O famoso editor britânico Herbert Jonathan Cape (1879-1960) costumava dizer que existem apenas duas coisas que uma pessoa precisa saber sobre publicações — pelo menos no Reino Unido. A primeira é que livros sobre Nelson Mandela nunca dão prejuízo; a segunda é que livros sobre a África do Sul nunca dão lucro.
O jornalista e aventureiro escocês Robert Bontine Cunninghame Graham (1852-1936), conhecido à sua época como Don Roberto, parece concordar com a segunda premissa de Cape. No prefácio de seu livro A Brazilian Mystic: The Life and Miracles of Antônio Conselheiro, publicado em 1920, ele afirma que sua obra logo chegaria aos sebos para ser vendida por quase nada por “se tratar de um povo não familiar e de uma vida desconhecida [para o público em geral]”. Em outras palavras, as pessoas querem ler ou ouvir apenas sobre o que já é familiar para elas e não querem que seu equilíbrio mental seja perturbado por novos conhecimentos ou novas ideias.
Não estou certo de que essa tese seja verdade. Às vezes, concordo com ela; às vezes, não. Meu exemplar pessoal do livro de Cunninghame Graham é da segunda edição. Foi impresso em maio de 1920, supostamente depois que a primeira impressão, de janeiro daquele ano, se esgotou, apesar do tema obscuro. É evidente que pelo menos algumas pessoas ficaram interessadas.
Mas muitas vezes me parece que, paradoxalmente, com a explosão de informação disponível ao apertar de uma tecla, a gama de interesses das pessoas se restringiu. É como se disparassem um mecanismo de defesa contra a sobrecarga de informações. Muitos anos atrás, eu costumava escrever para uma publicação semanal na Inglaterra conhecida pela qualidade de seus artigos e pela abrangência de sua cobertura do mundo. Naqueles dias, eu viajava para um país muito remoto e, quando voltava, perguntava ao editor se ele gostaria de um artigo sobre o lugar. “Sim”, ele respondia. “Porque ninguém sabe nada sobre esse país.”
Hoje em dia, minha proposta seria recusada, e exatamente pelo mesmo motivo: por ninguém saber nada sobre o tal país. A implicação, claro, é que ninguém se interessaria por algo que já não conhece.
Estranhamente, o livro de Cunninghame Graham, que obviamente se baseia muito em Os Sertões, encontra mais ressonância hoje do que quando foi publicado. Cunninghame Graham foi uma figura muito interessante, descendente da aristocracia escocesa. Ele combinava um apego romantizado pelos modos de vida pré-industriais com uma tendência ao socialismo doutrinário — discursou em certa ocasião no mesmo evento que contava com a participação de Friedrich Engels. Cunninghame Graham era um tipo familiar, a pessoa de classe alta que queria destruir a sociedade que garantiu os privilégios que lhe permitiram viver uma vida incrivelmente livre e aventureira, e se certificar de que ninguém mais tivesse essa oportunidade. Seu lema, aliás, poderia ter sido après moi, le déluge.
Sempre houve um ar de charlatanismo exibicionista nele, apesar de sua constante adoção de boas causas, muitas delas indubitavelmente boas. Sua esposa, Gabrielle de la Balmondière, afirmava ser filha de uma espanhola e de um intelectual francês que viveram no Chile. Na verdade, ela era filha de uma dona de casa britânica e de um cirurgião de Yorkshire, no norte da Inglaterra, e seu verdadeiro nome era Caroline Horsfall.
Aos 17 anos, Cunninghame Graham tinha fugido da Grã-Bretanha para a América do Sul para viver como gaúcho. Voltou a viver na Inglaterra e escreveu livros sobre as reducciones jesuítas no Paraguai e sobre Francisco Solano López, o presidente que levou seu país à completa destruição na Guerra do Paraguai. E, como já mencionado, também escreveu sobre Antônio Conselheiro.
Por que a história de Conselheiro tem mais ressonância agora do que quando foi publicada? Há muito se supõe na Europa que a religião é mero atavismo cultural, um resquício do passado intelectualmente primitivo. É por isso que toda menção a uma herança cristã é rigorosamente excluída dos documentos da União Europeia. Essa herança não é tão renegada quanto ativamente odiada, como um lembrete do domínio da irracionalidade sobre a mente da população — a França é um país em que o anticlericalismo prospera, ainda que não exista um clericalismo ao qual se opor. Ela vem do desdém com que a religião é considerada: como uma força a não ser levada a sério — depois de milênios de infantilidade humana, estaríamos supostamente “livres” da influência da religião. Nós crescemos. Portanto, quando Stálin perguntou com desprezo “Quantas divisões tem o papa?”, na essência ele estava correto sobre o equilíbrio de forças no mundo real.
