Pular para o conteúdo
publicidade
Edição 08

O festival de privilégios e a mente servil

Uma parcela numerosa da sociedade alimenta a ilusão segundo a qual a máquina estatal entregará aquilo que ela ou o povo deseja

Bruno Garschagen
-

Toda vez que privilégios de parte dos servidores públicos são expostos, a estupefação da sociedade logo dá lugar à indignação. Legítima indignação, diga-se. O grande equívoco é o debate ser reduzido aos privilégios de uma parcela dos funcionários do Estado. Porque o próprio Estado é, por meio dos representantes eleitos pelo povo, o primeiro a ser privilegiado de uma lista que aumenta de tempos em tempos.

Como corolário desse mecanismo de concessão de privilégios, políticos (que decidem) e servidores (que para eles trabalham) são o segundo grupo a ser beneficiado. Ser funcionário estatal facilita a pressão sobre os políticos e a construção de uma relação que beneficia mutuamente as partes envolvidas e cuja conta será paga pelos indivíduos que trabalham na iniciativa privada.

[ccj id=”oeste-blocker-2″]

É a partir dessa hierarquia engenhosa erigida por políticos e servidores que são priorizados os demais beneficiários que estão fora do Estado, desde aqueles próximos ao poder aos que compram quem tem poder, para só depois serem atendidas faixas da população em razão de suas singularidades (pobreza, cor da pele, sexo etc., etc., etc.). Assim, aprofunda-se o problema fundamental: uma administração pública, sobretudo a federal, que tem por finalidade prática objetiva sua própria manutenção e não servir à sociedade que a sustenta.

As justificativas de que é preciso mais dinheiro é mero artifício para os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário continuarem gastando mal e de forma ineficaz.

E eles gastam uma soma extraordinária de riqueza que é legalmente espoliada de quem a produz. Uma parcela numerosa da sociedade ainda cai na armadilha de pedir que as instituições façam mais, alimentando a doce ilusão segundo a qual a máquina estatal entregará aquilo que ela ou o povo deseja.

O resultado desse autoengano é um só: aumento do Estado e aumento da tributação usando como desculpa a “vontade popular”. Por essa razão, a frase de Jean-Baptiste Colbert no século 17 continua atualíssima: tributação é a arte de “depenar o ganso de modo a obter o máximo possível de penas com o mínimo possível de grasnido”.

Como reação inócua e burra ao custo e à incompetência do Estado, muitos têm gravado no espírito o mantra “eu tenho e quero meus direitos”.

Quando tais “direitos” não são respeitados, buscam privilégios. Muitas vezes, aquilo que é invocado como direito não passa, aliás, de privilégio. Faz parte dessa artimanha que resulta em aumento do Estado e das benesses para os eleitos de ocasião a confusão entre direitos e privilégios. Mas o que são, afinal, direitos e privilégios?

Como explico em meu livro Direitos Máximos, Deveres Mínimos — O Festival de Privilégios Que Assola o Brasil (Editora Record, 2018), direito é aquilo que vale para todos, sem nenhuma distinção; privilégio é aquilo que vale para parcela ou parcelas da sociedade em razão de alguma especificidade.

O economista norte-americano Lawrence W. Reed propõe um teste eficaz: aquilo que é apontado como um direito pode ser usufruído por todo mundo “ao mesmo tempo e da mesma maneira”? Se a resposta for positiva, estamos diante de um direito; se negativa, diante de um privilégio. Caso um indivíduo afirme que tem determinado direito, não poderá negá-lo a qualquer outra pessoa, pois, sendo um direito, pertencerá a ele e a qualquer outro indivíduo.

Tanto o direito quanto o privilégio são termos neutros. Por isso mesmo, um privilégio pode ser justificável ou injustificável.

