“No ano de 1878 eu me formei em medicina na Universidade de Londres e segui para Netley para completar o curso destinado a cirurgiões no Exército. Fui agregado aos Fuzileiros de Northumberland como cirurgião-assistente. O regimento estava na Índia nesse tempo e, antes que eu pudesse me juntar a ele, estourou a segunda guerra do Afeganistão.”
Este é o primeiro parágrafo do primeiro livro estrelado por Sherlock Holmes (Um Estudo em Escarlate), escrito por Arthur Conan Doyle. O narrador, John Watson, conta como levou uma bala no ombro na trágica batalha de Maiwand, em 1880. Watson nunca mais se recuperou totalmente. Nem o Afeganistão. Tanto que, quando a BBC em 2010 produziu uma série (com Benedict Cumberbatch e Martin Freeman) tornando contemporâneos os personagens de Doyle, esse detalhe não precisou ser mudado. Cento e trinta anos depois, os britânicos estavam envolvidos em outra guerra no Afeganistão. A mais recente já dura duas décadas.
Um dos primeiros atos de política internacional do presidente Joe Biden foi avisar que ia se retirar do país no vigésimo aniversário do atentado de 11 de setembro. Não chegou a ser uma surpresa. O ex-presidente Donald Trump, numa política errática para a região, já estava caminhando para a saída. A data escolhida por Biden para a retirada foi considerada por muitos como um equívoco de relações públicas. Sugere que, vinte anos, centenas de bilhões de dólares e 2.488 norte-americanos mortos depois dos atentados de 11 de setembro, o Afeganistão pode voltar a ser um santuário para grupos terroristas.
A próxima retirada dos Estados Unidos e seus aliados é apenas o mais novo capítulo de uma velhíssima história. “O Afeganistão tem sido um troféu perseguido por construtores de impérios, e por milênios exércitos tentaram subjugar o país deixando traços de seus esforços em grandes monumentos, que agora viraram ruínas”, resumiu a Enciclopédia Britânica. “A paisagem proibida de desertos e montanhas acabou com muitas ambições imperiais, assim como a resistência incansável de seus povos ferozmente independentes — tão independentes que o país falhou em se fundir numa nação, mas continua como uma colcha de retalhos de facções étnicas rivais e alianças que sempre mudam de lealdade.” Um povo com duas línguas oficiais, cinco línguas regionais e inúmeras minoritárias não pode se entender muito bem.
Ou seja: o Afeganistão sempre foi complicado. No fim do século 19 era disputado entre o Império Britânico e a Rússia czarista. Nenhum dos dois ganhou. Um século depois, as brigas tribais viraram guerra civil. Forças comunistas tomaram o poder em 1978 num país profundamente muçulmano. Foi, como se poderia imaginar, um regime fracassado desde o primeiro dia.
No ano seguinte, a URSS resolveu ajudar seus aliados afegãos invadindo o país. Com equipamento pesado e 100 mil soldados, os soviéticos enfrentaram por dez anos os fanáticos mujahidin, que combatiam montados a cavalo, armados com rifles ultrapassados. A violência da guerra fez com que 2,8 milhões de afegãos fugissem para o Paquistão e outro 1,5 milhão para o Irã.
Com a invasão soviética, o Afeganistão virou palco para a guerra fria entre a URSS e os Estados Unidos, que forneciam equipamento militar para os mujahidin. Por uma dessas grandes ironias da História, radicais islâmicos foram saudados no Ocidente como heróis antissoviéticos. Grandes personagens da cultura pop, como James Bond e Rambo, estrelaram filmes lutando lado a lado com os mujahidin contra os russos.
Depois de perder 15 mil soldados, a todo-poderosa URSS saiu de fininho do Afeganistão em 1989. A desmoralização provocada pela guerra perdida ajudou a acabar de vez com o regime soviético dois anos depois. Assim que os russos partiram, os mujahidin voltaram à rotina de brigar entre si. Quatro anos de caos mais tarde, um grupo conhecido como Talibã estabeleceu, em 1996, o “emirado” teocrático que horrorizou as partes mais civilizadas do planeta.
