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Ilustração: Shutterstock
Edição Eleições 2022

Bolsonaro e o bolsonarismo

O bolsonarismo sai dessas eleições até um pouco maior que o próprio Jair, consolidando-se como uma força política, com potencial de ser encarnada por novas figuras políticas

Flávio Gordon
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Em outubro de 2018, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial que consagrou Jair Bolsonaro como o 38º presidente do Brasil, fui convidado pela revista Época para escrever um artigo apresentando a perspectiva da direita sobre o pleito. Naquele momento, convém lembrar, a mera candidatura do ex-capitão do Exército já era denunciada como “ameaça à democracia” por toda a classe falante esquerdista, em narrativa fraudulenta que, como numa profecia autorrealizável, viria em seguida a se cristalizar em recorrentes episódios de perseguição político-judicial contra os assim estigmatizados como “bolsonaristas” e “antidemocráticos”. Foi assim que, sob o pretexto da defesa de uma democracia supostamente ameaçada por Bolsonaro e apoiadores, autoridades do Poder Judiciário, em aliança espúria com setores da extrema esquerda partidária e da velha imprensa, atribuíram a si poderes excepcionais, não previstos na Constituição, passando a violar sistematicamente o Estado de Direito e, consequentemente, a própria democracia.

Naquele artigo, intitulado “A vez da direita”, ilustrei o argumento sobre o apelo popular e a representatividade de Bolsonaro com uma anedota. Versava sobre uma procissão da Sexta-Feira da Paixão ocorrida em Copacabana, por mim testemunhada da portaria de um prédio na movimentada Rua Barata Ribeiro. Ali, então, o contraste entre o silêncio reverente dos procissantes — apenas interrompido pelo bater intermitente do bumbo — e o burburinho boêmio nos bares do entorno pareceu-me um bom símbolo para a distância entre a falastrona intelligentsia progressista encastelada nas universidades e nas redações, fechada com o candidato lulopetista, e a maioria silenciosa do povo brasileiro, a qual, conservadora e cristã, pela primeira vez em décadas se fazia representar pela singular e inédita candidatura de direita encarnada por Jair Bolsonaro.

Inédita porque, até então, o eleitorado conservador era forçado a optar pelo candidato um pouquinho menos à esquerda (ao menos em aparência) no nosso espectro político formado por 50 tons de vermelho. Naquele arranjo que o saudoso professor Olavo de Carvalho batizou pioneiramente como “teatro das tesouras”, restava ao eleitor de direita a inglória tarefa de votar em candidatos tucanos (social-democratas) contra os petistas (socialistas). E é sintomático que, quatro anos depois, o namorico então reservado às coxias tenha atravessado as cortinas e, revelando-se ao público em toda a sua lascívia, resultado no casamento entre Lula e Alckmin, na chapa jocosamente apelidada de “caipirinha de chuchu”.

Alckmin Lula
Lula e Geraldo Alckmin | Foto: André Ribeiro/Futura Press/Estadão Conteúdo

Mas a representatividade de Bolsonaro jamais foi reconhecida pela maioria da imprensa e pelo establishment político e cultural do país. Sua vitória eleitoral foi tida por aberrante, fruto não de um apoio orgânico e espontâneo da maior parte da sociedade, mas de toda sorte de manipulação. Surgiram as narrativas do “disparo de fake news”, do “gabinete do ódio”, das “milícias digitais”. A pandemia exponenciou o mecanismo de deslegitimação do presidente, bem como do seu eleitorado. O “consórcio” midiático passou a representar o chefe de Estado como um criminoso, um pária internacional, um inimigo da “ciência”. Também os seus aliados e apoiadores o foram assim estigmatizados. Ministros de Tribunais Superiores não hesitaram em assumir o papel de opositores, apelando a uma retórica política vulgar, em que não faltaram acusações de genocida, comparações com o nazismo e participações em eventos políticos em favor da queda do presidente. Inconsolável desde que se anunciou o vitorioso de 2018, o establishment se reorganizou e passou a coordenar um ataque sem precedentes ao presidente da República e, sobretudo, à grande parcela da sociedade que o elegeu e o seguiu apoiando à espera da implementação da agenda eleitoralmente vitoriosa.

