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Turistas com bagagem na fila no terminal do aeroporto | Foto: Shutterstock
Edição 122

Ops, os pilotos sumiram…

Atrasos e cancelamentos de voos, filas quilométricas, bagagens surrupiadas, incertezas. Só em agosto, 25 mil voos foram cancelados

Loriane Comeli
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Quem optou por fazer viagens aéreas nos últimos meses enfrenta um cenário de filme de ficção científica sobre um futuro distópico. É o caos. Atrasos e cancelamentos de voos, filas quilométricas, bagagens surrupiadas, incertezas. Só em agosto, 25 mil voos previstos foram cancelados, segundo levantamento da Cirium, empresa de consultoria aérea. Não há perspectiva de melhora a médio prazo, e a líder mundial de seguro, Allianz Trade, diz, simplesmente, que, na aviação civil, o caos é o “novo normal”.

Assim como tantos outros gargalos — na saúde e na educação, por exemplo — que agora estão aparecendo, a situação caótica no setor aéreo também pode ser colocada na conta dos bloqueios impostos pelas autoridades para enfrentar a pandemia de covid-19. As companhias e os administradores de aeroportos realizaram demissões em massa para enfrentar a queda brusca de receita e agora, com o aumento da demanda, não conseguem repor os postos perdidos.

Por enquanto, os aeroportos e as companhias europeias são os mais afetados, seguidos dos Estados Unidos e do Canadá. Mas o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) acredita que a turbulência poderá chegar ao Brasil — muitos pilotos e comissários estão sendo atraídos por ofertas de emprego no exterior.

Reportagem do The Wall Street Journal elenca uma série de causas para o pouso forçado de um setor que prometia decolar depois da pandemia. A principal delas, certamente, é a dificuldade de encontrar, treinar e reter trabalhadores para substituir os milhões que foram mandados embora, ou educadamente convidados a deixar seus postos, desde 2020. Inclusive, vários foram os casos de funcionários incentivados pelas empresas a antecipar suas aposentadorias e que agora não querem saber de voltar.

Setor demanda profissionais qualificados 

O trabalho no setor aéreo é altamente especializado, requer um conjunto muito específico de habilidades — saber lidar com o imprevisível e não perder a calma em situações críticas, por exemplo. Também exige conhecimento técnico e reciclagem constante. Pilotos e copilotos, por exemplo, precisam de inúmeras horas de voo e meses de treinamento com simuladores, o que demanda tempo e dinheiro. Até mesmo os comissários necessitam de capacitação. Além disso, as companhias fazem rigorosa checagem dos antecedentes dos candidatos. Nos Estados Unidos, somente esse processo pode levar dois meses.

Também houve, ao longo dos sucessivos lockdowns, demissão em massa de aeroportuários, o pessoal que trabalha na operacionalização dos voos — despachando bagagens, na segurança dos aeroportos, no atendimento de passageiros, na imigração e na alfândega. Em Toronto, por exemplo, a falta desse tipo de funcionário fez com que passageiros de 2,7 mil voos tivessem de esperar dentro da aeronave até que houvesse funcionários suficientes para atendê-los nessas questões. Comissários e pilotos também foram obrigados a aguardar no avião, atrasando voos e formando filas enormes no check-in

Malas acumuladas no Aeroporto de Heathrow, Londres | Foto: Reprodução

Em Londres, o problema da vez é o sumiço das bagagens — se antes esse era um aborrecimento ocasional e aleatório, que afligia um punhado de passageiros, agora é sistemático e recorrente —, o estorvo do momento. A situação é tão crítica que, na semana passada, um avião da Delta partiu de Heathrow com destino a Dallas só com malas (em torno de 1 mil) que não tinham sido entregues aos donos no início de junho.

Em muitos países, houve incentivo dos governos para administrar a queda brusca de arrecadação das companhias aéreas. Em tese, o estímulo ajudaria a mitigar esses e outros problemas, mas o dinheiro extra não foi suficiente. Sem pessoal e sem recursos, muitas companhias começaram a reduzir as operações, o que resultou no cancelamento de voos já agendados ao longo do ano.

É o caso da Delta, que reduziu inúmeros voos para estabilizar as operações que foram afetadas por atrasos e cancelamentos em maio e junho, mesmo com custo financeiro. Executivos disseram que a Delta não planeja adicionar voos pelo menos até o fim do ano, ainda que a demanda permaneça robusta.