Bolsa Família, por exemplo, cujo objetivo é ajudar famílias pobres, é um privilégio justificável; subsídio a segmento econômico é um privilégio injustificável. Faça esse teste com os exemplos que lhe vêm à cabeça e verá que muito daquilo que você julgava ser um direito é, na verdade, um privilégio.

Essa perspectiva permite compreender o problema de forma mais abrangente e atacá-lo de maneira mais competente. Porque, se só se reconhece como privilégio aquilo que beneficia políticos e servidores, estaremos NEGLIGENCIANDO os privilégios mínimos e máximos que já existem para beneficiar as pessoas físicas, de agraciados com a meia-entrada a alunos de universidades estatais, de trabalhadores formais a grandes empresários, da Ordem dos Advogados do Brasil a criminosos. Todos exemplos de privilégios injustificáveis cujos detalhes explico em meu livro.

Leia mais sobre o tema na reportagem “Servidores, a casta privilegiada não atingida pela crise”

Não há dúvida de que os privilégios injustificáveis desfrutados por uma elite do funcionalismo estatal é a parte mais visível, mais onerosa e mais execrável do festival de privilégios que assola o Brasil. Mas não é a única e se sustenta numa visão ainda mais profunda e nefasta segundo a qual o Estado deve ser o grande protagonista da vida social, política e econômica, segundo explico em meu livro Pare de Acreditar no Governo – Por Que os Brasileiros não Confiam nos Políticos e Amam o Estado (Editora Record, 2015). Segundo essa perspectiva, não é o indivíduo que luta para obter o que quer que seja, desde sua liberdade individual até sua liberdade econômica; qualquer coisa, inclusive as liberdades, são concessões estatais e não conquistas individuais.

A delegação de responsabilidades para que o Estado resolva problemas sociais e morais, como explicou o filósofo Kenneth Minogue em seu livro A Mente Servil Como a Democracia Solapa a Vida Moral (É Realizações, 2019), corrói a moral individual e inviabiliza a prática da liberdade. Como agravante, existe o fato de que, mesmo quando se defende um direito (aquilo que vale para todos), inexiste qualquer preocupação em vinculá-lo a um dever, a uma obrigação (algo que se discute desde a Grécia Antiga).

Como superar esse drama individual que se manifesta amplamente na vida social e política e do qual os privilégios são seu corolário? O primeiro passo é assumir a responsabilidade que nos cabe e parar de terceirizá-la para político, para instituições políticas, para terceiros. Sem isso, continuaremos a ser servos voluntários de um sistema que beneficia verdadeiramente quem nele manda, quem nele trabalha, quem ele corrompe, quem ele privilegia.

———————————————————

Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).

15 comentários
  1. Alberto Garcia Filho
    Alberto Garcia Filho

    Impossível fazer uma reforma política quando temos em Brasília um ninho de ratos chamado “congresso”.
    Alguém acha que as ratazanas que lá estão irão querer abrir mão dos imensos privilégios que recebem? Não vai acontecer, a não ser que se adote uma operação Cingapura. Melhor não me extender sobre isso para não ferir susceptibildades. Afinal é apenas mais uma opinião dentre milhares. Porém o resultado já pode ser amplamente previsto. Eeeeee eh oooo, vida de gado! Povo marcado, povo INFELIZ!

  2. Alba Feitosa Beltrão
    Alba Feitosa Beltrão

    Exatamente! Parabéns pelo artigo!!! ??????

  3. Fabio R
    Fabio R

    Excelente texto. A pergunta que sempre fica: “quando iremos mudar tudo isso?”
    Não acredito que a nossa geração consiga, talvez a dos meus filhos, ou seja, em 25 anos…

  4. Eric Kuhne
    Eric Kuhne

    Extrapolando pros direitos civis: Direito é ter um advogado pra te defender se você for preso. Privilégio é ter 3 advogados de prontidão quando você é preso esfaqueando um político

  5. Thales
    Thales

    Parecia que eu estava lendo o seu livro, que afinal, estou lendo um capitulo por dia – chega a ser revoltante ler mais que isso para o seu próprio bem estar. Brasil é o único país do mundo em que pessoas que nada produzem recebem n privilégios , e já as pessoas que entregam mais que o solicitado mal conseguem viver com o que tem; é uma inversão de valores surreal.
    Até quanto veremos episódios desse naipe?

