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Ilustração: Shutterstock
Edição 173

O choramingo canastrão dos arrependidos

Ao menos dessa vez, nossos representantes comunistas não mentiram e, ao contrário, anunciaram abertamente o que iriam fazer assim que seu objetivo imediato fosse atingido

Flávio Gordon
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“A eleição é uma farsa pela qual é preciso passar para chegar ao poder.”
Luiz Inácio Lula da Silva, Le Monde, 2 de outubro de 2002

No dia 30 de outubro de 1956, o jornal fluminense Correio da Manhã, cuja redação era então comandada por Antonio Callado, publicou um artigo intitulado “Última palavra em técnica: a Frente Única”. Quarto texto de uma série sobre a infiltração soviética na vida política nacional, trazia no subtítulo a seguinte explicação resumida: “Artifício para atrair não-comunistas que acabam abrindo portas antes fechadas à bolchevização”. Complementada pela observação: “Nem os militares escapam”.

Foto: Reprodução Correio da Manhã

No corpo do texto, apresentava-se a propaganda comunista do conceito, para em seguida rebater: “Na verdade, a Frente Única é geralmente artifício para atrair anticomunistas sinceros, mas confiantes, que abrem ao comunismo portas que antes a este eram vedadas. Atrás das frases sonoras e dos nobres sentimentos que encobrem os apelos para uma Frente Única (o de agora é o de evitar golpes com os quais ninguém evidentemente concorda, levando de cambulhada apelos de nacionalização e de outras reformas) escondem-se objetivos que são tão importantes para os comunistas como perigosos para o trabalhismo da América Latina. Esse, o objetivo em essência semelhante aos já descritos. A Frente Única apenas facilita o alcance do alvo e é por isso que os comunistas a têm defendido com fervor jamais demonstrado”.

É espantoso constatar a diferença abissal de qualidade entre o jornalismo brasileiro de outrora, que falava de objetos do mundo real, e o assim chamado “jornalismo profissional” contemporâneo, que, com as devidas exceções, apenas repercute as taras ideológicas e o universo imaginário dos militantes de redação. Embora fosse um jornal mais inclinado à esquerda, os redatores e colunistas do Correio da Manhã tinham senso de realidade suficiente, e bastante compromisso com o fato, para perceber a realidade política oculta por detrás de slogans e frases de efeito. Ao contrário de hoje, no Brasil dos anos 1950 não era tão fácil aos comunistas ludibriar os formadores da opinião pública com apelos a uma frente única “pela democracia”, “contra o fascismo” ou “contra o golpe”. Os mais bem informados sabiam que um dos slogans mais repetidos pelos comunistas é unidade, de modo análogo a como, nas relações interespecíficas, um parasita defenderia a “unidade” com o seu organismo hospedeiro.

Mural de propaganda comunista dos anos 1960 na parede do Palácio da Cultura da República Democrática Alemã, em Dresden, Alemanha | Foto: Shutterstock

A estratégia da “Frente Única” (por vezes também chamada de “Frente Ampla”) começou a ser doutrinariamente formulada no 4º Congresso Mundial da Internacional Comunista, realizado em Moscou no período de 30 de novembro a 5 de dezembro de 1922. “Por frente única deve-se entender a unidade dos operários desejosos de lutar contra o capitalismo” — definia o texto final do evento. Essa unidade restringia-se ao escopo da “ação concreta”, não implicando qualquer “renúncia aos outros objetivos comunistas”. Daí que, na prática, os comunistas sempre concebessem a Frente Única como uma operação de fachada, destinada a ludibriar não comunistas (social-democratas, por exemplo) e até mesmo anticomunistas (liberais, preferivelmente), levando-os a colaborar com os objetivos estratégicos do Partido, a despeito de suas divergências ideológicas.

A nova tentativa de “carta aos brasileiros”, que já era obviamente fraudulenta em sua primeira versão, só durou até que, ressentidos e ousados, os bolcheviques do partido começassem a piar

Embora formulada claramente ali no 4º Congresso, a concepção particularmente bolchevique da Frente Única já surgira na mente de Vladimir Lenin desde, ao menos, 1899, um período de debates acalorados sobre a relação ideal dos marxistas russos para com seus aliados de ocasião contra o czarismo, notadamente os liberais, os anarquistas e os social-democratas. Numa carta endereçada ao então amigo menchevique Aleksandr Potresov, o jovem Lenin criticava o experiente camarada Pavel Axelrod, outro notório representante do menchevismo, por sua insistência em falar numa “aliança e cooperação” com a oposição democrática ao absolutismo. “Segundo penso” — escreveu Lenin —, “utilização é um termo muito mais correto e adequado do que aliança e cooperação”. Como resumiu Bertram D. Wolfe em Three Who Made a Revolution, uma biografia política de Lenin, Trotsky e Stalin: “Essa atitude para com os ‘aliados’ — a determinação de usá-los antes de lhes prestar apoio e aliança genuína — permaneceu a visão leninista característica por toda a sua vida. E hoje, como no passado, continua sendo um traço distintivo de toda frente única ou aliança na qual ingresse um partido comunista”.

