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Edição 54

A ‘crise’ do Brasil de ontem

Hoje, nem Bolsonaro, nem os militares demitidos, nem os que foram para o lugar deles podem dar golpe nenhum — não no mundo das realidades

J. R. Guzzo
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Houve um tempo, já faz muito tempo, em que muito jornalista da área política neste país dava a si próprio a obrigação de ler, reler e entender o Almanaque do Exército. Era importante; quem tinha a capacidade de decifrar aquela maçaroca toda de nomes, datas, estrelas, patentes, medalhas e sabe lá Deus o que mais — uma coisa árida, misteriosa e pouco amigável — recebia a qualificação de “bem informado” e, portanto, capaz de compreender o que estava acontecendo no governo e no Brasil. Nunca ficou claro, no fim das contas, para que essas informações realmente serviam, mas o especialista em “almanaque” era um sujeito levado altamente a sério. “Fulano sabe tudo do Almanaque”, dizia-se, com respeito e reverência, nas redações.

Hoje a maioria dos jornalistas nem sabe que existe um Almanaque do Exército e, se por acaso sabe, não acha vantagem nenhuma — porque, muito simplesmente, o Almanaque não serve para mais nada. É consultado, sob a apresentação de senha, por oficiais, cabos e taifeiros, mas, fora isso, não interessa praticamente a mais ninguém. Muito natural: o que adianta, para qualquer efeito prático, saber quem pode ser promovido no Exército, quando e por quê? Ou na Aeronáutica e na Marinha? Não há como ficar bem informado sabendo nada disso. Já foi importante — hoje não é. Não é porque as Forças Armadas e seus oficiais deixaram de ser o que eram. São outra coisa, num outro país e num outo tempo.

A demissão dos três comandantes militares, todos de uma vez só, e nas vésperas do dia 31 de março, poria a terra em transe, no Brasil daqueles tempos. Acaba de acontecer, em sequência à demissão do chefe nominal dos três, o ministro da Defesa, e a vida continua exatamente como era. Não é bom: o país no dia seguinte à demissão coletiva permanecia entregue à pior crise de saúde de toda a sua história, com as “autoridades locais” gerindo uma epidemia que já causou 320.000 mortes, a economia em vias de colapso e milhões de vidas arruinadas pela perda do trabalho. Mas seria pior se, em cima de tudo isso, ainda houvesse uma “crise militar”. Não há.

O presidente Jair Bolsonaro, obviamente, não quis mais saber do seu ministro da Defesa e dos chefes das três Forças — cansou de olhar para o lado deles, buscando apoio contra os inimigos do seu governo, e ver que não havia ninguém em casa. Os comandantes, por sua vez, deixaram mais do que claro que não querem dar nem sequer uma volta no quarteirão para ajudar o presidente a reforçar a sua autoridade. A tese preferida na oposição, junto aos professores de ciência política e entre os economistas de centro-esquerda, é que Bolsonaro queria dar algum tipo de “autogolpe” e que os “militares” se recusaram a participar, em obediência às suas convicções democráticas. Disso estaria resultando uma crise política descomunal — e essa crise, além do mais, poderia dar ruim para o presidente, pois a “tropa”, indignada com as ameaças à democracia por parte do governo, iria tomar alguma providência.

O problema dessas histórias, contadas pelos peritos que a mídia vai buscar nas universidades para dar entrevistas e participar de mesas-redondas, é que nem Bolsonaro, nem os militares demitidos, nem os que foram para o lugar deles podem dar golpe nenhum — não no mundo das realidades. O presidente pode se livrar, como se livrou, de todos os generais, almirantes e brigadeiros que lhe faziam cara feia. Mas golpe militar, em nosso século 21, tornou-se uma dessas coisas que não se fazem mais. Nem é uma questão de ser a favor ou contra, de acreditar ou não no estado de direito, na Constituição e nas “instituições” – é que, na prática, não dá para fazer. “Botar a tropa na rua”, fechar o Congresso e tomar a torre de transmissão da Globo depende de várias coisas: nenhuma delas está disponível no momento. Golpe, venha de onde vier, precisa de liderança clara nos quartéis. Precisa de uma lista muito exata das coisas que serão feitas na vida real, imediatamente depois do golpe. Precisa de um programa de governo. Precisa de apoio, ou da indiferença, internacional. Precisa de ideias. Nada disso existe.