Hoje, a direita brasileira tem uma forte base social e um conjunto estabelecido de valores e ideias

Apesar de todo o bombardeio — ou, antes, por causa dele —, e diferente do que tende normalmente a acontecer, a identificação entre o eleitorado conservador brasileiro e Jair Bolsonaro não se desfez ao longo dos seus quatro anos de mandato, mas, ao contrário, se intensificou. Durante um tempo, acreditou-se que essa identificação se dava essencialmente pela negativa, graças ao antipetismo. Mas, quando parte das forças políticas antipetistas (notadamente o MBL e o lavajatismo) rompeu com Bolsonaro, o aspecto positivo da representatividade popular de Bolsonaro ficou mais nítida.

Em maio de 2019, por exemplo, quando da mobilização das manifestações em prol da reforma da previdência, a imprensa já fazia o de sempre, acusando previamente os manifestantes de antidemocráticos e extremistas. Naquela ocasião, o MBL já trilhara o caminho do antibolsonarismo (caminho que, como prova o resultado do pleito de 2022, praticamente aniquilou o movimento). Acreditando na autoimagem de grande força de mobilização para os atos pró-impeachment de Dilma Rousseff, imaginaram que a sua ausência fosse desidratar as manifestações bolsonaristas em apoio à reforma. Ledo engano. Os atos do dia 26 de maio foram gigantescos (e, como sempre, pacíficos), já indicando a tendência que, dali em diante, só viria a crescer, levando às ruas multidões cada vez maiores (e mais engajadas) de apoiadores de Bolsonaro, e culminando nos atos do último 7 de Setembro, provavelmente os maiores da nossa história, imantados de um sentimento coletivo de pertencimento, patriotismo e esperança muito raro na vida política nacional.

7 de Setembro
Multidão lota a Avenida Paulista no 7 de Setembro | Foto: Pedro Costa/Revista Oeste

Por uma série de razões que vão desde méritos pessoais do político até circunstâncias históricas favoráveis, Jair Bolsonaro foi a figura-símbolo de todo esse movimento orgânico e espontâneo, que o establishment tentou ostracizar sem sucesso, e que os institutos de pesquisa aparelhados fizeram questão de não compreender. Mas, de certa forma, justamente por ser orgânico e espontâneo (lembrando que o ex-capitão do Exército jamais contou com respaldo partidário consistente), o bolsonarismo sai dessas eleições até um pouco maior que o próprio Jair, consolidando-se como uma força política inescapável, com potencial de ser encarnada por novas figuras políticas.

Em contraste, a esquerda brasileira é hoje muito mais personalista que a direita, dependendo exclusivamente da figura de Luiz Inácio Lula da Silva. Graças ao assistencialismo passado e ao coronelismo renitente, o ex-presidiário ainda tem no Nordeste um poderoso curral eleitoral. Como mostrou a votação que teve nessa região do país, a popularidade do ex-metalúrgico continua significativa, mesmo com todo o passado de líder do maior esquema de corrupção da história brasileira. Convém lembrar, todavia, que, ao contrário de Bolsonaro, o político petista sempre contou com a força cultural do partido, que adotou com sucesso a estratégia gramsciana de aparelhamento da sociedade civil (universidades, editoras, imprensa, indústria do entretenimento), e, por meio de seus intelectuais orgânicos, conseguiu “preparar” a sociedade para recebê-lo de braços abertos.

Lula, em ato com artistas e outros apoiadores de campanha | Foto: Reprodução/redes sociais

Ainda assim, em termos de partido, o PT parece retornar às suas dimensões originais de partido da intelligentsia progressista. Por muito tempo, o partido mostrou-se orgulhoso dessa sua base social mais “esclarecida” (ou “refinada”, como diria hoje o candidato petista). No ano 2000, por exemplo, um estudo coordenado por André Singer, intelectual orgânico do PT, mostrava que, enquanto o povão tendia a se identificar com a direita e com a manutenção da ordem, era especialmente a classe média universitária de escolaridade que formava o eleitorado da esquerda e do PT em especial. Nos dois governos Lula, esse quadro foi excepcionalmente alterado, quando uma sorte de assistencialismo sebastianista (nem de perto comparável, por óbvio, ao “assistencialismo” prestado aos bancos e às empreiteiras) fez do ex-presidiário algo como um “santo” popular no Nordeste, situação cujo resíduo eleitoral ainda hoje se observa. Situação que, todavia, só se sustenta enquanto durar a persona política de Luiz Inácio Lula da Silva.