Talibã quer dizer “estudante”, na língua pachto. Sua base são os alunos dos madraçais, os centros de doutrinação islâmica. Nos madraçais aprende-se que o mundo deve ser inteiramente dominado por muçulmanos e voltar para o século 7. Segundo o Talibã, mulheres devem ficar em casa obedecendo ao marido, ladrões precisam ter as mãos amputadas e adúlteras são mortas em apedrejamentos coletivos. No regime talibã, a música e qualquer forma de manifestação de alegria foram proibidas.
O Talibã não se contentou em infernizar a vida dos afegãos. Abriu as portas do país para radicais islâmicos, entre eles Osama bin Laden e sua Al-Qaeda. Em setembro de 2001, as torres do World Trade Center foram derrubadas, quase 3 mil pessoas morreram, e todas as pistas dos criminosos levaram ao Afeganistão. O então presidente George W. Bush exigiu que o Talibã entregasse Bin Laden e seu bando. Não foi atendido. Os EUA e seus aliados invadiram então o país, e em dois meses a tirania do Talibã foi derrubada.
Surgiu o sonho de um Afeganistão democrático, tolerante, próspero, livre, com meninas nas escolas e música nas ruas. E muita coisa realmente mudou. Quarenta por cento dos estudantes agora são mulheres. Elas quebraram tabus, tornando-se militares, professoras universitárias, administradoras, competindo em jogos olímpicos e torneios de robótica e entrando no circuito internacional de música pop. Um salto gigante para mulheres que eram chicoteadas na rua pelos talibãs somente por deixarem o rosto descoberto.
As mudanças não ocorreram só com as mulheres. Um Afeganistão moderno, “normal” aos olhos do mundo, pode ser visto no canal de notícias ATN News:
Clipes da alegre música pop afegã podem (ainda) ser vistos e ouvidos na Pamir TV:
pamirtv.com/live/pamirradio.html
Mas a nova democracia não logrou superar totalmente as rivalidades tribais. Os afegãos não conseguem desenvolver um país organizado e sob controle de uma Constituição. Sem uma economia minimamente sólida, o país se tornou o produtor clandestino de 90% da heroína ilegal produzida no mundo. Calcula-se que a produção de ópio empregava 400 mil afegãos em 2017, mais que as Forças Armadas.
Durante esses 20 anos, os talibãs jamais deixaram de praticar sua carnificina. Sempre que tiveram oportunidade, espalharam o caos instalando bombas em carros de juízas e usando crianças-bomba para aleijar soldados. Seus alvos são qualquer pessoa que possa representar um passo para a civilização — professores, juízes, policiais, jornalistas, observadores internacionais, aplicadores de vacinas, escritores, artistas etc.
Esta é a mais longa guerra jamais enfrentada pelos EUA. Segundo o Wall Street Journal, mais de 2 milhões de soldados norte-americanos já passaram pelos campos de combate do Afeganistão. Os recrutas mais jovens nem tinham nascido quando a guerra começou. Existe um consenso de que conflitos em países caóticos não podem ser totalmente vencidos. Os Estados Unidos invadiram o Iraque em 2003 para derrubar o ditador Saddam Hussein e saíram de lá apenas em 2011. Parte do país foi tomada pelo Isis e os norte-americanos tiveram de retornar.
E não tem sentido para os EUA fazer permanentemente o papel de “policiais do mundo”. Um grupo de fanáticos como o Talibã sabe disso e tem o tempo a seu favor. Vinte anos não é nada para quem vive permanentemente na Idade Média. Eles só aprenderam a ser mais malandros. Declararam que tinham um “desejo de pacificação”. O governo do presidente Ashraf Ghani soltou então 5 mil militantes da organização como um gesto de boa vontade. Segundo a inteligência dos Estados Unidos, cerca de 80% desses prisioneiros libertados já voltaram a praticar banhos de sangue.
Militares norte-americanos e aliados temem que se repita no próximo 11 de setembro uma saída vergonhosa e atabalhoada como aconteceu no Vietnã em 1973, com os extremistas criando imagens que mostrem que eles ganharam a guerra. Tudo é narrativa, e eles não vão estar longe da verdade.