Militar transformou-se em profissional

Não é que haja alguém disposto a mexer uma palha em defesa do Supremo ou do Congresso. Não há ninguém, fora das classes intelectuais e das suas adjacências, ligando a mínima para nenhum dos dois; provavelmente haveria uma salva de palmas e festa nas ruas se fossem fechados sem data para abrir de novo. Mas também não há ninguém capaz de juntar o Exército, a maioria da opinião pública e as principais forças da sociedade para dar um golpe. A última vez que isso aconteceu foi há quase 60 anos, em 1964. E foi justamente o regime que se criou na ocasião, por mais que isso desagrade aos analistas políticos, que acabou de vez com a agitação militar que sempre envenenou a vida política do Brasil. A partir de 1964, todo e qualquer general, depois de dez anos no posto, vai para casa — não há exceções, e com isso acabou a possibilidade de os oficiais superiores criarem partidos próprios em seu benefício dentro do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica. Sumiu a figura do “general forte”, ou do “brigadeiro influente”. Militar, de lá para cá, transformou-se em profissional; um oficial só é promovido por mérito e outros critérios objetivos, e a disciplina é o valor número 1.

Os militares brasileiros de hoje, na verdade, são funcionários públicos basicamente iguais a todos os outros. Têm preocupações específicas com o desenvolvimento do submarino nuclear e do caça supersônico, com a defesa da Amazônia e com o suporte a uma série de ações civis, mas é isso. Não pensam em fazer política ou “influir” na vida do Brasil; cumprem as tarefas que recebem dos superiores, mais ou menos como a Receita Federal recolhe impostos e o Correio distribui cartas. Estão prestando atenção no soldo, na aposentadoria e na licença-prêmio convertida em “pecúnia”. No caso da demissão dos três comandantes ao mesmo tempo está se tentando, desde o primeiro dia, achar uma crise — seja porque os chefes cumprimentaram o presidente com o cotovelo, seja porque o novo ministro da Defesa não é o mais “antigo”, seja porque o general Mourão estaria inquieto, seja por outra razão qualquer. Tudo serve. Mas crise mesmo não há — fora da imprensa, do mundo político e dos especialistas. Os militares gostaram? Não gostaram? Tanto faz. Hoje em dia ninguém mais tem medo de militar nenhum, nem do que eles possam fazer.

Bolsonaro não pode mandar um cabo e um praça fecharem o STF, como 99% — vá lá, 95% — dos seus admiradores gostariam muito que ele fizesse. Os “militares”, por sua vez, não podem derrubar o presidente — ele só sai de lá com eleição. Em matéria de crise, chega a que já está aí todos os dias.

Leia também o artigo de Guilherme Fiuza nesta edição, “Puxando o tapete da democracia”

26 comentários
  1. Fabio Augusto Boemer Barile
    Fabio Augusto Boemer Barile

    A maior prova que um golpe militar é algo risivel e implasivel nos tempos atuais foram as manifestações de esquerditas da extrema imprensa defendendo “um golpe do bem” para tirar Bolsonaro. Se essa gente defende isso é por que não há a menor chance de acontecer mesmo.

  2. Antonio Carlos Almeida Rocha
    Antonio Carlos Almeida Rocha

    é a realidade do momento!! embora eu sonhe em ter “uma nova constituição para o Brasil” de Modesto Carvalhosa, e sabendo que essa constituição no momento só é possível a partir de uma ruptura do sistema atual, não dá realmente para esperar que os militares venham a embarcar nessa canoa…os militares são diferentes, mas a ameaça comunista nos ronda como em 64…

  3. Paulo Cesar Pavan
    Paulo Cesar Pavan

    Vamos contratar um sniper.

