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Ilustração: Naomi Akimoto Iria
Edição 72

A imprensa a favor da censura

Renan Calheiros é hoje uma espécie de editor-chefe do noticiário político; o que a mídia publica é o que ele quer ver publicado

J. R. Guzzo
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O presidente Jair Bolsonaro, entre outros altos crimes e coisas do mal, praticou — imaginem só uma coisa dessas — “464” atos de agressão explícita à imprensa, aos jornalistas e à liberdade de expressão no Brasil desde que assumiu o governo. Isso mesmo: 464, nem um a menos. É o que foi publicado na mídia, com todos os adereços de coisa séria, científica e indiscutível. (O número de infrações vem de uma ONG que diz verificar como está, presume-se que em tempo real, a situação das liberdades através do mundo. No Brasil, particularmente, ela se declarou a favor do incêndio na estátua do Borba Gato, em São Paulo, e estima que a vereadora Marielle é a semente da “transformação política” do país. Esses detalhes não foram publicados pela mídia; só se divulgaram os “464 atentados” do presidente contra o direito à livre expressão.)

É curioso: por que ninguém havia notado até então, a começar pela própria mídia, uma perseguição desse tamanho? Tudo bem que o presidente, como se ouve todos os dias na oposição de esquerda, social-democrata e liberal-centrista-equilibrada, é genocida, totalitário e está agindo para dar um golpe de Estado; fala-se tanto nisso e em outras coisas do mesmo gênero que ninguém discute mais o assunto. Mas “464 ataques” contra a imprensa? Quais seriam? Só agora foram fazer a conta? Não vale dizer que Bolsonaro fala mal da mídia e dos comunicadores todas as vezes que tem uma oportunidade, e mesmo quando não tem — os comunicadores e a mídia fazem a mesma coisa, ou muito pior, em relação a ele. Isso aí não é atentado nenhum aos jornalistas ou à liberdade de imprensa — é apenas uma questão de opinião, de parte a parte, e está amplamente dentro dos limites do direito de expressão.

Esta é a única participação do “público” na história toda: pagar

Vale menos ainda ficar chorando, dia sim dia não, sobre o corte das verbas publicitárias que o governo federal costuma pagar aos órgãos de imprensa, com a desculpa mútua de que “estão sendo prestadas contas” ao público — ele, governo federal, mais os governos estaduais e municipais, em que a farra continua a toda. Esta é uma das mentiras mais lamentáveis na história dos órgãos de comunicação deste país. Ninguém, aí, jamais pensou em prestar conta nenhuma; é pura operação comercial na qual os governos transferem dinheiro do bolso público para o bolso particular dos donos dos veículos de imprensa, com o objetivo exclusivo de comprar a sua simpatia ou, pelo menos, a sua neutralidade. Esta é a única participação do “público” na história toda: pagar. Bolsonaro, na verdade, só deveria ser elogiado por reduzir essas verbas. É um escândalo, que a imprensa esconde cuidadosamente — promovendo a ficção segundo a qual dinheiro do governo garante a “liberdade de expressão” e que, assim sendo, não há nada de errado em doar recursos do Erário para jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão. (Mais o reforço, hoje, da “mídia social”.) Alguém já ouviu falar em verbas publicitárias oficiais em algum meio de comunicação da Inglaterra, por exemplo? Ou dos Estados Unidos? É claro que não.

O fato, que todos fingem não existir, é que a perseguição à mídia e à liberdade de expressão está vindo diretamente do Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, e agora do Congresso Nacional. Do Judiciário nem adianta falar mais nada: os ministros rasgam diariamente a Constituição com o seu inquérito ilegal contra as fake news, a manutenção de um jornalista em prisão domiciliar e a censura, já ocorrida objetivamente, contra um órgão de imprensa — a revista Crusoé. O agressor ao direito de expressão, aí, não é o governo federal. O presidente não mandou prender jornalista nenhum, nem pediu que um veículo fosse censurado, nem processa alguém pela divulgação de notícias falsas contra si próprio. Não telefona aos donos dos jornais para pedir a cabeça de jornalistas de quem não gosta, como é tradição entre os peixes graúdos do PSDB e outros santos da democracia. Quem faz essas coisas é o STF — e, agora, o Senado Federal, dentro da “CPI da Covid”, que se transformou neste ente degenerado que está aí, funcionando diariamente como o polo número 1 de “resistência” ao governo.

É como se Bolsonaro pedisse a quebra do sigilo bancário da Rede Globo

Imagine-se, se for possível, o presidente Bolsonaro fazendo o que acaba de fazer o gestor-chefe da CPI, Renan Calheiros — um dos políticos brasileiros em maiores dificuldades junto ao Código Penal, com os nove processos que carrega nas costas, e hoje transformado no grande estadista da esquerda e da imprensa brasileira, ali junto com Lula, em pessoa, por conta da guerra que move contra o presidente da República. Renan, muito simplesmente, pediu que seja quebrado o sigilo bancário da rádio Jovem Pan — que o desagrada intensamente com as suas notícias e comentários sobre a CPI. É como se Bolsonaro pedisse a quebra do sigilo bancário da Rede Globo, por exemplo. Que tal? Não seria, aí, apenas o 465º ataque do presidente à imprensa; seria o fim da civilização, no Brasil, no mundo e no sistema solar.

A CPI de Renan e seus associados, como relatado em outra reportagem desta edição, virou um monstro. Começou como um projeto mal-intencionado, com o objetivo de atacar o governo, dar cartaz aos seus controladores e ocultar a verdadeira corrupção no trato da epidemia. Depois, só foi aumentando o número de más intenções; a esta altura, como se vê, está operando a toda no ataque à parte da mídia que não obedece à CPI, e nem se deixa comandar pelo senador Calheiros. Isso, sim, é uma tentativa indiscutível de censura — um ato de intimidação grosseiro, claramente destinado a calar os jornalistas que não aceitaram submeter seu trabalho aos desejos dos militantes da CPI. Renan, hoje, é uma espécie de editor-chefe do noticiário político brasileiro; o que a imprensa publica é o que ele quer ver publicado, na hora que quer e do jeito que quer. É natural, assim, que esteja empenhado em silenciar as ilhas de independência existentes na mídia — sobretudo quando sabe muito bem que os veículos de comunicação estão a favor dele, e não de quem ele agride.

A conspiração para calar a Jovem Pan é apenas o movimento mais recente de um jogo que já dura dois anos e meio. O fato, no fim das contas, é que o governo Jair Bolsonaro está sendo desmanchado pelo STF, pela esquerda parlamentar, por políticos que só têm compromissos com si próprios e por uma imprensa que vê na destruição do presidente da República o principal objetivo da sua ação, da sua ética profissional e da sua existência. O fato é que todos eles jamais aceitaram o resultado das eleições de 2018. Começaram com a tentativa de impedir a própria posse do eleito, com o pretexto de que teria feito mau uso das redes sociais durante a campanha. Daí para diante, e até hoje, têm feito tudo para impedir que o governo funcionasse. O impeachment tornou-se um tema permanente. As pesquisas garantem todos os dias que Bolsonaro está morto. Agora, procura-se demonstrar que o presidente está querendo criar uma ditadura e, portanto, não pode continuar na Presidência. A tudo isso, o governo responde mexendo com deputados daqui para ali, com a ressurreição do Ministério do Trabalho e com a fé — no desempenho da economia daqui até as eleições de 2022, e no apoio de um Brasil que não aparece nos manifestos do ministro Barroso, nem na mídia, nem na lista de desejos do senador Renan. A questão é de que lado está a maioria.

Leia também “A CPI virou um monstro”

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