Pular para o conteúdo
publicidade
Ilustração: Revista Oeste/Midjourney
Edição 186

As políticas sociais progressistas

Esses ungidos acreditam possuir as ferramentas, o conhecimento e a inteligência para implantar soluções altamente eficientes para os problemas da sociedade

Roberto Motta
-

“Engenharia social” é a disposição demonstrada por intelectuais, políticos e juristas de refazer a sociedade e reconstruir o ser humano a partir do zero. A engenharia social acredita que é possível reformar completamente o mundo com base em critérios puramente racionais, ignorando os outros fatores que contribuíram para a formação de costumes, tradições e instituições.

Essa pretensão reformadora é chamada pelo economista e pensador austríaco Friedrich Hayek de “racionalismo construtivista”.

Os adeptos dessa visão de mundo enxergam a sociedade como um conjunto de problemas a serem resolvidos. Eles acreditam possuir as ferramentas, o conhecimento e a inteligência para implantar soluções altamente eficientes para esses problemas.

O racionalismo excessivamente iluminado dos ungidos os leva a divergir do senso comum e dos padrões morais. Thomas Sowell diz que os ungidos enxergam um “problema social” sempre que a realidade teima em ser diferente de suas ideias

Eles são os que Thomas Sowell chama de “ungidos”: funcionários graduados do Estado ou ativistas sociais — ou as duas coisas ao mesmo tempo — em geral graduados em Direito que, sentados em confortáveis poltronas de couro em gabinetes refrigerados, chamam a si a responsabilidade de decidir como devem viver, amar, trabalhar e se expressar milhões de pessoas. 

Livro Os Ungidos, de Thomas Sowell | Foto: Divulgação

É a visão dos ungidos que está por trás das crescentes restrições ao trabalho policial e da leniência cada vez maior com os criminosos. É desse racionalismo construtivista a responsabilidade pelo dilúvio de decisões judiciais que viram pelo avesso a jurisprudência e o entendimento de questões como a liberdade de expressão, o direito à propriedade, a descriminalização (ou “regulamentação”) das drogas e a legalização do aborto.

O racionalismo excessivamente iluminado dos ungidos os leva a divergir do senso comum e dos padrões morais. Thomas Sowell diz que os ungidos enxergam um “problema social” sempre que a realidade teima em ser diferente de suas ideias. Na verdade, o que os ungidos enxergam como um problema é, muitas vezes, a melhor resposta que a sociedade encontrou para uma determinada questão.

Os ungidos também têm dificuldade de entender — ou de aceitar — que alguns “problemas sociais” não têm solução. Não existe solução para o “problema do crime”, por exemplo. Crime sempre existiu, em todos os países e em todas as épocas. Nenhuma solução que possa ser concebida pela humanidade vai impedir que alguns indivíduos tomem a decisão de agredir, roubar ou matar.

Crime sempre existiu, em todos os países e em todas as épocas | Foto: Shutterstock

Na ânsia de moldar o mundo de acordo com sua visão, os ungidos aliviam as penas dos criminosos e soltam o máximo de bandidos condenados o mais cedo possível, invertendo completamente a relação de causa e efeito da Justiça criminal e destruindo o único elemento comprovadamente eficaz na redução da criminalidade: uma punição certa e severa.

Mas nada diminui a ânsia reformadora dos iluminados, que precisam construir um homem novo, purificado de tudo o que eles consideram equivocado.

Os ungidos ignoram um aspecto fundamental da realidade: a maioria das instituições e relações sociais não é fruto de um projeto deliberado. Ao contrário, instituições, relações e regras sociais surgiram espontaneamente, como resultado da interação entre seres humanos, ao longo de milhões de anos de tentativa e erro.

Uma instituição como a família não foi criada no gabinete de nenhum legislador ou jurista, da mesma forma que o amor paterno não é produto da reflexão de nenhum filósofo. Quando a humanidade proibiu as drogas, ela não fez isso motivada pela lição de um intelectual. Ela fez isso porque compreendeu que o resultado do uso das drogas é vício, degradação, crime, pobreza e morte.

Os principais mecanismos de funcionamento da sociedade e da civilização são resultado do que Hayek chamou de “ordem espontânea”.

Como diz Mario Vargas Llosa, no livro O Chamado da Tribo:

“Típicos exemplos dessas ‘ordens espontâneas’ são a linguagem, a propriedade privada, a moeda, o comércio e o mercado. Nenhuma dessas instituições foi inventada por uma pessoa, comunidade ou cultura singular. Foram surgindo de maneira natural, em lugares diferentes, como consequência de determinadas condições às quais a comunidade respondeu criativamente, seguindo mais uma intuição ou um instinto que um raciocínio intelectual, e, depois, a experiência vivida foi legitimando, modificando ou eliminando e substituindo por outra diferente.”