  4. FABIO
    FABIO

    Prezado Guzzo,

    O artigo é bom. Porém não concordo com a expressão “dar ruim” ao final do quarto parágrafo, por considerá-la gíria e, como tal, chula.

  5. Antonio Carlos Neves
    Antonio Carlos Neves

    Um dos melhores artigos do mestre Guzzo, que sem dar nomes identifica muito bem o jornalismo que a mídia tradicional pratica, que entendo nela presente o Estadão inclusive em editoriais. Recente editorial do Estadão, atribui a Bolsonaro a responsabilidade pela volta do Lula. Dá para entender?
    Como entender aquela poderosa mídia que odiava militares, enxergava assombração quando indicados para ministérios ou empregos em estatais, ora admirando generais que aparentemente não gostam de Bolsonaro, atribuindo-lhes qualidades outrora desconhecidas?
    Pois é, toda essa mídia especialmente do Estadão esta infectada por decadentes tucanos como o ressuscitado FHC, com frequência sendo entrevistado, insuflando “diplomaticamente”, o combate ao governo Bolsonaro, ora com impeachment, ora pedindo que renuncie, ora tentando tirar popularidade para as eleições de 2022.
    Vale lembrar que este senhor que outrora como tucano admirei, revelou-se em seus “diários da presidência”, com sinceras declarações adequadas por quem morreu ou desligou-se da vida pública. Não sei se narrou tudo, mas demonstra que soube cooptar políticos e tribunais e declara que interferiu na PF e na imprensa. Atualmente FHC assina manifestos e faz live com personalidades desde Ricupero até Boulos e Jean Willys, e esta disposto a conversar com Lula. Melhor agradecer o destaque que a imprensa do ódio lhe dá, descansar no lar e ler seus diários novamente.

  6. Nagib José Boulos
    Nagib José Boulos

    Parabéns pela matéria e análise.

    1. Teresa Guzzo
      Teresa Guzzo

      Não vai ter golpe algum e nem impeachment,vida que segue.Alguns jornalistas adoram fofocas,apenas isso.Dica do dia:procurem mídias confiáveis e curtam a Páscoa.

  7. Sérgio Da Silva Martins
    Sérgio Da Silva Martins

    JR Guzzo, mais uma vez, excelente! Você é uma das pessoas mais sensatas da mídia brasileira.

  8. Jenisvaldo Oliveira Rocha
    Jenisvaldo Oliveira Rocha

    Golpe inexiste por parte de Bolsonaro, mas está sendo tramado pelo STF, por este aí está sendo traamado o impeachmant jurídico do Presidente (com um fundamento montado, fajuto, forjado ou algum outro qualquer ainda mais banal), conjugado com a cassassão dos seus direitos políticos para não concorrer em 2022. Cassassão esta que se recusaram a fazer com a Dilma, o que era obrigatório. Mas no caso de Bolsonaro, obrigatório é cassá-lo.

  9. Érico Borowsky
    Érico Borowsky

    Grande Guzzo !

  10. Mauro Costa Faria
    Mauro Costa Faria

    Precisamos começar uma campanha pras eleições de 2.022: “Eleitor, por favor não vote em nenhum político com qualquer sinal de já ter participado de atos de corrupção”.

  11. Marcio Bambirra Santos
    Marcio Bambirra Santos

    Cada um no seu quadrado! Ótimo artigo, onde você deu uma enquadrada nesses homens do botão amarelo.

  12. José Antonio Braz Sola
    José Antonio Braz Sola

    Perfeito como sempre, Mestre Guzzo !
    Os militares de hoje são meros funcionários públicos, que só pensam em seus soldos e em promoções para se aposentarem com mais benefícios.
    Até entendo, em parte, esse posicionamento, pois os militares foram chamados pela sociedade civil-inclusive a imprensa que hoje chama o movimento de 31 de março de golpe- a tomar o poder , em 1964, antes que os comunistas o fizessem, e depois tiveram de segurar um rojão que estourou em suas mãos, pesando-lhes nos ombros , até hoje, a responsabilidade por terem afundado o país, acrescendo-se, ainda, a culpa pelas mortes e torturas dos presos políticos, tendo ainda de enfrentar a Comissão da Meia Verdade. Por isso que eles não estão nem aí com a hora do Brasil e, portanto, não podemos contar com eles para nada, absolutamente nada.

