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Cartaz do filme Som da Liberdade | Foto: Montagem Revista Oeste/Divulgação
Edição 184

A politização de um drama real

Som da Liberdade, filme sobre tráfico sexual infantil, gera dupla revolta: no público, pelos crimes que denuncia; na crítica, pelo simples fato de existir

Bruno Lemes
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O filme Som da Liberdade (Sound of Freedom, no original em inglês) estreou nos cinemas do Brasil na quinta-feira 21. Com direção e roteiro do mexicano Alejandro Monteverde, o longa-metragem conta com Jim Caviezel — que interpretou Jesus em A Paixão de Cristo (2004) — no papel principal, além de Mel Gibson, diretor desse mesmo filme, como um dos produtores executivos.

Por volta de “80% baseado em fatos” (nas palavras do diretor), o roteiro é inspirado na história vivida por Tim Ballard, que empresta seu nome ao personagem principal. Monteverde disse que até gostaria que houvesse mais ficção em seu filme, porém, o protagonista da vida real insistiu para que a maior parte das cenas retratasse fielmente o que e como tudo ocorreu.

De agente a ativista

Tim Ballard trabalhou na Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês) e também foi agente especial do Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês), ambos órgãos do governo dos Estados Unidos. Atuava no combate à exploração sexual infantil, mas, em determinado momento da carreira, esbarrou nos limites legais que impediam um agente norte-americano de agir além das fronteiras e, portanto, de sua jurisdição.

Tim Ballard, fundador e ex-CEO da Operation Underground Railroad, uma organização de combate ao tráfico sexual | Foto: Reprodução/Twitter

Decidiu, assim, abrir mão da carreira federal e fundar uma organização não governamental, a Operation Underground Railroad (OUR), em 2013. O nome faz referência à Underground Railroad (“Ferrovia Subterrânea”, em tradução livre), uma rede secreta de rotas e esconderijos que os escravos utilizavam no século 19 com o objetivo de fugir para outros estados norte-americanos (onde a escravidão tivesse sido abolida) e para o Canadá. A “Operação Ferrovia Subterrânea”, portanto, tem como objetivo libertar os escravos sexuais do século 21.

Virada de chave e jornada do herói

No filme, o trabalho de Tim Ballard no DHS é apresentado logo de cara: pegar pedófilos no flagra. Interceptando o computador de um colecionador compulsivo de pornografia infantil, a equipe prende o criminoso no ato, antes que faça o upload de inúmeros vídeos e fotos que registram abusos sexuais reais de crianças.

Missão cumprida, a equipe do DHS retorna para a base, quando um colega de Ballard, ainda perturbado com o vasto arquivo doentio encontrado na residência do pedófilo, questiona quantos ele já havia capturado ao longo dos anos. Com o daquela noite, são 288, calcula Ballard, de cabeça. E quantas crianças já resgatou? Dessa vez, Ballard fica reticente.

Esse episódio foi a gota d’água que levou o agente federal a questionar o seu propósito. Ainda que tirar abusadores de circulação previna que mais crianças sejam exploradas sexualmente, aquelas já raptadas teriam a sua infância roubada para sempre. Tem início, então, a jornada do herói de Som da Liberdade, que abandona uma carreira bem-sucedida para atuar, sem o suporte do governo, em uma missão aparentemente impossível: resgatar crianças vítimas de sequestro, tráfico e prostituição na Colômbia.

Cartaz do filme Som da Liberdade | Foto: Divulgação
Drama de ação, filme viveu seu próprio drama para ser lançado

Quem assiste a Som da Liberdade hoje pode não saber que o filme está pronto desde 2018, mas enfrentou seguidos percalços para chegar às telas de cinema. Inicialmente, seria distribuído pela 20th Century Fox. Em 2019, o estúdio foi comprado pela Disney, que engavetou Som da Liberdade e outros tantos projetos. Os produtores do filme conseguiram comprá-lo de volta e, neste ano, procuraram a Angel Studios (responsável pela renomada série da vida de Cristo, The Chosen) com uma proposta de distribuição, que foi aceita. A estreia nos cinemas norte-americanos aconteceu no emblemático Dia da Independência, 4 de julho.

Sucesso de bilheteria desde o lançamento, o público garantiu um “final feliz” para o drama percorrido pelo próprio filme até conseguir ver a luz dos projetores das salas de cinema. A crítica especializada, por sua vez, assumiu o papel de “vilão”; sem nuances, mas daquele tipo mais histérico dos filmes de super-herói.

Público aclamou, e crítica detonou

Miles Klee, da revista norte-americana Rolling Stone, por exemplo, definiu Som da Liberdade justamente assim: “um filme de super-herói”. O que poderia até ser um elogio, revela-se um ataque quando o crítico define seu público-alvo: “um filme de super-herói para pais com miolo mole”, ou “pais bitolados”, as duas traduções possíveis para a expressão “brainworms” (literalmente, “vermes cerebrais”). Uma ofensa, em ambos os casos.

