três meios tradicionais para percorrer essa via: mostrar que os mercados são ordens morais porque promovem a cooperação social; esclarecer que as recompensas ao sucesso e aos méritos possibilitam uma justiça distributiva natural; e informar que os mecanismos dos mercados são aéticos, que funcionam independentemente de qualquer conteúdo moral e, portanto, qualquer mercado “funciona” perfeitamente, seja o de fraldas para bebês, seja o de tequila.

O socialismo e seus respingos de lama são píncaros de arrogância utópica

Esses três meios são válidos, mas acredito que a defesa mais completa, com bases argumentativas morais, deve mostrar como o processo de mercado não apenas propicia, mas principalmente requer e recompensa a moralidade, uma vez que seu funcionamento é tanto melhor quanto mais os participantes possuem virtudes e qualidades, que são exatamente as que tornam possíveis as recompensas naturais.

Outro erro comum entre os críticos do livre mercado é o de analisá-lo apenas pela perspectiva do Homo economicus, aquele sujeito gelado que mora nos livros de teoria econômica, incapaz de amar, odiar, ter esperança, desesperança, fé, ceticismo, coragem, medo, temperança, imoderação, fraqueza etc. Para que não sejam eternamente indiciadas na polícia como suspeitas, as análises da moralidade dos mercados precisam considerar o Homo agens, ou seja, o homem normal, que age e que tem virtudes e defeitos.

Por outro lado, é também uma tolice tratar o mercado como um deus e imaginar que os seus integrantes sejam santos e anjos, mas esse não é o âmago da questão. A pergunta que se impõe é: que alternativas os críticos da economia de mercado propõem? A resposta é uma só e seu nome é intervencionismo, entendido no sentido que lhe dava Hayek, incluindo não só o denominado “socialismo real”, sistema baseado na abolição da propriedade privada, mas também, genericamente, as tentativas sistemáticas de realizar experimentos de “engenharia social”, isto é, de desenhar ou organizar por meio de medidas coercitivas a floresta inextricável e desconhecida, o verdadeiro emaranhado de interações humanas que são a essência do mercado e da sociedade.

Ora, para início de conversa, esses ensaios com cobaias humanas são impossibilidades lógicas burlescas, são erros intelectuais grotescos, porque é logicamente impossível que aqueles que têm a pretensão de organizar ou intervir na sociedade, ou executar um “projeto de país”, possam armazenar e saber utilizar o conhecimento necessário para concretizar o seu desejo de impor na prática o seu conceito particular de felicidade.

O socialismo e seus respingos de lama — conhecidos como social-democracia — são píncaros de arrogância utópica que agridem a condição e a dignidade humanas, a sucessão natural das coisas, as ordens espontâneas. As instituições mais importantes para a vida em sociedade — morais, jurídicas, linguísticas, políticas, sociológicas e econômicas — não foram criadas deliberadamente por ninguém, elas resultam de um longo processo evolutivo, em que bilhões de indivíduos, geração após geração, foram, cada um deles, despejando em um imenso reservatório o copo d’água das suas experiências, vontades, conhecimentos etc., originando dessa forma comportamentos repetitivos, ou seja, instituições que, portanto, não brotam de poucas cabeças iluminadas, mas emergem natural e lentamente do próprio processo de interação social, tornando-o, inclusive, possível.

Todos os arranjos opostos à economia de mercado propostos pelos intervencionistas agridem os princípios morais elementares, porque corrompem sistematicamente os conceitos milenares de direito e de justiça.  Como considerar “justo” um sistema que, por definição, consiste em avaliações arbitrárias feitas por políticos, burocratas ou juízes, com base em suas emoções e interesses particulares, para definirem os “resultados finais” do processo social que acreditam serem os melhores? Pode ser “justo” um sistema coercitivo, aplicado de cima para baixo? Ou impor o seu conceito subjetivo de felicidade aos outros?

