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Supremo Tribunal Federal | Foto: Agência Brasil/EBC
Edição 84

A polícia das ideias

De todas as palavras disponíveis no mercado, nenhuma foi expropriada de forma tão radical para uso político quanto a soma do substantivo “notícia” com o adjetivo “falsa”

J. R. Guzzo
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As tiranias, em todas as épocas, sempre capricham na tarefa de criar o seu próprio dicionário. Montam uma coleção de palavras e de combinações de palavras que têm de significar, obrigatoriamente, só aquilo que interessa aos donos do poder; é como se tivessem tirado uma patente, com direitos autorais, sobre porções específicas da linguagem. A partir daí, as palavras selecionadas não podem ser utilizadas por quem está fora do grupo — adquirem, ao mesmo tempo, o significado político estabelecido por seus proprietários e não podem mais voltar ao seu sentido natural.

De todas as palavras disponíveis hoje no mercado, possivelmente nenhuma foi expropriada de forma tão radical para uso político quanto a soma do substantivo “notícia” com o adjetivo “falsa”. É obrigatório falar isso em inglês, naturalmente — fake news. Ao que parece, só em inglês elas têm significado legal; o Supremo Tribunal Federal, onde o uso do português, teoricamente, deveria ser obrigatório (trata-se do idioma oficial do Brasil, segundo a Constituição), só fala na forma inglesa. Tem, até mesmo, um monumental inquérito sobre fake news, que mete gente na cadeia e paira como uma grave ameaça, 24 horas por dia, sobre a cabeça do presidente da República. O mundo político, de um extremo a outro, fala em fake news como se estivesse operando em Washington. A mídia, então, não pensa em outra coisa. Em suma: virou ideia fixa, e tem tudo para substituir, a partir de agora, a obsessão com a CPI da Covid.

A pretexto de salvar a humanidade dos perigos da má informação, o que eles fazem é censurar o pensamento livre

Normalmente seria apenas mais uma bobagem, entre tantas outras que são produzidas, em compasso de linha de montagem, pelo STF, pelos políticos e pela imprensa deste país. Mas não é assim. Fake news, acima de qualquer outra coisa, é hoje uma arma contra a liberdade; na verdade, a sua manipulação permanente, articulada e agressiva é possivelmente o principal recurso usado no momento pelos inimigos do direito de expressão para impor a sua visão de mundo a todos os demais. A pretexto de defender a virtude e de salvar a humanidade dos perigos da má informação, o que eles fazem, na prática e todos os dias, é censurar o pensamento livre. Fake news, na vida real, não quer dizer notícia falsa. É, isso sim, tudo aquilo com o que a polícia das ideias, hoje presente em todos os aspectos da vida em sociedade, não concorda — ou não quer que seja publicado. O significado da expressão não é mais o original; foi sequestrado por facções políticas e ideológicas para reprimir qualquer ponto de vista que não seja o seu.

A presente campanha contra os “atos antidemocráticos”, comandada a partir de um inquérito grosseiramente ilegal do Supremo Tribunal Federal e apoiada com paixão pela mídia brasileira, se baseia exatamente nessa contrafação — os “antidemocratas”, segundo dizem ambos a cada cinco minutos, estariam se utilizando de “fake news” para atacar a democracia, as “instituições” e o Estado de direito. É mentira. A noção de “notícias falsas” é, simplesmente, o mais ativo instrumento de ação política que a esquerda totalitária e os seus auxiliares, voluntários ou inconscientes, estão usando para proibir a livre troca de ideias no Brasil atual.

Notícia falsa, no mundo das realidades, é noticiar uma queda de avião que não aconteceu, publicar que a eleição foi ganha pelo candidato que perdeu, ou dizer que o jogo de 2 a 0 acabou em 1 a 1. Mas não é disso que a esquerda ou o STF estão falando quando acusam alguém do delito de “fake news” — na verdade, os vigilantes da honestidade no noticiário e no debate político gritam que é falsa toda notícia que vai contra os seus interesses. É “falsa”, assim, qualquer informação, por mais bem fundamentada que seja, dando conta de uma redução das queimadas na Amazônia — e tudo o mais que não se encaixe direito naquilo que consideram verdade definitiva. Mais: denunciam como “fake news”, em seus tribunais, afirmações que são pura opinião, ou ponto de vista. O amaldiçoado tratamento da covid com cloroquina, por exemplo; qualquer afirmação positiva sobre o assunto, ou mesmo neutra, é tida como “fake news” em último estágio — o sujeito pode até acabar indiciado criminalmente numa CPI por causa disso.

Por que não deixar as pessoas livres para noticiar ou pensar o que lhes parece melhor?

Os apóstolos do combate às fake news, bem como todos os que se apresentam ao público no papel de fiscais da democracia, querem punir a posição divergente, isto sim — o resto é pura hipocrisia. Quem teria o direito de decidir o que é falso e o que é verdadeiro neste país e neste mundo? A imprensa e as suas patrulhas de busca e captura de fake news? A noção é simplesmente absurda. O único juiz para essas questões é o público: é ele, finalmente, que vai ou não vai acreditar no que sai publicado e, em cima disso, compensar ou punir, com a sua credibilidade ou seu descrédito, os que divulgam as notícias. Foi publicado com grande destaque, poucos dias antes da rodada decisiva das eleições presidenciais de 2018, que Jair Bolsonaro iria perder de “todos” os candidatos, quaisquer que fossem, no segundo turno da votação. É notícia falsa — ou, simplesmente, é pesquisa malfeita? Da mesma forma: por que é um ato “antidemocrático” o cidadão ser a favor do AI-5 e do regime militar? Por que ele não teria esse direito? E ser a favor do regime de Cuba — pode? A discussão, obviamente, não fecha. Por que, então, não deixar as pessoas em liberdade para noticiar ou pensar o que lhes parece melhor?

A observação mais repetida que se faz a respeito é dizer que o direito à livre expressão não pode ser “absoluto”, pois outros direitos dos cidadãos também têm de ser respeitados. E quem diz que a liberdade de expressão é absoluta no Brasil? É integralmente falso: a lei brasileira estabelece, da maneira mais clara possível, que todo indivíduo ou veículo de comunicação é 100% responsável pelo que publica, dos pontos de vista penal, cível ou econômico. Para começar, está aberto 24 horas por dia à autoridade pública ou a qualquer cidadão maior de 18 anos o direito de processar, criminalmente, ou na área cível, os autores de cada afirmação que for publicada na mídia ou nas redes sociais. Numa ação penal, podem ser processados, julgados e condenados pelos crimes de calúnia, injúria e difamação. Numa ação por danos morais, podem ser condenados (e são, frequentemente) a pagar multas em dinheiro e a se retratar do que disseram, no mesmo espaço e com a mesma intensidade utilizados nas suas afirmações originais.

A sociedade brasileira não tem de ser protegida de fake news, nem de “desinformação”, e nem de outros crimes que não existem na lei. Tem de ser protegida, isso sim, dos verdadeiros inimigos da liberdade.

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