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Espaço publicitário em Newport, País de Gales, usado para avisar ao público para ficar em casa durante a pandemia (28/04/2020) | Foto: Gareth Willey/Shutterstock
Edição 106

Como foi que deixamos o lockdown acontecer?

Dois anos depois da primeira ordem de “ficar em casa”, precisamos prometer nunca mais paralisar a sociedade

Fraser Myers, da Spiked
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“Vocês precisam ficar em casa.” Dois anos atrás, em 23 de março de 2020, o primeiro-ministro Boris Johnson deu essa orientação para o povo britânico, introduzindo o primeiro lockdown da história do Reino Unido.

O lockdown pode estar ficando para trás, graças, em parte, a outras crises internacionais mais urgentes. Mas, conforme aprendemos a “seguir em frente” em relação à covid-19, nunca mais podemos deixar que uma política tão extremada, excepcional e cruel seja vista como normal ou necessária.

Na época, o termo “sem precedentes” foi muito usado. Mas o que Johnson anunciou não era apenas sem precedentes. Semanas antes, teria sido impensável — pelo menos em uma democracia liberal do Ocidente. Não era algo que as autoridades, como um consultor científico definiu, acreditaram que “conseguiriam fazer”. Talvez um regime autoritário como a China pudesse colocar sua população em prisão domiciliar — mas com certeza isso não aconteceria na Inglaterra.

O lockdown pareceu anular muitas de nossas suposições mais básicas sobre a vida em uma democracia liberal. Durante aquele período, deixamos de ser um povo livre. Fomos proibidos de sair de casa e banidos de todas as interações sociais fora do nosso ambiente doméstico. Havia apenas uma gama estreita e limitada de exceções obrigatórias. O período entre março e maio de 2020 foi, nas palavras de um juiz da Alta Corte britânica à Comissão Mista de Direitos Humanos, “possivelmente o regime mais restritivo sobre a vida pública das pessoas e das empresas que já existiu”.

Vista aérea de ruas vazias na Cidade do Cabo, África do Sul, durante o bloqueio da covid-19 | Foto: Shutterstock

Muitas pessoas sem dúvida vão argumentar que o lockdown foi uma precaução sensata, necessária para reduzir o contato humano e a disseminação de uma doença mortal. Mas esse relato não faz jus ao clima de histeria, de apocalipse e de autoritarismo que tomou conta da nação nessa época. O Reino Unido se tornou uma distopia. E essa espiral de loucura não só foi tolerada, ela foi ativamente incentivada em todos os níveis da vida pública.

A polícia se deliciou com sua nova autoridade ao impor a ordem de que todos ficassem em casa. Tanto que muitas vezes foi muito além do que de fato era exigido pela lei — que já era a mais rígida da história britânica, não nos esqueçamos. Drones da polícia vasculharam o interior, com medo de que a população fosse fazer exercícios “não essenciais”. Oficiais inspecionaram carrinhos de compra em busca de itens “não essenciais”, como ovos de Páscoa. Alguns chegaram até a colocar tinta preta nos lagos para impedir reuniões perto dessas belas paisagens.

Nada disso tinha nenhuma justificativa legal — não estava nas regulamentações introduzidas usando o Ato de Saúde Pública (que deu efeito legal ao lockdown) nem no Ato do Coronavírus de 2020 (que concedeu poderes de deter pessoas “potencialmente contagiosas”). Na verdade, ainda que poucos tenham notado na época, o lockdown não teve início legalmente até 26 de março, três dias depois do anúncio de Boris Johnson. Mas, no Estado policial da covid-19, a palavra dos ministros do governo foi tratada pelas autoridades como indistinguível da lei.

Mesmo que você tenha ficado obedientemente em casa, os policiais do coronavírus ainda podiam ir atrás de você. Surgiram filmagens de policiais derrubando a porta de um homem só para encontrá-lo sozinho em casa assistindo à televisão. A polícia teve de se desculpar por dizer a um homem que ele estava proibido de ficar em seu próprio jardim. Estar em situação de rua também não era uma desculpa para não ficar em casa. Um morador de rua foi levado ao tribunal pelo crime de “sair de seu lugar de moradia” — “a saber, sem endereço fixo”.

Mais tarde ficou claro que a maior parte das pessoas que morreram durante a primeira onda de covid-19 pegou o vírus durante o lockdown

Você poderia ter esperado que nosso confiável sistema legal entrasse em ação a essa altura, que as Cortes fizessem pressão contra esses abusos óbvios da autoridade policial. Mas, em abril de 2020, uma mulher foi presa, mantida sob custódia da polícia por 48 horas e depois condenada por um crime que não existe. Em fevereiro de 2021, todo processo movido sob o Ato do Coronavírus, ao ser revisado, foi considerado ilegal.