  6. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Em nossa vida pessoal, o tempo todo temos algum tipo de privilégio e nem percebemos. Não percebemos porque não entendemos. A todo momento você encontra alguém se queixando: “Ah! Se eu pudesse voltar àquele tempo, como seria bom!”. E o que deveria ser isso, senão um privilégio? Vivemos cercados de privilégios por todos os lados, mas nem percebemos. A coisa se complica realmente quando falamos de direitos. Direito leva a um ente chamado Estado e, por tabela, ao conceito de igualdade, o conceito mais burro que existe na humanidade. Não deve ser à toa que o Criador do Universo foi capaz de colocar bilhões de fisionomias humanas dentro de uma plataforma de talvez uns 40 cm de diâmetro, o rosto humano, justamente porque não havia como sermos todos iguais, ou a vida na terra seria algo impraticável. Sempre fui fã de um provérbio iídiche que dizia assim: “Deus ri, enquanto o homem pensa’.

  7. miguel Gym
    miguel Gym

    Excelente texto Bruno.Estou relendo “Pare de acreditar no governo” e comprarei os “Direitos máximos-deveres mínimos.”A verdade é que com a derruba do PT e esquerdistas do governo,estamos vivendo uma nova época em que ainda precisamos de ensinamentos liberais e conservadores.Só com a revista OESTE já vejo no meu grupo um interesse muito maior pela política.Como Bolsonaro foi um fenômeno eleitoral que levou muitos aventureiros de carona e nos decepcionaram,agora é geral o pensamento de aprimorar já nessa eleição as escolhas. É impressionante a quantidade de pessoas com idéias liberais e a liderança de Bolsonaro,bem como a repulsa entre os jovens, dos esquerdistas.PT,PSDB,MDB,DEM,MVR,MBL nunca mais.

  8. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    Ótimo texto, mas como fazer uma reforma política se os legisladores são os maiores beneficiários das leis vigentes?

  9. ELTON LUIZ DA SILVA
    ELTON LUIZ DA SILVA

    Além de reformas política e administrativa temos que tomar vergonha na cara!!

  10. Larissa Gabriela Oliveira Pires
    Larissa Gabriela Oliveira Pires

    Bom dia Bruno.
    Que demonstração clara da contextualização de Direitos e Privilégios. Seus livros estão na minha lista.
    Abraço!

  11. Altair José Alves De Souza
    Altair José Alves De Souza

    Beleza de artigo! Nunca tinha me detido a pensar na diferença entre direito e privilégio, quando procurava reivindicar algo. E faz diferença! Esclarecedor! Muito obrigado.

  12. ALAN KARDEC BRASIL DA
    ALAN KARDEC BRASIL DA

    É exatamente isso. Penso numa Reforma Política como mãe de todas as mudanças que precisamos urgentemente. A primeira mudança deve ter o voto distrital puro com recall como partida. Sem ele somos completamente inertes, não por nossa culpa , mas desse sistema eleitoral injusto, ineficiente e antidemocrático que hoje temos.

    1. Roberto Gomes
      Roberto Gomes

      Excelente, Bruno. Parabéns. Direitos e privilégios. Bolsa família e subsídios. Bons subsídios para pensar sobre fatos cotidianos sob novos vértices. Abraço

    2. Gustavo H R Costa
      Gustavo H R Costa

      Ótimo Bruno continuemos nossa Cruzada! Quem sabe um dia o ensinamento se consolida!

Anterior:
Valentina Caran: ‘Além de ser honesto, o corretor precisa ser esperto’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 209
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.