Para a maioria das pessoas, a palavra “cristal” tem um sentido precioso. De algo delicado, de valor. Uma das coisas que Margot Bina Rotstein mais gostaria, aos 91 anos, seria conceber tal palavra dessa maneira. Mas ela não consegue. “Eu queria que fosse diferente, mas, para mim, ‘cristal’ significa ‘medo’.”
Ela nunca se esquece da cena que marcou sua vida. Aos seis anos, se viu desviando dos vidros estilhaçados no chão e respirando assustada a fumaça que saía das labaredas de fogo na Rua Neuer Konig, em Berlim. Ela e a mãe deixaram o apartamento, em um prédio cinzento, arriscando-se atrás de informações.
Queriam saber como estava seu pai, depois de parte da população alemã ter realizado saques e quebrado todos os estabelecimentos judaicos no país. Sinagogas, lojas e residências de judeus foram invadidas; e seus pertences, destruídos. O pogrom (termo russo para ataque violento) também ocorreu na Áustria. Nos dois países, pelo menos mil judeus foram mortos.
O termo “Noite dos Cristais” poderia ser o título de um filme romântico. Porém, passou a ser a denominação daquele 9 de novembro de 1938, considerado o precursor do Holocausto nazista, que se iniciou no ano seguinte, com a Segunda Guerra Mundial. E que matou cerca de 6 milhões de judeus, entre outros milhares de mortos.
O pai de Margot, Leon Chmielik, era polonês. Por isso, Margot também era polonesa, mesmo tendo nascido em solo alemão. “Naquela época, na Alemanha, a nacionalidade do filho era a mesma do pai.”
Durante os ataques, Leon havia se escondido no apartamento da tia, depois de a família ter sido avisada de que os oficiais nazistas estavam indo de prédio em prédio, só para prender judeus. “Eles eram tão organizados na perseguição, que na Alemanha inteira havia listas de onde morava cada judeu”, relata. “Meu pai saiu a tempo de chegarem e perguntarem por ele.”
Ao olhar para trás, ela diz que aprendeu cedo a lutar pela sobrevivência. “Lembro do terror da perseguição, dos cacos no chão e das fogueiras”, conta Margot, em seu apartamento num prédio simples, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Na decoração, o que se destaca são os quadros com temas judaicos. “Meus pais sempre seguiram o judaísmo, mesmo depois que saímos da Alemanha. Foi esse o sentido de toda a nossa trajetória e busca da sobrevivência”, conta.
A ação nazista foi uma represália ao assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por um jovem judeu polonês, Herschel Grynszpan, expulso da Alemanha com a família, em 1938. Em 7 de novembro, o diplomata foi baleado na embaixada alemã e morreu dois dias depois. Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda da Alemanha, culpou todos os judeus e instigou, em declaração, os saques.
“A perseguição já existia”, conta Margot, “Uma das cenas que lembro é de quando meu pai foi me levar para a escola, eu estava toda feliz. Na portaria, não pude entrar, porque não aceitavam mais judeus.”
Sinais anteriores
Ao escapar das perseguições na Polônia, onde nasceu, Leon havia ido para a Alemanha anos antes, com a esperança de respirar ares mais tolerantes. Comunicativo e bem relacionado, abriu um comércio e se casou com Elza, nascida no país.
Mas logo a ascensão nazista, que teve início em 1932, mesmo ano em que Margot nasceu, mostrou que a tentativa dele havia sido inútil. Aos poucos, foi retomada a rotina de perseguição.
“Meu pai, até certo momento, tinha uma vida normal, sabia fazer amigos, trabalhava com comércio.” Margot, no entanto, conta que alguns sinais começaram a deixá-lo preocupado. “Com a chegada dos nazistas, as coisas começaram a piorar”, afirma. “Sabiam que ele era judeu e começaram a persegui-lo. Várias vezes teve de fugir da Gestapo [polícia alemã]. Ele tinha uma propriedade e a perdeu, por ser judeu.”
Auxiliada por uma associação judaica, a família conseguiu driblar a vigilância na fronteira e ir para a França. No trem, ainda passaram um susto. Soldados alemães retiraram todos os homens para fazer uma triagem
A “Noite dos Cristais”, que ficou assim conhecida por causa dos estilhaços de vidro no chão, foi consequência de tudo isso. “O clima estava pesado, minha infância foi triste”, diz a mulher, que hoje é um símbolo de resistência e participa de palestras no mundo inteiro para contar sua história e conscientizar as pessoas sobre os perigos da intolerância.
“Só não sabíamos o que iria acontecer. Não esperávamos aquela quebradeira. Quando isso ocorreu, meus pais decidiram sair da Alemanha.” Margot e a mãe ainda foram para a Polônia, conferir se havia condição de se transferirem para lá. “Conheci meus familiares por parte de pai, mas a perseguição lá estava muito forte também.”
Auxiliada por uma associação judaica, a família conseguiu driblar a vigilância na fronteira e ir para a França. No trem, ainda passaram um susto. Soldados alemães retiraram todos os homens para fazer uma triagem. “Levaram muitos deles, mas deixaram outros voltar, inclusive meu pai. Foi por sorte.”
Viajaram de navio, desde o Porto de Marselha. “Fomos com a roupa do corpo”, lembra. “Entramos em um navio italiano sem saber o destino, queríamos sair da Europa.” Eles deixaram o continente antes da guerra. “Meu pai percebeu que as coisas iam piorar e teve condições de nos fazer sair antes, mas o que veio depois [com os judeus que ficaram] não me trouxe alívio.”