De fato, o lockdown trouxe o pior das pessoas à tona. Muitos descobriram seu xerife interno da covid-19. Ligações para o serviço de emergência médica e policial dispararam, com vizinhos entregando vizinhos por não obedecerem às regras sobre os exercícios, ou seja, sair para mais de uma corrida por dia. Algumas forças policiais encorajaram isso ao criar portais on-line e serviços de atendimento telefônico para denúncias ligadas ao confinamento. Ao fim de abril de 2020, a polícia do Reino Unido tinha recebido 194 mil ligações sobre desobediências de lockdown.

A Times Square vazia, com o outdoor #NYSTRONG, durante o bloqueio pandêmico, em abril de 2020 | Foto: Shutterstock

Esse ódio descontrolado por quem não seguiu as regras significa que não houve espaço para discernimento nem compaixão. As regras de distanciamento social foram aplicadas rigorosamente em todas as circunstâncias. As pessoas foram impedidas de visitar familiares que estavam morrendo — e foram impedidas de confortar umas às outras nos funerais.

A mídia teve um grande papel nisso tudo. Além do alarmismo apocalíptico sobre o vírus, os jornalistas prepararam alegremente seus dois minutos de ódio diário contra o novo inimigo público número 1 — os chamados “covidiotas”, aqueles que foram vistos fazendo contato com outras pessoas em parques e praias, causando dano a exatamente ninguém.

De modo involuntário, o fenômeno dos covidiotas enfatizou a irracionalidade do lockdown. Tanta energia, tantos recursos, tanto ódio foram direcionados às pessoas que se reuniram em pequenos grupos ao ar livre, onde o vírus tinha dificuldade de se espalhar. E muitos desses supostos vetores de doença eram jovens, portanto, não corriam riscos graves relacionados à covid-19. Mais tarde, ficou claro que a maior parte das pessoas que morreram durante a primeira onda de covid-19 pegou o vírus durante o lockdown, e não antes ou depois. Prestamos relativamente pouca atenção aos mais vulneráveis à covid — os idosos e os doentes, em especial os que vivem em casas de repouso.

Da mesma forma que o lockdown estava trazendo o caos para a vida cotidiana, os danos de longo prazo também começaram a ficar mais evidentes.

Paralisar a sociedade mergulhou a economia na recessão mais profunda da história do capitalismo britânico. Esse transtorno não se fez sentir da mesma forma. Enquanto os mais vulneráveis da sociedade foram ainda mais mergulhados na pobreza, os mais privilegiados na verdade fizeram economias, aumentando sua riqueza e seu conforto, enquanto se adaptavam a um estilo de vida de trabalho remoto. Agora que a economia foi retomada, os efeitos do confinamento estão sendo sentidos com aumentos impressionantes no custo de vida (ainda que os governos ocidentais tenham tentado culpar a invasão da Ucrânia pela Rússia).

As mídias impressa e eletrônica se tornaram animadoras de torcida do lockdown, criticando o governo apenas por não ter agido mais rápido ou com maior rigidez

A educação foi devastada. As crianças em idade escolar perderam 1 bilhão de dias letivos combinados. E milhares de estudantes abandonaram o sistema de ensino por completo. A lacuna de aprendizado entre as escola públicas e privadas se tornou imensa.

Até mesmo a saúde foi monumentalmente prejudicada pelo primeiro lockdown e pela ordem de “ficar em casa” para “proteger o sistema público de saúde”. Pacientes não foram atendidos, e doenças não foram diagnosticadas. Sim, a covid-19 ocupou milhares de leitos de hospital, mas o número de pessoas em busca de tratamento também despencou. Não é uma surpresa que a lista de espera do NHS, o Serviço Nacional de Saúde britânico, esteja batendo recordes.

As privações de curto prazo e os danos de longo prazo estavam claros para qualquer pessoa que se desse ao trabalho de considerá-los. Mas, nos primeiros meses de confinamento, houve uma intolerância extremamente poderosa à divergência. Falar sobre os males causados pelos excessos do lockdown significava ser acusado de estar do lado da doença e da morte.

Praça vazia na frente da Catedral Duomo, em Milão, na Itália, durante o lockdown | Foto: Shutterstock

A oposição à abordagem do governo foi extremamente limitada. As mídias impressa e eletrônica se tornaram animadoras de torcida do lockdown, criticando o governo apenas por não ter agido mais rápido ou com maior rigidez. Plataformas da big tech censuraram vozes dissidentes, rotulando opiniões que contradiziam as orientações de saúde pública da Organização Mundial da Saúde como “desinformação”. O Labour Party — supostamente a “oposição oficial” do Reino Unido — apoiou todas as restrições do governo com veemência.

