No fim do ano passado, em meio à pandemia de covid-19 e às dificuldades econômicas provocadas pela crise sanitária, o Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios. O texto abriu espaço fiscal de R$ 100 bilhões no Orçamento para o custeio do Auxílio Brasil, para a compra das vacinas anticovid-19, para a correção de benefícios previdenciários e para a desoneração da folha de pagamentos.
Os precatórios são dívidas do Poder Público com pessoas físicas ou jurídicas já reconhecidas pela Justiça — ou seja, sem chance de apelação. Assim, quando cidadãos e empresas processam qualquer uma das três esferas de governo (municipal, estadual ou federal) e obtêm ganho de causa, o Judiciário emite uma ordem de pagamento. Depois do trânsito em julgado (quando não há mais possibilidade de recursos), a dívida com os credores tem de ser quitada no ano seguinte. Isso teoricamente. Na prática, as sentenças judiciais são frequentemente descumpridas pelo Estado.
Economia é o tema escolhido por Oeste nesta terça-feira, 30, dentro da série de reportagens “Desafios do Brasil”, que será publicada até o dia 30 de setembro, sempre seguindo a seguinte ordem de temas na semana: segunda-feira (Educação), terça-feira (Economia), quarta-feira (Agro e Meio Ambiente), quinta-feira (Justiça e Segurança Pública) e sexta-feira (Saúde). Veja aqui as reportagens do projeto Desafios do Brasil.
Segundo o Conselho da Justiça Federal (CJF), aproximadamente 50% dos precatórios devem ser honrados em 2022. Isso porque a PEC aprovada pelo Congresso no fim de 2021 estabeleceu uma espécie de “teto” para o pagamento dessas dívidas. Neste ano, por exemplo, dos R$ 89 bilhões devidos, apenas R$ 45 bilhões foram pagos. O saldo remanescente ficará em uma lista de espera, para ser recebido no ano seguinte. O mesmo acontecerá com as dívidas a serem pagas em 2023, 2024, 2025 e 2026 — último ano de vigência da Emenda Constitucional 114/2021.
Nesse cenário, nenhum montante deverá ser pago em 2023, visto que cerca de 50% dos valores devidos em 2022 foram postergados para o ano seguinte. Se persistir com essas medidas, a União conseguirá quitar, em 2026, apenas 50% das dívidas que deveriam ter sido pagas em 2024. Em síntese, o Executivo não terá recursos para honrar parte das dívidas de 2024, 2025 e 2026.
Reportagem publicada na Edição 89 da Revista Oeste ilustra, de maneira didática, essa questão: você (o cidadão pagador de impostos) sustenta quem lhe deve dinheiro (o Estado). E quem lhe deve dinheiro continua recebendo cada centavo sem pagar ao credor (você) nenhum real.
O Estado dita as regras dos precatórios
Embora o pagamento de precatórios seja obrigação do Poder Público, seu descumprimento raramente é punido pela Justiça. “Se entro com uma ação contra o Estado, não posso proceder à execução da mesma maneira como faria se a ação fosse ajuizada contra uma pessoa comum”, explicou o advogado Adriano Ferriani, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócio do escritório de advocacia Ferriani, Jamal & Fornazari. “Isso acontece porque os bens públicos não podem ser penhorados.”
Em entrevista concedida ao programa Direto ao Ponto, da rádio Jovem Pan, o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega criticou o descaso estatal na condução dos precatórios. “Gastar com advogado, comparecimento a tribunais… e no fim o autor morre e são os herdeiros que concluem o processo. Quando acaba essa saga de décadas, o governo diz: ‘Não pago’”, observou. “É inacreditável uma equipe econômica que se diz liberal, que sabe o valor da propriedade privada, propor a violação desse direito fundamental.”
O advogado e professor André Félix Ricotta de Oliveira, presidente da Comissão de Direito Tributário e Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), segue na mesma linha. “Se a União agisse de forma mais correta, teríamos menor acúmulo desses processos no Judiciário e menos precatórios a serem pagos”, argumentou. “É um contrassenso, um desrespeito ao cidadão que esperou longos anos em processos judiciais para conseguir o que lhe é de direito. Quando obtém algo, o Estado surge com uma PEC para fracionar esse pagamento, mudando as regras do jogo.”