No Brasil, a grande imprensa também teve sua cota de críticas agressivas e/ou debochadas. Inácio Araujo, da Folha de S.Paulo, definiu Som da Liberdade como um “comercial meloso contra a sordidez humana”. Na revista Veja, Kelly Miyashiro o viu como um dos fenômenos da “cultura pop que a extrema direita criou para chamar de sua”. Lá e cá, mesmo as análises que se pretendem mais moderadas, insistem na tese de que o longa promove “teorias da conspiração da extrema direita norte-americana”, e que seria isso o que o faz “o filme mais polêmico do ano”.

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Teoria da conspiração associa filme a teoria da conspiração

A celeuma em torno de um filme que poderia “unir os campos políticos” — tal era a expectativa do diretor — contra o tráfico e a escravização sexual infantis se deve, segundo os críticos, à sua ligação com a QAnon. Trata-se de uma suposta teoria da conspiração que alega existir uma grande rede internacional de tráfico sexual infantil, comandada e composta por “pedófilos, canibais e satanistas” que ocupam inúmeros e altos postos do governo e do mundo corporativo, além de astros de Hollywood e do showbiz.

Ainda de acordo com essa suposta teoria, o então presidente norte-americano Donald Trump teria combatido como pôde essa rede, sendo boicotado — até sua fatídica derrota nas eleições de 2020 — pelo deep state (literalmente, “Estado profundo”), uma estrutura obscura e complexa de poder que permeia instituições públicas e privadas nos Estados Unidos.

O filme, em si, não faz uma referência sequer à suposta rede monstruosa. Há uma única menção à prisão de CEOs e outros figurões pedófilos, em Bancoque, na Tailândia, por explorarem crianças sexualmente, às centenas. Também são apresentados os números enojantes do tráfico humano internacional, especialmente o sexual infantil. Mas ideologização e especulação teórica em torno desses crimes bárbaros, zero.

Bastou, no entanto, que o próprio Donald Trump elogiasse e promovesse o filme, a ponto de organizar uma sessão privada em seu clube, para a crítica ideologizar a obra, associando-a à QAnon. Elogios de Elon Musk também foram imperdoáveis. Provas cabais, na visão dos críticos, de que Som da Liberdade é uma peça de propaganda conspiracionista da “extrema direita”, termo este repetido à exaustão.

Foto: Patricia Hikari/Shutterstock
‘Salvador branco’ e moral cristã

Outros aspectos também incomodaram a crítica. As referências e inspirações cristãs do filme seriam outro pecado (!) cometido por Som da Liberdade, em uma época em que até histórias e personagens clássicos vêm sendo refeitos à imagem e semelhança de ideologias identitárias, ou seja, com base em sexo (“gênero”), raça, cor e sexualidade. Sob os aplausos da crítica especializada, no geral.

A mais clara dessas referências está no mote do filme (e do próprio ativismo do Tim Ballard da vida real): “Os filhos de Deus não estão à venda”. Em outro momento da história, tentando quebrar o gelo com uma vítima traumatizada, Tim se apresenta com a versão em espanhol de seu nome, Timoteo, para o hondurenho de 6 anos que havia acabado de resgatar. O menino se impressiona e mostra o pingente da correntinha que sua irmã, também raptada, lhe dera: de São Timóteo, discípulo de São Paulo. Os críticos forçaram, nessa feliz coincidência, um “messianismo” cristão e norte-americano do “salvador branco”.

Mocinhos e bandidos

A propósito de cor e raça, o desconforto com o “homem branco” no papel de herói e com “latinos selvagens” (sic) como antagonistas também se manifesta na porção histérica das críticas nacionais. Acusa-se até de “estereótipos racistas” o perfil dos criminosos e exércitos rebeldes da Amazônia colombiana, pelo erro fatal de terem traços latino-americanos típicos, ainda que eles tenham a mesmíssima aparência dos mocinhos que são seus conterrâneos. Por sua vez, os bandidos americanos devidamente estereotipados (pedófilos gordos, ou esquisitões e muito magros, bigodudos, sempre brancos) não atraíram a reação inflamada da crítica.

Contar histórias é essencial, não apenas para tocar o coração de indivíduos, mas para moldar o caráter de sociedades inteiras

Por essa postura, os julgamentos em cima dos aspectos mais técnicos do filme (como fotografia, atuação, enredo, entre outros), inclusive aqueles perfeitamente cabíveis, especialmente por causa das limitações típicas de um filme independente com baixo orçamento, acabaram ofuscados pela implicância e exasperação ideológicas. Passam mais impressão de picuinha, pirraça, que de rigor e olhar crítico.

Cena pós-créditos (sem spoilers)

Ao final, o “filme de super-herói”, a exemplo de muitos filmes de super-herói (sem aspas),  guarda uma cena pós-créditos. Ou melhor, uma mensagem. Jim Caviezel se apresenta não mais como personagem, mas como ator e defensor da causa de combate aos crimes sexuais contra crianças. Fala da importância de Som da Liberdade furar cada vez mais o bloqueio que enfrenta desde 2019, e diz como cada espectador pode ajudar, ali mesmo, da sala de cinema, a fazer o filme chegar a cada vez mais gente, doando ingressos. O herói, diz Caviezel, não é o personagem que ele representa, mas o casal de irmãos resgatados, representando os milhões de crianças vítimas do tráfico humano todos os anos em todo o mundo.