Estátua de Vladimir Lenin na Praça Ala-Too, em Bishkek, Quirguistão | Foto: Shutterstock

Portanto, tendo sido a técnica longamente elaborada e sofisticada pelos comunistas, mestres na arte da mentira e da dissimulação, pode-se até desculpar liberais e social-democratas por terem caído no conto da Frente Única em contextos passados. Não é possível estender essa tolerância aos liberais e social-democratas brasileiros que aderiram tão singelamente à “frente ampla pela democracia e contra o fascismo” (leia-se “pró-Lula e contra Bolsonaro”). E não é possível perdoá-los porque, ao menos dessa vez, nossos representantes comunistas não mentiram e, ao contrário, anunciaram abertamente o que iriam fazer assim que seu objetivo imediato fosse atingido.

No dia 18 de outubro de 2022, por exemplo, discursando num palanque em Presidente Prudente (SP), Fernando Haddad, então candidato petista ao governo de São Paulo e atual ministro da Fazenda, reafirmou o propósito de relativizar a propriedade privada, um antigo desejo do Partido Socialista, consagrado, por exemplo, no famigerado 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), a carta bolivariana proposta pelo então presidente Lula em decreto de dezembro de 2009. “A maior parte das terras não cumpre a função social, e a lei diz que a terra tem de cumprir função social”, disse Haddad. E, pretendendo poupar os camaradas do MST e MTST do trabalho de ocupar terras e terrenos julgados (por eles mesmos) “improdutivos”, arrematou: “Nem precisa ocupar, é só me mandar uma carta dizendo onde é a terra que não cumpre a função social que nós vamos lá e desapropriamos”.

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Em relação à economia, durante o período eleitoral já estava perfeitamente claro que a propalada “aproximação ao centro” — consagrada pelo apoio de Henrique Meirelles, Armínio Fraga, Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha, entre outros — não passava de conversa para boi liberal dormir. A nova tentativa de “carta aos brasileiros”, que já era obviamente fraudulenta em sua primeira versão, só durou até que, ressentidos e ousados, os bolcheviques do partido começassem a piar. O primeiro passarinho vermelho foi o psolista Guilherme Boulos. Entrevistado no programa Roda Viva, o invasor profissional de propriedades explicou o papel figurativo de Geraldo Alckmin, candidato a vice-presidente na chapa socialista. “O Alckmin foi posto como expressão de uma frente democrática anti-Bolsonaro”, disse Boulos. “Em nenhum momento as ideias liberais foram incorporadas ao plano de governo”, Boulos avisou. Os liberais antibolsonaristas taparam os ouvidos.

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Também o admitiu um espécime mais graúdo da fauna vermelha, o companheiro José Dirceu. Em entrevista ao canal Opera Mundi, disse um dos chefes do Mensalão: “É natural que a campanha vá para o centro. Agora, Lula não admitiu nomear ministros nem assumir compromissos sobre manutenção do teto de gastos. Pelo contrário. Nas entrelinhas dos discursos dele, está claro que investimento em ciência, tecnologia, inovação e saúde não é gasto”. Novamente, o comunista anunciou a gastança voraz do Estado lulopetista. Mas os liberais antibolsonaristas acharam que o ex-agente do serviço secreto cubano estava só brincando.

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Lula e Zé Dirceu | Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação/PT

É por essas e outras, enfim, que não me comovem declarações como as de Armínio Fraga, apoiador de Lula na eleição, que hoje diz estar “com medo”. Menos ainda artigos como o que escreveu a jornalista Vera Magalhães rebatendo a fala do descondenado em chefe acerca da relatividade da democracia. Também entusiasta da “Frente Única” anti-Bolsonaro, a jornalista afirma que “eleito para assegurar a vigência da democracia no Brasil, Lula erra ao enaltecer Maduro e fazer vista grossa ao que acontece na Venezuela”. Eleito para assegurar a vigência da democracia no Brasil? Faltou combinar com os russos. E com os chineses. E com todo o Foro de São Paulo (entidade que, aliás, a mesma jornalista dizia não existir). Não, dona Vera Magalhães. O descondenado em chefe não foi proclamado pelo TSE para “assegurar a vigência da democracia no Brasil”, mas para reproduzir aqui a “democracia até demais” que sempre enxergou na Venezuela dos amigos e companheiros Chávez e Maduro, ou na Nicarágua de Daniel Ortega. Dessa vez, o homem não tem culpa por gente como você, Armínio Fraga, Paulo Coelho, Tarso Jereissati, Elena Landau e outros pretensos não comunistas ter caído mais uma vez na reedição da pegadinha do “Lulinha Paz e Amor”. Os comunistas do Partido até que foram conservadores, fiéis à sua própria tradição, fazendo aquilo que sempre fizeram, e preparando o palco para liberais e social-democratas desempenharem seu papel no teatrinho da Frente Única pela democracia. Papel que — bravo! — vocês desempenharam com maestria. Ao contrário desse choramingo canastrão de arrependido que ora encenam, digno de todas as nossas vaias.