 Atrasos e cancelamentos em julho

Os problemas nos voos, que se intensificaram em abril, parecem piorar a cada dia. Um levantamento feito com base no banco de dados do site FlightAware, especializado em monitoramento de voos, mostrou que, nas duas primeiras semanas de julho, o aeroporto com maior número de atrasos foi o Toronto Pearson International, no Canadá, com cerca de 53% dos voos partindo ou chegando depois do horário previsto. Os aeroportos de Frankfurt, com 46% de voos atrasados; Charles de Gaulle (Paris), com 43%; e Heathrow (Londres), com 40%, vinham a seguir. Já em cancelamentos, excluindo-se a China, onde a política de covid-19 zero praticamente inviabilizou a aviação, o Newark Liberty, em Nova Jersey, encabeçou a lista, com 8% dos voos cancelados entre 1º e 12 de julho, seguido do La Guardia, em Nova Iorque, com 7% dos voos suspensos.

Se um voo é cancelado, fica por isso mesmo, não há avião disponível nem assentos sobrando para alocar quem teve as férias frustradas ou a viagem de trabalho adiada para sabe-se lá quando

Atrasos, filas e bagagens perdidas são contratempos comuns no transporte aéreo. A logística para fazer um avião decolar e pousar com três ou quatro centenas de pessoas com segurança, pontualidade, sem errar a mão no serviço de bordo e cuidando para que os pertences voltem para as mãos de donos intactos é complexa. Como no dominó, basta uma peça cair para todas as outras virem abaixo. Os reveses que estão transformando os aeroportos europeus em verdadeiras sucursais do inferno sempre aconteceram, em escala muito menor, é verdade, e as soluções eram suficientes para contorná-los. 

Agora, porém, a realidade é outra: o sistema está fragilizado, nem companhias nem aeroportos trabalham com folga: se um funcionário se atrasa ou fica doente, não há outro para substituir. Se um voo é cancelado, fica por isso mesmo, não há avião disponível nem assentos sobrando para alocar quem teve as férias frustradas ou a viagem de trabalho adiada para sabe-se lá quando. 

Foi o que ocorreu, por exemplo, com a Eurowings, uma companhia de baixo custo de propriedade da alemã Lufthansa, que teve de cancelar um voo de volta para Heathrow, em 5 de julho, depois que um membro da tripulação adoeceu, e a empresa não tinha ninguém para substituí-lo. Na reportagem do Wall Street Journal, o presidente da Emirates Airline, Tim Clark, questiona: “A pergunta na boca de todos é: ‘Para onde foram todos eles?’ Há centenas de milhões de pessoas que desapareceram do mercado de trabalho”. 

As companhias têm reduzido os voos até mesmo por imposição dos aeroportos, que não têm pessoal suficiente para o trabalho. Os aeroportos de Frankfurt, Heathrow e Gatwick, de Londres, e Schiphol, de Amsterdã, restringem as operações, determinando às companhias a redução de passageiros e, portanto, a suspensão de voos diários. Heathrow, que antes da covid-19 era o segundo maior aeroporto de tráfego internacional, depois de Dubai, disse que limitaria a partida de passageiros a 100 mil por dia até 11 de setembro, 4 mil a menos do que o programado. Um porta-voz de Heathrow disse ao WSJ que os níveis de passageiros voltaram para os cerca de 80% a 85%, como antes da pandemia, mas as equipes das companhias aéreas estão com apenas cerca de 70% de funcionários em relação àquele período.

No Brasil, céu de brigadeiro

A Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear) assegurou que a aviação brasileira plana em um céu de brigadeiro — ainda não retomou os níveis pré-pandemia, mas isso poderá acontecer ao longo dos meses. Os frequentes atrasos e os cancelamentos na Europa e na América do Norte ainda não impactaram as operações brasileiras, informou.

Segundo o SNA, apenas a Latam demitiu na pandemia cerca de 2,7 mil tripulantes (pilotos e comissários) e repôs até agora mil, aproximadamente. Azul e Gol fizeram acordos de redução de jornada de trabalho, que, no caso da Gol, por exemplo, vigoraram até dezembro do ano passado. As empresas brasileiras faziam, antes da pandemia, cerca de 900 voos diários, que foram reduzidos a cerca de 50 durante o período mais crítico da crise sanitária — menos de 10% do total.

Conforme nota da Abear, a malha aérea doméstica registrou, em julho, 88% da média diária de voos que as companhias aéreas operavam antes da pandemia. “É o maior nível de retomada da oferta de voos domésticos.” Nos voos internacionais, em julho, as empresas operaram 59% do volume antes de 2020. Segundo a nota, a operação das empresas associadas — Gol, Latam Brasil, Voepass, Abaeté, Rima e Sideral — está “absolutamente normal, sem qualquer transtorno nos aeroportos ou aos passageiros”. A Abear ressalta que os problemas que têm sido reportados nos aeroportos dos Estados Unidos e da Europa são exclusivos daqueles mercados e foram originados por falta de mão de obra”, finaliza.