Ator norte-americano Jim Caviezel | Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Ainda no seu recado, o ator cita o cofundador da Apple, Steve Jobs, para quem “o contador de histórias é a pessoa mais poderosa do mundo”. Em suas entrevistas, o diretor Alejandro Monteverde também declara que nunca quis um filme documental. De fato, Som da Liberdade não é documentário, mas uma história. Uma ficção, ainda que se baseie e traga à luz histórias cruelmente reais. E contar histórias é essencial, não apenas para tocar o coração de indivíduos, mas para moldar o caráter de sociedades inteiras. O papel civilizacional da contação de histórias é antiquíssimo.

O direito de existir e de contar histórias

Em uma das análises na imprensa brasileira, deixa-se escapar o medo de que pessoas que não sejam de esquerda contem mais histórias. Diz a crítica, a respeito da tal cultura pop da direita: “É um fenômeno assustador, mas a bilheteria” de Som da Liberdade atesta “que a onda tem força — e, pior de tudo, que a polarização ideológica está longe do fim nos Estados Unidos”. No mundo ideal deles, não há polarização ideológica, porque não há polos: todos que têm o direito de se expressar pensam exatamente igual.

Leia também “Lavagem cerebral na sala de aula”

12 comentários
  1. Jenielson Sousa Lopes
    Jenielson Sousa Lopes

    Som da Liberdade

  2. Dalmacio Irapuan dos Santos
    Dalmacio Irapuan dos Santos

    Se um vivente critica um filme denúncia (ainda que ficcional) sobre o horrendo tráfico de crianças conjugado com a execrável pedofilia. O que pensar dessa pessoa? O quê??????

  3. João Paulo Sousa da Silva
    João Paulo Sousa da Silva

    Cara, quem critica um filme desses não é que não mereça sua audiência. É que não merece sequer seu respeito.

  4. carlos eduardo de souza norbert
    carlos eduardo de souza norbert

    Excelente matéria. Era um filme para unir os polos, mas polarizaram até esse filme. O que me causa asno é que tudo que a direita defende hoje é considerado de extrema direita. Creio eu que seja para tirar o foco da extrema esquerda que tomou o poder.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Essa esquerda é uma praga, eles inventam tudo pra justificar suas benesses e colocam ideologia à frente dos barbarismos. O ego desses diabos são inflados

  6. Adolfo Calderan
    Adolfo Calderan

    Assisti o filme e achei excelente e me tocou profundamente na hora, cheguei até a soltar umas lágrimas em ver tanta crueldade com inocentes tão pobres.
    Após ter assistido, faço divulgação todo santo dia, dizendo aos amigos que assistam o filme e falo de alguns sites – como a Brasil Paralelo – que estão dando ingresso grátis.
    Não usei tal ingresso, pois por pagar meia achei injusto usar tal tipo de oferta e assim deixar para quem de fato não tenha condições de pagar e assim assistir um filme tão esclarecedor.
    Parabéns à produção do filme

  7. Paulo Ferreira
    Paulo Ferreira

    É bom filme, sessão da tarde, apesar do tema terrível. O fato da esquerda e a inteligência woke ser contra, demonstra o nível que esse pessoal chegou. Pedofilia, sequestro e comércio de crianças pouco importam a eles. Tenho pena deles. Perderam a noção e o coração.

    1. Alcione Magalhães Ferreira
      Alcione Magalhães Ferreira

      Tô muito ansiosa para assistir.Moro em uma cidade pequena e estou aguardando chegar na Brasil Paralelo.Assim espero.

  8. Omar Fernandes Aly
    Omar Fernandes Aly

    Assisti ontem a esse ótimo filme. Nada tem de direita nem de esquerda. Fala de uma realidade sórdida através de uma história bem narrada. As abobrinhas que a “crítica de cinema especializada” tem dito a respeito desse filme diz muito mais de um fato real: a boa crítica de cinema acabou.

    1. Sandro Schasiepen
      Sandro Schasiepen

      Ainda não assisti. Vou assistir. O tema é de suma importância e deveria ser pauta para todos. Enquanto não lutarmos ferozmente, de corpo e alma contra estas atrocidades, não podemos nos considerar humanos.
      E sim, quem é contra esta pauta fala muito sobre si mesmo e sua alma podre.

  9. Paulo Miranda
    Paulo Miranda

    Assisti ao filme sábado passado à noite, a sala de cinema estava LOTADA!!!… Durante os créditos finais do filme, aparece o vídeo de Jim Caviezel e, após o término da mensagem de Jim, todos os presentes no cinema aplaudiram! 😀

  10. Lucas Cezar Parnoff
    Lucas Cezar Parnoff

    Assisti nesta terça feira e se conseguisse dar nota, a minha seria nota máxima, 10/10 ou 5 estrelas. Faz muito tempo que não vejo um filme deste nível de engajamento, pois ultimamente é complicado achar algum filme bom para assistir no cinema, é muito mais fácil no streaming especialmente da BP. Link disponibilizado no final do filme: angel.com/liberdade

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