Hoje, a direita brasileira tem uma forte base social e um conjunto estabelecido de valores e ideias. Já a esquerda — elitizada, desenraizada, incapaz de mobilização popular e carente de ideias frescas (embora não das habituais frescuras) — acha-se mortalmente dependente de uma figura que, mesmo se vitorioso nesse segundo turno, vive o seu ocaso físico, político e moral. E é justamente esse quadro que, a curto prazo, pode fazer dele uma grande ameaça à democracia, à paz social e ao desenvolvimento do país.

Leia também “O 7 e o 8 de Setembro de 2022”

12 comentários
  1. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Esse canalha de nove dedos será eleito, infelizmente e como não terá governabilidade pois o congresso não vai aprovar as safadezas, vai tentar dar um golpe

  2. Carlos Gomes Araujo
    Carlos Gomes Araujo

    Parabéns. Materia, com certeza será de grande esclarecimento e objeto de atenção, para a realidade política de nosso país. E hora de extirpar certas filosofias fabricadas e passadas como instrumento para militância com objetivos equivocadas. Salve Brasil, com sua real democracia. Não a doutrinária escusa

  3. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    A improvável vitória do ex-presidiário seria uma tragpara as próximas gerações.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Não vejo curral nordestino

    1. Lúcio Flávio da Silveira Matos
      Lúcio Flávio da Silveira Matos

      Explique-se melhor!

  5. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Texto primoroso, gostoso de ler! Parabéns, Gordon!

  6. José Tadeu de Araujo
    José Tadeu de Araujo

    Antes do Presidente Bolsonaro, os democratas que detestam o povo, diziam que a alternância de poder era o ideal. Bom, tivemos uma alternância de poder e o que aconteceu? Sou grato ao ao Bolsonaro por unir uma multidão anonima de pessoas que não tinha voz e sofria com os efeitos de uma cleptocracia.

  7. Martha De Gennaro
    Martha De Gennaro

    que coisa esquisita essa dos intelectuais, professores com Doutorado, juízes do Supremo Tribunal, pessoas que fizeram faculdade, estudaram bastante, adorarem um sujeito que se orgulha de nunca ter lido um livro sequer. Pessoas doutas que se ajoelham na frente de um apedeuta, lutam por ele, que não é nenhum santo, bem ao contrário. Tudo por dindin? Todos Macunaíma?

    1. Erasmo Silvestre da Silva
      Erasmo Silvestre da Silva

      Vejo muitas outras coisas inconcebíveis

  8. jose eustaquio sampaio
    jose eustaquio sampaio

    Ele tem que ser extirpado da vida política e social do Brasil, verdadeiro perigo a Democracia, junto com seu sistema, enraizado nos tribunais, judiciário, universidades
    e no assistêncialismo nordestino, que até hoje não nxergaram o mal que esse descondenado fez aos próprios.

  9. Ricardo Luiz Rocha Cubas
    Ricardo Luiz Rocha Cubas

    ALÔ BOLSONARO! É urgente! Contrate três institutos de pesquisas não esquerdistas, por 6 milhões de reais, para realizar, no dia da eleição, três levantamentos independentes para a eleição presidencial no segundo turno das eleições: modalidade única de PESQUISA DE BOCA DE URNA. Cada pesquisa com 40.000 entrevistados. Essa é uma PROVA CIENTÍFICA ESTATÍSTICA apta a se contrapor a eventuais fraudes eletrônicas, DE QUALQUER TIPO! Ah, e anuncie a todos os governos internacionais, extraoficialmente, que irá fazer essas três pesquisas, no dia da eleição de segundo. Se houver discrepância entre a média das três pesquisas e o resultado, poderá adotar medidas mais drásticas. É um investimento “barato” em face da grande importância do Brasil no contexto mundial. Talkey?

  10. Cristiano Beneduzi
    Cristiano Beneduzi

    Excelente texto. Descreve perfeitamente os eventos desde 2018.

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