A Latam, em nota, declarou que a empresa “vive momento de retomada e crescimento no mercado brasileiro”. Segundo a assessoria, a Latam já retomou 106% dos seus voos domésticos e, no mercado internacional, a recuperação segue outro ritmo, mas a companhia já conseguiu restabelecer voos do Brasil para 20 destinos no exterior (eram 26 antes da pandemia). Em 2020, operando apenas 5% dos voos, a Latam reduziu o quadro funcional em quase 30%. Entre janeiro e maio deste ano, contratou 1,8 mil novos colaboradores, tendo agora 17 mil funcionários, número ainda inferior ao da pré-pandemia, “mesmo com nossos esforços de contratação”.

Na retomada das operações, a partir deste ano, o presidente do SNA, Henrique Hacklaender, disse que as companhias não estão encontrando dificuldades em contratar, porque “ainda há uma certa sobra de profissionais demitidos da Latam”.

Entretanto, com a crise mundial na aviação, esse quadro pode mudar e haver falta de pessoal na alta temporada brasileira, a partir de dezembro. Hacklaender diz que o SNA tem concedido até 15 certificados de associação a tripulantes — documento exigido pelo setor de imigração dos Estados Unidos a pilotos e comissários que se candidatam a vagas de emprego no exterior. “Até o ano passado, emitíamos um certificado por mês; no início do ano, começamos a emitir uma carta por semana; e, de três meses para cá, são quase três cartas por dia, quase 15 por semana”, contabilizou.

O salário de um copiloto nos EUA gira em torno de US$ 8 mil, “quatro, cinco vezes o que receberia aqui, quer dizer, excelente para o padrão brasileiro”, avaliou Hacklaender. “Então não posso garantir que o Brasil não vai passar pelo mesmo que passam a Europa e os Estados Unidos na alta temporada.”

Um avião de malas extraviadas

A defasagem de funcionários no setor de carregamento de bagagens nunca foi tão grande. Milhares de passageiros têm chegado ao destino sem suas malas. A Swissport International, prestadora de serviços de aviação e manipuladora de bagagens em muitos aeroportos, está atualmente com cerca de 17 mil vagas abertas, oferecendo bônus de US$ 5 mil em alguns aeroportos dos EUA. A concorrente Menzies Aviation tinha, em junho, 1,8 mil postos de trabalho para preencher.

A Sita, empresa suíça que gerencia um software de rastreamento de bagagem usado pelas companhias aéreas, informou que os passageiros sinalizaram três vezes mais malas extraviadas de janeiro a março deste ano do que no mesmo período de 2021. Entre abril e junho, o número foi cinco vezes maior do que o do ano anterior.

Também houve problemas mecânicos nas esteiras dos aeroportos Toronto Pearson e Heathrow. Milhares de malas foram armazenadas e apenas algum tempo depois enviadas aos donos.

O treinamento de um piloto

O presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas explica que, depois da contratação, um piloto leva de três a quatro meses para efetivamente começar a trabalhar. “Depois que entra na empresa, vai para aulas teóricas, para sessões de simuladores de voo, e só depois vai para dentro de um avião, para treinamento prático, sempre com instrutor junto.”

Os pilotos e os comissários também precisam ser testados anualmente ou semestralmente. Para contratar, as companhias exigem a comprovação de no mínimo mil horas de voo. “Quando faltam pilotos, as empresas baixam um pouco os parâmetros, mas há um limite, porque começaria a afetar a segurança.”

Na Delta, cerca de 1,6 mil pilotos, mais de 10% do total, estavam em treinamento ao longo do mês passado, disse Ed Bastian, CEO da empresa. O CEO da Deutsche Lufthansa, Carsten Spohr, afirmou que a companhia também tem centenas de pilotos que ainda precisam de treinamento em aeronaves específicas. Além disso, a empresa tem mais de mil comissários de bordo em casa esperando para ser qualificados.

Foto: Shutterstock

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7 comentários
  1. Valesca Frois Nassif
    Valesca Frois Nassif

    Parece que vai levar muito tempo ainda para que o mundo se recomponha da loucura e instabilidade geradas pelos insanos lockdowns. O q dizer , então, dos essenciais setores de saúde e educação, tão inexorável e fatalmente afetados ?

  2. Marcelo Gurgel
    Marcelo Gurgel

    O globalismo desorganizou o mundo.

  3. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Ótimo artigo. Parabéns. A estupidez dos lockdowns cobrando o preço.

  4. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Ô Bolsonaro, empresta aí Paulo Guedes para organizar a mobilidade aérea neste planeta que esses CEO’s não tão dando conta

  5. Carlos Renê
    Carlos Renê

    Fica em casa, a aviação a gente vê depois

  6. Dante Favilla
    Dante Favilla

    Como dizia o mestre Josias lá na Galiléia: Quem com o ferro fere, com o ferro será ferido! Eheheheheh ….

  7. Enoch Bruder
    Enoch Bruder

    Rapadura é doce mas não é mole!!!

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