Nesses sistemas, o que se julga não são comportamentos humanos, mas seus “resultados” percebidos, sob a fantasia da “justiça social”, cuja finalidade é, precisamente, iludir os que ela faz sofrer, mascarando-se como atrativa. Do ponto de vista da justiça natural, não existe nada mais injusto do que o conceito de “justiça social”, que se baseia em alucinações pessoais de “resultados” dos processos sociais, desconhecendo o comportamento de cada indivíduo relativamente às normas do direito tradicional.

Porém, os mercados não se baseiam somente no respeito à justiça, mas também na capacidade de os indivíduos se colocarem no lugar dos outros, de levarem em consideração os desejos alheios. Uma lanchonete cujo dono não liga para a vontade dos seus fregueses fechará em pouco tempo, porque seus consumidores não voltarão se não gostarem da comida ou se passarem mal. A rigor, os mercados não estimulam nem inibem o egoísmo ou a ganância, eles apenas possibilitam que tanto altruístas como egoístas se empenhem por seus fins em paz. E mesmo seres iluminados, que dedicam a vida a ajudar o próximo, mesmo uma Irmã Dulce, precisam do mercado, tanto quanto os que têm como único objetivo acumular riquezas.

Para finalizar, há que se ressaltar, em negrito e em letras coloridas, que foi a economia de mercado que, desde a Revolução Industrial, com o surgimento do capitalismo, tirou e continua tirando a maior parte dos seres humanos da pobreza extrema e que, apesar de ser invariavelmente execrada como obra do capeta, a verdade é que ela proporcionou dignidade a muito mais pessoas do que o Estado do bem-estar, esse socialismo nutella que só ajuda a quem lhe rende frutos políticos e, obviamente, do que o socialismo raiz, notório supressor da dignidade e da liberdade individuais.

Nestes dias estranhos, defender a liberdade econômica, expondo claramente sua superioridade em termos de eficiência e de moralidade, é mais do que oportuno — é essencial para fazer o mundo parar de flertar com a desgraça. Parabéns à Revista Oeste por estar, há exatamente um ano, cumprindo essa tarefa.

Leia também “Um liberal no poder”


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. @ubiratanjorge.iorio

10 comentários
  1. Valfredo Novais Silva
    Valfredo Novais Silva

    Texto muito bem escrito e muito oportuno.

  2. Gustavo H R Costa
    Gustavo H R Costa

    Espetacular Iorio. Síntese memorável para ser lida, relida e distribuída. Obrigado

  3. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Precisamos orientar filhos e netos para que não se deixem levar pela ideologia irreal e utópica do socialismo/comunismo/progressismo/globalismo.

  4. Daniel Brito Guimarães
    Daniel Brito Guimarães

    Artigo maravilhoso! A essência natural do “não intervencionismo estatal” nunca significou tanto desafio e encanto.

  5. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Brilhante, ótimo e didático artigo. Parabéns Ubiratan Jorge.

  6. Fabio Augusto Boemer Barile
    Fabio Augusto Boemer Barile

    Eu gostaria de saber por que o Brasil passou tantos anos flertando com a desgraça e parece não ter aprendido nada… estaremos ano que vem nas eleições flertando com a desgraça vermelha novamente.

  7. Júlio Rodrigues Neto
    Júlio Rodrigues Neto

    Socialista é todo aquele que não gosta de fazer nada e vive às custas do Estado.

    1. Francisco Pessoa de Queiroz.com
      Francisco Pessoa de Queiroz.com

      Muito bom.

  8. Marcelo Queiroz Caetano
    Marcelo Queiroz Caetano

    Ótimo artigo! Parabéns! O livre mercado é o único modelo conhecido que permite o livre arranjo de ideias e ações individuais.

  9. Jalcyr Henrique Rocha Cardoso
    Jalcyr Henrique Rocha Cardoso

    Sou associado, não está abrindo as reportagens

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