Leia também “A agenda antinatalista e sua ideologia anti-humana”

14 comentários
  1. Florival Sousa
    Florival Sousa

    Surpreso. Sou assinante há algum tempo e, por uns seis meses, me desinteressei por ler notícias por me sentir enfadado, enjoado, decepcionado e desesperançoso com com os veículos de comunicação e seus ilustres jornalistas. Eis que me indagava, perplexo, se o que eu percebia como um assassinato da verdade era um erro de julgamento meu ou isso grassava impunemente pelo país. Desse colunista ainda não tinha lido nada. Agora me deparo com uma verdadeira aula, sensata, coligindo fatos, ponteando com maestria conclusões lógicas. Um primor. Pronto! Tornei-me, doravante um leitor de carteirinha.

  2. José Vieira Hermsdorf
    José Vieira Hermsdorf

    O Brasil não pode ficar à mercê de aproximadamente 10 homens que querem transformá-lo em um inferno. Uns gatos pingados do STF e governo se sobrepondo a mais de 600 ditos representantes dos mais 200.000.000 de brasileiros.

  3. Candido Andre Sampaio Toledo Cabral
    Candido Andre Sampaio Toledo Cabral

    Talvez, estes ”inocentes” apoiadores do Ladrão contra o Bolsonaro, são até piores que os reais comunistas.

  4. Antonio Almeida
    Antonio Almeida

    Brilhante. Eu sinto e penso exatamente o mesmo.

  5. Hans Herbert Laubmeyer Filho
    Hans Herbert Laubmeyer Filho

    Muito bom refrescar a memória dessa gente.

  6. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Não consigo ler esse cara. Seja claro, não teorize, ninguém aguenta essa profundeza de complexidade, seja objetivo, quer filosofar, se junte a Marilena Chaui, aquela que chama a classe média, a qual ela pertence, de terrorista, aquela idiota. Esse negócio de teorizar pra massagear o ego só interessa a si mesmo, o povo quer saber é de clareza

  7. Gilson Herz
    Gilson Herz

    Um bando de escrotos e energúmenos que foram usados como idiotas. Parabéns aos envolvidos. Estamos a caminho do caos e provavelmente uma guerra civil. Quem viver verá. O povo tem que começar a se armar, nem que for com armas clandestinas. Chegará o momento que teremos que defender nossas vidas e de nossas famílias, bem como, de nossas propriedades.

  8. Jorge Alberto de Oliveira Marum
    Jorge Alberto de Oliveira Marum

    Os famosos idiotas úteis

  9. Adolfo Calderan
    Adolfo Calderan

    Perfeito Gordon, gostei de todas as colocações sobre os tais sociais democratas – vera, arminio, etc
    Mas estes senhores e senhoras não são tão iluminados e cultos? Dormiram em berço exlpêndido pra não ter visto a atuação do Paulo Gudes e equipe fazendo o que fizeram na economia em prol do bem do país?
    E olha que pertencem à nata do saber, cada um em seu campo.
    Que vergonha para estes caras patriotas de araque.

  10. Carmen Fernandez Pardo
    Carmen Fernandez Pardo

    Agora todos saem do País e nós ficamos aqui esperando nosso Brasil virar Venezuela, o William Bonner já começou 🤢🤢🤢🤢🤢

  11. Luiz Pereira De Castro Junior
    Luiz Pereira De Castro Junior

    Ótimo artigo !

  12. Otacílio Cordeiro Da Silva
    Otacílio Cordeiro Da Silva

    Não há o que desculpar, Sr. Gordon. Qualquer coisa que venha de comunistas, seja frente única, frente ampla, doce de leite, café de rapadura, nada presta. Eu entendi isso já faz cinquenta anos. Nossos ilustres representantes só foram entender isso agora? Tarde demais.

  13. maisvalia
    maisvalia

    A realidade sempre bate à porta, até dos vendilhões

  14. Agnelo A. Borghi
    Agnelo A. Borghi

    Gordon, como sempre, brilhante.

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