Os maiores devedores
Embora a União esteja sob os holofotes, Estados e municípios são os recordistas de inadimplência, com mais de R$ 150 bilhões de dívidas acumuladas em precatórios. Na esfera federal, por sua vez, o saldo devedor é de quase R$ 45 bilhões. Esse passivo é composto de dívidas judiciais relacionadas a salários, pensões, aposentadorias, indenizações e desapropriações.
Somadas, as dívidas das três esferas de governo chegam a quase R$ 195 bilhões, segundo o Mapa Anual dos Precatórios. O levantamento destaca que aproximadamente R$ 17 bilhões se referem à Justiça do Trabalho e R$ 12 bilhões ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Esses valores são acumulados anualmente, ou seja, somam as dívidas que não foram pagas pelo Poder Público desde que foram expedidas. Até 2017, mais de 80 milhões de processos sobre precatórios aguardavam desfecho no país.
De acordo com o advogado Adriano Ferriani, União, Estados e municípios são todos devedores. Mas a esfera federal, depois do trânsito em julgado da sentença judicial, não dá calote — pelo menos até o surgimento da Emenda Constitucional 114/2021. “A União vem pagando em dia. Os Estados e os municípios são um caso à parte”, afirmou. “Depois que o precatório é expedido, a grande maioria não paga no ano seguinte, geralmente por falta de dinheiro suficiente para todos os gastos”, explicou o advogado. “Isso gera um enorme atraso. Os valores são corrigidos monetariamente. Mas, mesmo assim, muitas vezes o credor morre no meio dessa espera toda.”
Esse desarranjo econômico também afeta a União, já que o dinheiro para o pagamento de precatórios tem de sair das chamadas despesas não obrigatórias (discricionárias), consideravelmente menores que as obrigatórias (salários de servidores, aposentadorias e encargos da dívida pública). Em suma, trata-se de um pesadelo para as três esferas de governo, que sofrem com a escassez de recursos em razão do constante aumento dessas dívidas.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, manifestou ainda em dezembro de 2020 sua preocupação com o crescimento acelerado dessas despesas, que teriam ultrapassado os gastos com saúde, educação e segurança. “Não existia e, de repente, aparecem R$ 15 bilhões por ano”, observou, ao ressaltar que o país corre o risco de ser destruído pela indústria de precatórios. “Aí, pula para R$ 25 bilhões no governo seguinte. No ano que vem, serão cerca de R$ 40 bilhões. Será que estamos tratando do assunto corretamente?”
Idosos, os mais afetados
Embora as contas públicas possam ser comprometidas por causa do acúmulo de dívidas relacionadas aos precatórios, é o pagador de impostos que sofre de fato com a falta de recursos. Para consertar suas barbeiragens na gestão econômica, o Estado pode imprimir dinheiro ou aumentar impostos. Apesar de ambas as medidas terem consequências catastróficas a longo prazo, resolvem um problema de curtíssimo prazo, permitindo aos governos gastar sem parcimônia. O brasileiro comum, todavia, não usufrui desse privilégio.
Portanto, não honrar as dívidas com os cidadãos atenta contra os mínimos requisitos morais exigidos de gestores públicos. “Um possível calote prejudicará milhares de pessoas”, disse o advogado Álvaro Lopez, 89 anos. “A maioria dos precatórios a serem pagos é relacionada à Previdência Social, como INSS e aposentadoria. É um dinheiro destinado aos pobres, que lutaram a vida inteira para se aposentar. Os idosos serão os principais atingidos pelo calote.”
Os precatórios viraram bola de neve porque o estado sempre foi caloteiro.
Na verdade é a população brasileira quem paga essa conta, que em muitos casos é ENGORDADA assustadoramente. Lembro que em 1999 o senador Antonio Carlos Magalhães (Toninho Malvadeza) conseguiu com muita luta abrir uma CPI DO JUDICIÁRIO e nela encontrou decisões judiciais assustadoras e que foram revisadas, como a condenação pela juíza Ivete Lucia Pinheiro baseada em pericia falsa ao BASA (Bco. da Amazônia) a pagar mais de R$80 bilhões a falida Madeireira Sabim. Pergunto, esta decisão não fosse a CPI do Toninho Malvadeza não seria hoje um precatório de mais de R$100 bi para nós pagarmos, locupletando malfeitores e advogados?
Essa justiça tem moral pra reconhecer dívida? Primeiro ela tem que pagar a dívida dela ao povo
Os gastos da União com os precatórios são risíveis, já os dos Estados e Municípios não.