Da Bolívia ao Brasil
A associação tentou colocá-los no Brasil, mas o governo não lhes concedeu o visto. Era o início de 1939. O Brasil vivia o período do Estado Novo, ditadura instaurada por Getúlio Vargas entre 1937 e 1945. O regime, conhecido como Terceira República, flertava com ideias fascistas e nazistas.
Vargas implantou uma Constituição baseada em alguns desses conceitos, que ficou conhecida como “Polaca”, inspirada nas leis da antissemita Polônia e da Itália. O Paraguai também não os recebeu. A alternativa mais viável foi a Bolívia, único país que permitiu a entrada da família judia.
“Foi uma aventura cansativa”, afirma. “De trem, atravessamos a Cordilheira dos Andes e chegamos à Bolívia. Era um país muito pobre mesmo, mas eu tiro o chapéu. Fomos muito bem recebidos e passamos anos de tranquilidade por lá.”
Leon já havia se estabelecido no comércio de La Paz, mas queria um mercado maior. Foi quando conseguiram se mudar para o Brasil. O Estado Novo havia chegado ao fim. Israel conquistou sua Independência em 1948, com a participação do Brasil na Assembleia que determinou a partilha da Palestina, no ano anterior.
Para facilitar ainda mais, no fim da Segunda Guerra, Vargas passou a apoiar os aliados contra o eixo da Alemanha. As portas para os judeus estavam abertas no Brasil. Novamente de trem, por Corumbá (MS), Margot e os pais chegaram à Estação da Luz, em São Paulo, em 1948. Margot tinha 17 anos.
Leon, sempre com tino comercial, logo abriu um comércio na capital. A família foi morar em Higienópolis. Margot queria ser médica, mas o pai preferiu que ela não estudasse, por considerar que a filha única já estava com uma idade avançada.
“Era assim naquela época, fazer o quê?” Restou a ela trabalhar com o pai na loja de roupas Recortex, com a matriz na Rua Santa Ifigênia e uma filial na Liberdade, exatamente onde hoje está a estação do metrô.
Casamento e filhos
A comunidade judaica se tornou um alicerce para a jovem. Na convivência social, conheceu Ignácio, com quem se casou em 26 de junho de 1954, quando tinha 22 anos.
O casal teve três filhos: Lola, de 68 anos, Alberto, de 65, e Sílvia, de 61 — que mora em Israel. Os netos são quatro.
O casamento com Ignácio durou 54 anos, até a morte dele. E a menina assustada daquela noite em Berlim viveu os melhores anos de sua vida. “Ele era um homem bom, maravilhoso”, conta, mostrando pela primeira vez uma emoção que não deixa transparecer em outros assuntos. “Íamos a peças de teatro, cinema, apresentações de música clássica, de que gosto muito. Até a luta assistimos”, diz, com um sorriso no rosto. “Também gostava muito de ver jogos. Vi o Pelé dar três cambalhotas contra o Corinthians, no Pacaembu. Hoje o time está uma tristeza.”
Os últimos ataques terroristas do Hamas a Israel, em 7 de outubro, fizeram Margot reviver com mais intensidade aquele drama antissemita de 85 anos atrás. “Foi como se eu estivesse vivendo aquilo de novo. Precisamos nos conscientizar dos perigos do antissemitismo”, desabafa. “Fico triste pelo que as crianças estão passando hoje. A diferença é que temos Israel para nos proteger, e naquela época quase nenhum país nos acolheu.”
Se os bons momentos que teve compensaram aquela noite? Ela ouve a pergunta, pensa um pouco e diz: “Em parte, sim”. Em seguida, olha para baixo e completa: “Mas aquela lembrança é uma marca que não se apaga”.
Leia também “A nação da solidariedade”
Muito triste ver a praga do anti-semitismo brotando outra vez! Suas raizes talvez não tenham sido totalmente extirpadas, talvez a história tenha se apagado com o tempo ou talvez o ser humano, imperfeito, precise de algo ou alguém para culpar, DEVERIA SER MATÉRIA OBRIGATÓRIA NAS ESCOLAS O ENSINO DA TRAGÉDIA DO HOLOCAUSTO! Quem sabe houvesse um pouco mais de respeito e tolerância pelos outros seres humanos, menos radicalismo.
Para quem não conhece, recomendo o filme “A lista do Shindler”.
Houve um diplomata japonês chamado Chineu Sugihara também, sitiado em 1940 em Lituânia que emitiu muitos vistos para que os judeus pudessem fazer trânsito no Japão para fugir para os EUA.
Doi na alma, ver estas fotos. Parabéns pela matéria. Devemos ler e reler até para nossos filhos e netos o Diário da Anne Frank.
Sobre este artigo tenho a comentar o que segue:
“Eles eram tão organizados na perseguição, que na Alemanha inteira havia listas de onde morava cada judeu.”
Esta frase confirma o relato que Edwin Black escreveu em seu livro “IBM e o Holocausto”.
Sobre o assassinato do diplomata Ernst vom Rath: ele era, na realidade, o terceiro secretário da embaixada alemã em Paris; não simpatizante do regime nazista, pelo contrário.
Herschel Grynszpan foi capturado e entregue, aos alemães, pelo governo da França de Vichy e enviado ao campo de concentração de Sachsenhausen em Oranienburg, Alemanha, onde veio a “falecer” em 1944.