Assim, a história de Conselheiro é quando muito um episódio bizarro, ainda que interessante, da infância da humanidade, além de ser um episódio que ocorreu no sertão, tão afastado do vibrante centro da civilização, a Europa. O povo primitivo, com seus valores sertanejos antiquados, a quem Conselheiro liderou primeiro a vitórias, mas finalmente para a morte, tudo em uma esperança milenar intelectualmente absurda, não deve ser encontrado no mundo moderno, com seus avanços técnicos e materialismo filosófico lúcido.
Mas de repente nós na Europa fomos forçados a reconhecer o retorno da escatologia religiosa como uma verdadeira força no mundo — ou seja, um retorno, como se ela tivesse desaparecido. Os muçulmanos são os seguidores de Conselheiro em maior escala. Eles também rejeitam a intromissão do mundo moderno, que oferece as perdas sem os ganhos do progresso, assim como os seguidores de Conselheiro.
Claro, nenhuma analogia histórica é exata, e é por isso que são analogias, e não repetições. Mas assim como as forças enviadas para aniquilar Conselheiro e seu pequeno Sião no sertão subestimaram quem estavam enfrentando, seria fácil menosprezar o islamismo como uma força apenas por ser retrógrado intelectualmente, ineficaz e até ridículo: muitas pessoas bem formadas aderem a ele — uma diferença dos seguidores de Antônio Conselheiro.
Ideias controlam o mundo, como afirmou o economista John Maynard Keynes. Mas Keynes também sabia que não não precisam ser boas ideias — aliás, podem ser ideias muito ruins. A esperança, escreveu Alexander Pope, o grande poeta inglês, brota do peito humano. Mas, afirmo eu, a desilusão também.
Leia também “Estado laico, sim. Mas não antirreligioso”
Theodore Dalrymple é o pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels. Daniels é autor de mais de trinta livros sobre os mais diversos temas. Entre seus clássicos (publicados no Brasil pela editora É Realizações), estão A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou O Que Restou Dela e A Faca Entrou. É um nome de destaque global do pensamento conservador contemporâneo. Colabora com frequência para reconhecidos veículos de imprensa, como The New Criterion, The Spectator e City Journal.
Um dos motivos, talvez o maior, que me levou a assinar a Revista Oeste: o prazer de ler aqui, neste espaço,Theodore Darylmple. Obrigada, Revista.
Ótimo texto.
Parece-me que os valores conservadores são simples, naturais e orgânicos. Além disso, são mais próximos da obra de Cristo (talvez por isso o menosprezo e perseguição da esquerda/comunistas ao cristianismo). Os valores desse globalismo esquerdista dependem de vultuosos recursos de origem pública para propaganda e para se manter a força na sociedade. Se o dinheiro do Estado/origem pública acaba, não fica de pé um mandato presidencial. Será, portanto, artificial.
Otimo texto, como de costume. Pena que o jornalismo da Oeste não seja impresso.
Certa vez, em uma sala de aula, o professor falava sobre a criação divina do homem. Um aluno se interpôs e retrucou: “Mas professor, lá em casa meu pai diz que nós somos descendentes do macaco’. Ao que o professor completou: “Meu amigo, em assuntos de família eu não me meto”.
Ótimo escritor, bom texto. O autor tem artigos relevantes sobre temas de impacto, especialmente me impressionou o livro “Our culture – What’s left of it” e, nele, os capítulos “Don’t legalise drugs” e “When Islam breaks down”. Parabéns à revista por ter este e outros tão bons colaboradores nos seu quadro!
Excelente artigo.
Gostei bastante do artigo.
Grande escritor, uma grata surpresa ao vê-lo redigindo um texto para revista oeste. Se me permitem um ajuste, por favor não esqueçam de citar outro livro maravilhoso que ele escreveu: PODRES DE MIMADOS. Hoje uma das vozes mais lúcidas contra o sentimentalismo tóxico e sua patrulha do politicamente correto.
Dalrymple é sutil, mas impecável. De fato a França que já foi um dos países católicos da Europa, hoje não é só anticlerical. A islamização é um fato irreversível e com o apoio explícito do governo socialista, que autoriza em grande escala os cursos para a formação de imãs. A desculpa é a de sempre, de que esses “clérigos” são sempre moderados, como faz a Bélgica, de onde saíram mais de 300 jovens treinados em mesquitas para integrar o Estado Islâmico. Mas a penetração do islamismo é mais profunda e intensa nas universidades francesas não só por contágio mas por financiamentos polpudos dos Emirados. Em “Soumission” (Paris,2015), Michel Houellebeck descreve este fenômeno, dando-lhe contornos ficcionais, de que a Irmandade Mussulmana chega a ocupar o Eliseu, via universidade, mais precisamente la Sorbonne.