  13. Claudia Aguiar de Siqueira
    Claudia Aguiar de Siqueira

    A realidade às vezes é muito chata. Melhor fantasiar. Perfeito, mestre!

  14. FABIO LUIZ GUIMARAES
    FABIO LUIZ GUIMARAES

    Fim da reeleição para o mesmo cargo seria um grande avanço para o Brasil !

  15. Antonio Daniel Cavalcante Guimarães
    Antonio Daniel Cavalcante Guimarães

    Uma análise realista, de um grande jornalista.

  16. Luiz Antônio Alves
    Luiz Antônio Alves

    A minha teoria conspiratória é de que o Peçuelo (desculpe a brincadeira) saiu porque os militares e ele próprio percebeu que o STF estava prontinho para processar um general da ativa e até prendê-lo… Hoje o Lewandoviski deve estar triste e nem dá bola para a falta de oxigênio em hospitais de várias cidades brasileiras e não só em Manaus… Aliás, ele e toda sua companheirada querem que o povo pense que comprar vacinas, respiradores insumos e outros equipamentos raros da área da saúde pode sre feito num camelódromo ou que basta um Aécio da Vida telefonar para o Presidente da Índia ou os donos de laboratórios nos EUA e Reino Unido e pedir urgência e mais rapidez na entrega. (Alô, amigo, poderia enviar 100 milhões de doses aqui para o Brasil até o dia 1º de maio? Depois vamos tomar um vinho especial…)

  17. Natan Carvalho Monteiro Nunes
    Natan Carvalho Monteiro Nunes

    “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.”, já dizia Winston Churchill. Não há o que se falar em golpe hoje no Brasil. Isso é fantasia, sonho molhado de jornalista militante. É surreal pensar que o presidente se daria um autogolpe. JB foi eleito pelas urnas, quase 58 milhões de brasileiros o deram o poder de presidente da República. Quem quer golpe militar mesmo é a Folha de SP, que endossa artigo de colunista que sugere um golpe contra o PR. Excelente artigo, Guzzo!

  18. Edmar Sarah de Oliveira
    Edmar Sarah de Oliveira

    O eleitor tem é que votar direito , são 4 anos para pensar e estudar as correntes políticas.

    1. Andre mendonça
      Andre mendonça

      Votar direito é meio complicado neste país. Você vai ter que escolher dentro de uma lista imposta pelos caciques do sistema, que ainda determinarão quanto dinheiro (tirado do seu bolso) o candidato poderá gastar em sua campanha. No fim você tenta escolher o menos pior, para logo em seguida perceber que “tudo vai mudar para que fique tudo como está “.

      1. ALBERTO LAUREANO DE OLIVEIRA
        ALBERTO LAUREANO DE OLIVEIRA

        Exatamente assim! Sempre escolhendo o menos pior!

    2. Anita Perez
      Anita Perez

      Perfeito.
      Espero que desta vez tenham consciência que Deputados e Senadores são tão importantes quanto governadores e Presidente da República.
      O Presidente da República não está conseguindo governar, terá uma grande dificuldade de realizar as reformas necessárias ao país, tendo em v

  19. Teresa Guzzo
    Teresa Guzzo

    Perfeito GUZZO.

  20. Agnelo A. Borghi
    Agnelo A. Borghi

    Tá bom que não tem generalzinho acenando pro dragão vermelho… conta outra, Guzzo.

  21. VANDERLEI MOROZINI JUNIOR
    VANDERLEI MOROZINI JUNIOR

    Há cada 4 anos podemos fazer nossa “revolução” silenciosa na cabine de votação, é só tomarmos conciência da importância dos escolhidos.
    Podemos mudar tudo e todos silenciosamente, fora isso é fetiche!

    1. Alberto Garcia
      Alberto Garcia

      Fetiche é acreditar nas urnas eletronicas!

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