Permitir opiniões conflitantes é coisa para os fracos infiéis
Mas as coisas podem ficar ainda piores. Segundo levantamento do Pentágono, a Al-Qaeda (agora chefiada pelo “vice” de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri), hoje sediada em regiões inóspitas do Paquistão, tem ótimas relações com o Talibã, a quem proporciona assessoria e dinheiro. E mais: representantes do Estado Islâmico também já se instalaram no Afeganistão, ainda em pequena escala.
Por enquanto, essas organizações não estão falando em retomar o circuito de terrorismo internacional. Mas é só saber somar um mais um para concluir que isso é apenas questão de tempo. Depois da retirada, os norte-americanos não terão a mesma capacidade de coletar informações sobre os terroristas.
O próprio Talibã reconhece que a presença norte-americana com suas forças especiais, drones e ataques aéreos fizeram um tremendo estrago na organização durante a intervenção. Agora que os ocidentais estão de partida, os “estudantes” possuem mais do que os 80 mil combatentes que tinham em 2018. E roubaram o armamento mais moderno fornecido pelos norte-americanos às forças oficiais afegãs, incluindo equipamentos de visão noturna em seus novos rifles, segundo matéria da revista Foreign Affairs.
Espalhando o terror em larga escala, grupos extremistas conseguem que a população aceite a ideia de que viver sob o chicote dos radicais é melhor do que a instabilidade de poder morrer a qualquer momento no meio do caos. “Esta luta não é para dividir o poder”, declarou um comandante talibã ao jornal Washington Post. “Esta guerra tem propósitos religiosos, com o objetivo de estabelecer um governo islâmico e implementar as leis islâmicas.” Permitir opiniões conflitantes é coisa para os fracos infiéis.
Segundo o especialista em Afeganistão Carter Malkasian em artigo para a revista Foreign Affairs, assim que o governo Biden terminar a retirada, em setembro, “o Talibã vai provavelmente capturar a maior parte do sul e do leste do país em questão de meses. Depois disso, o governo pode entrar em colapso. É possível que o governo, suas forças especiais e a velha Aliança do Norte possam no máximo evitar a queda da capital, Cabul”. A tendência mais provável é que o Afeganistão viva no mesmo caos armado em que já se transformaram a Síria e a Líbia. O assassinato diário e gratuito de afegãos tornou-se um ruído distante que o resto do mundo se cansou de ouvir.
Faltam cinco meses para a retirada, e a população já está com muito medo. Medo de ir trabalhar, medo de pegar um carro, medo de andar a pé, medo de ir a um casamento, medo de ficar em casa. Os executores usam tênis Cheetah brancos de cano alto fabricados no Paquistão. Só por passear de Cheetah pelas ruas, um homem provoca medo generalizado numa população que tem como principal projeto de vida fugir do país. E não é só a morte que os cidadãos temem. O Talibã e outros grupos criaram uma série de “cadeias” clandestinas para prender aqueles de quem não gostam, deixando que as vítimas morram aos poucos para servir de exemplo.
O plano quebra-galho dos EUA é convencer os governos de países vizinhos a aceitar a presença de pessoal norte-americano para operações especiais, como o uso de drones. Mesmo assim, há dúvida se os governos do Uzbequistão e Quirguistão vão aceitar a proposta. E mais dificuldades ainda deverão ser levantadas pelo sempre hostil e oportunista Paquistão. Os paquistaneses não se esqueceram de que os Estados Unidos entraram no país sem autorização (no governo Barack Obama) para executar Osama bin Laden.
E se o Talibã tomar o controle total do país? A lógica indica que o Afeganistão novamente se transformaria num centro exportador de terrorismo islâmico internacional. O que levará a outras grandes ações de violência como as de 11 de setembro. O que forçaria a nova intervenção internacional no país. O ciclo não tem fim. Elementar, meu caro Watson.
Ótimo artigo.
E saber que nosso maior ladrão, aqui, só não tem um mindinho. Que sorte nascer nessas latitudes, não ?
É patética e ilusória a retirada americana do Afeganistão. Terão d retornar em condições piores e mais brutais
Elementar.
Muito boa análise.