Livro O Chamado da Tribo, de Mario Vargas Llosa | Foto: Divulgação

A equivocada pretensão de redesenhar a sociedade e suas relações a partir do zero — muito bem caracterizada por alguns críticos como uma vontade de ser Deus — é equivocadamente respaldada por operadores do Direito que defendem que a ordem jurídica, em vez de simplesmente formalizar na lei instituições e relações surgidas espontaneamente, tem o poder — e o dever — de redesenhar essas relações em busca de uma hipotética racionalidade, e de uma indefinida e objetivamente inalcançável “justiça social”.

Isso significa aprovar leis — ou, quando isso não é possível, legislar através de decisões judiciais — com o objetivo de implantar uma ordem racional imaginária e desejada, ainda que esse desejo esteja apenas na cabeça de meia dúzia de ativistas e contrarie não apenas hábitos e costumes consolidados, mas também o desejo e o senso moral do homem comum.

No racionalismo construtivista não cabem os desejos nem a moral do homem comum. Ao cidadão sem poder resta apenas a obrigação de aceitar e obedecer ao racionalismo dos iluminados que, sempre — é claro —, querem o nosso bem.

Quanto a isso, fica o alerta de Hayek, publicado na obra Direito, Legislação e Liberdade:

“É necessário dar-se conta de que grande parte dos agentes mais prejudiciais deste mundo não costumam ser homens maus, e sim idealistas magnânimos, e que, em particular, as bases da barbárie totalitária foram estabelecidas por pensadores respeitáveis e bem-intencionados que nunca reconheceram o fruto que geraram.

O fato é que, em especial no campo jurídico, certos pressupostos filosóficos norteadores provocaram uma situação em que teóricos bem-intencionados, bastante admirados até hoje, mesmo em países livres, já elaboraram todos os conceitos básicos de uma ordem totalitária.

Na verdade, os comunistas, não menos que os fascistas ou os nacional-socialistas, simplesmente utilizaram os conceitos fornecidos por gerações de teóricos de Direito para chegar às suas doutrinas.”

Livro Direito, Legislação e Liberdade, de Friedrich Hayek | Foto: Divulgação

Leia também “A destruição de um homem bom”

7 comentários
  1. Alexandre paixão
    Alexandre paixão

    A palavra convence, o exemplo arrasta (tão antigo que é atribuído a Confúcio). A esquerda tem muito discurso, mas nenhum exemplo, e suas palavras só têm eco em sua reduzida (mas barulhenta) militância.

  2. Carlos Oswaldo Bevilacqua
    Carlos Oswaldo Bevilacqua

    Os que se autodenominam “progressistas” tem uma visão autoritária e radical de mundo, obtusa, dissolvente. Inadmitem ser contestados sobre seu pensamento único, bitolado. Na realidade, suas práticas são retrógradas, ineficazes na busca do progresso. Basta conhecer o que, de fato, acontece em países que adotam ou adotaram tal engenharia social. Os que mais se desenvolveram, adotaram aberturas e práticas capitalistas, ainda que sob regime de partido único ditatorial, como China e Rússia. Os demais, arruinados, permanecem atrasados, dependentes, apesar da ajuda que recebem desses e dos demais países do mundo que os auxiliam. É bom notar que seus chamados líderes (governantes) são bilionários e, na maioria deles, ressalvadas as citadas exceções, impera a pobreza submissa. Assim sendo, existem certas alternativas, opções ou escolhas, entre outras: 1. Viver no mundo livre de ditaduras. 2. Viver submisso sob regimes ditatoriais.

  3. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Os engenheiros dessa engenharia social são engenheiros dos hamas

  4. Omar Fernandes Aly
    Omar Fernandes Aly

    Brilhante Roberto Motta sempre! Embasado em conhecimento que não é o da alta burocracia dos ungidos que nunca saíram de seus gabinetes luxuosos para um passeio lá fora.. e o pior o Brasil é o mundo está cheio deles, nos dois sentidos da palavra “cheio”.

  5. MNJM
    MNJM

    Dispensa maiores comentários. Texto brilhante.

  6. ROBERTO MIGUEL
    ROBERTO MIGUEL

    esse “ungidos” sempre estão em seus casulos, muito bem segregados da sociedade que normalmente os sustenta, imaginando que todos deveriam ser sanguessugas como eles, felizmente isso não é possível.

  7. JOSE RODORVAL RAMALHO
    JOSE RODORVAL RAMALHO

    Melhor síntese que já li sobre o construtivismo racionalista. Esse, é pra ser discutido em sala de aula.
    Que privilégio ser assinante da Oeste!

Anterior:
El Salvador: tolerância zero com o crime organizado
Próximo:
Há cem anos, um menino travesso quase secou o Rio Amazonas
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.