Por que tão poucos fizeram objeções a medidas tão extremadas? Isso não pode ser explicado pela gravidade da pandemia. Ainda que o lockdown possa ter parecido uma ruptura violenta com o “antigo normal”, ele também se aproveitou e aprofundou uma série de tendências destrutivas preexistentes. A cultura da “segurança”, a ampla difamação da liberdade e da liberdade de expressão, o aumento do Estado-babá e do autoritarismo na saúde pública, bem como a atomização da vida social já estavam claros antes da pandemia. E, mesmo enquanto as regras que nos confinaram eram canceladas, essas tendências problemáticas continuam existindo e assumindo novas formas em reação aos novos desafios.

Ainda que leve anos para entender por completo o que aconteceu nesse período excepcional e desolador das nossas vidas, dois anos depois podemos dizer com absoluta certeza: precisamos não deixar nunca mais que nos confinem.


Fraser Myers é editor assistente da Spiked e apresentador do podcast da Spiked Siga-o no Twitter: @FraserMyers

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9 comentários
  1. Ayrton Pisco
    Ayrton Pisco

    Por uma grande sorte pudemos, em nossa casa, passar por esta epidemia de histeria sem usar máscaras, a não ser em shoppings, sem deixar de estar no meio de gentes, (muitas, parentes e desconhecidos, infectados ou não), sem tomar remédios ou vacinas.
    Ninguém na nossa casa pegou covid.
    Estou estarrecido, não imaginava que a massa popular pudesse ser tão submissa, e até cúmplice, daqueles que lhe cassaram os mais fundamentais direitos.

  2. Vanessa Días da Silva
    Vanessa Días da Silva

    Eu, enquanto médica, vi com desgosto e assombro, colegas postando orgulhosos em seus perfis sociais a frase feita do” fique em casa”, Cheios de empáfia achando que eram os grandes heróis indispensáveis, quando o que de fato ocorreu é que apenas repetiram o bordão que lhes foi imposto pela Nova Ordem Mundial e foram facilmente controlados como ovelhas e atropelados pela ” ciência” do dinheiro. Será que já acordaram e apagaram essas fotos ridículas?

  3. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    O mundo certamente vai demorar muito a se recompor, a recuperar tudo q se perdeu em função desse pânico que se difundiu em nome do “bem”, pra nos “proteger”. A tirania nunca foi exercida com tanto gosto! Lamentável!
    Execelente texto! Parabéns!

  4. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Excelente texto. Parabéns. O que o medo não faz. Parafraseando o Coringa do filme Batman, O Cavaleiro das Trevas: crie o caos por meio do medo e aí você verá como as pessoas se comportam. No caso da peste chinesa se comportaram como gado. Obedientes e de cabeça baixa.

  5. Ernesto Quast
    Ernesto Quast

    Um colega dizia: “Quando você se abaixa, deixa a bunda aparecer”.
    Desde o início da histeria eu falava para minhas filhas: “No futuro vocês me perguntarão: Como vocês foram tão imbecis na sua época? E eu não teria resposta.”
    A palavra ciência foi utilizada como na época de Galileu Galilei, muito triste. O pior é imaginar que a novela ainda não terminou e vivenciamos silenciosamente a perda de direitos, liberdades, contas bancárias bloqueadas em países “democráticos” e por “servidores” (que se servem do povo) que têm como compromisso único a guarda da constituição brasileira. Onde chegaremos? Grande continente com uma economia próspera similar à Venezuela e Argentina?

  6. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    A insanidade de utilizar o lockdown para prejudicar politicamente o Presidente Bolsonaro quase destruiu a economia do Brasil.

  7. COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA
    COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA

    O MITO TINHA RAZÃO E NÃO PERCEBEMOS !!!!!!!

  8. COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA
    COLETTO ASSESSORIA EM SEGURANÇA DO TRABALHO LTDA

    Amigos, como deixamos o lockdown ocorrer.
    Fomos tragados mundialmente pelo socialismo que necessitava colocar o POVO SOB O JUGO DE UM FUNCIONARIO PUBLICO – QUE NO BRASIL ATÉ HOJE AINDA TRABALHA EM CASA.

  9. Luzia Helena Lacetda Nunes Da Silva
    Luzia Helena Lacetda Nunes Da Silva

    A pandemia mostrou também que o Homo sapiens precisa, mesmo, seguir aprimorando-se. Pensar com a própria cabeça, ser menos cordeirinho e mais corajoso são lições a serem estudadas mais cuidadosamente.

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