Na semana em que milhares de brasileiros foram às ruas para manifestar descontentamento com a atuação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), um texto de autoria do procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, doutor em Direito do Estado e professor de mestrado da Universidade Positivo, viralizou em grupos de WhatsApp. Trata-se de uma mensagem publicada originalmente em seu perfil no Facebook no dia 20 de maio (leia o texto no fim da entrevista), mas que parece escrita sob medida para um momento em que a mais alta instância do Judiciário brasileiro não encontra limites em uma perigosa marcha sobre os direitos individuais, a liberdade de expressão e outras garantias constitucionais.
Nas últimas semanas, o ministro Alexandre de Moraes, relator do controverso inquérito das chamadas fake news, expediu mandados de prisão e de busca e apreensão contra jornalistas, ativistas e lideranças de movimentos que foram às ruas no 7 de Setembro — sob o argumento de que teriam feito ameaças aos ministros da Corte ou incitado ataques contra as instituições democráticas —, além de determinar a suspensão de canais de comunicação de apoiadores do governo do presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais.
A reportagem de Oeste conversou com Chemim, que apontou o “descompasso” do STF no cumprimento do texto constitucional e classificou como “absurdo” o inquérito no qual se basearam as medidas tomadas por Moraes nos últimos dias. “Ainda que o regimento interno do Supremo autorize, esse tipo de inquérito tinha de ser considerado inconstitucional”, afirma. “Juridicamente, não tem como salvar o que estão fazendo. É claro que o Supremo está atuando em um contexto mais político do que jurídico.”
Na entrevista, o procurador admite que a imagem do STF está “arranhada”, o que deveria levar os 11 ministros da Corte a fazer uma necessária “autocrítica”. Para Chemim, o tribunal tem um poder “muito amplo”, mas não consegue se concentrar nas verdadeiras atribuições de uma Corte constitucional. “Qualquer coisa pode chegar ao Supremo, desde quem foi o campeão brasileiro de futebol de 1987 até se um ato do Poder Executivo é válido ou não. Eles decidem até quando começa a vida.”
Leia os principais trechos da entrevista.
Seu texto que viralizou no WhatsApp aponta uma série de decisões heterodoxas tomadas por ministros do STF. Qual foi sua motivação ao escrever a mensagem?
Dou aula de Processo Penal. Na medida em que as aulas avançam, vou chegando às matérias que coincidem com as notícias da semana. Não me lembro exatamente qual foi a notícia, mas era mais uma que revelava o descompasso do Supremo Tribunal Federal em relação à forma de interpretar determinadas questões, principalmente envolvendo a maneira de investigar e a competência originária do Supremo. Há uma série de coisas que fica difícil de explicar aos alunos. Você fala uma coisa, só que o Supremo faz diferente. Foi uma tentativa de desopilar o fígado e tentar organizar os assuntos na minha cabeça, para depois explicar aos alunos esse descompasso que existe entre o que o juiz pode fazer e o que o Supremo está fazendo.
Qual é sua avaliação sobre o inquérito das fake news, aberto de ofício pelo ministro Dias Toffoli e cujo relator no STF é Alexandre de Moraes?
Ainda que o regimento interno do Supremo autorize, esse tipo de inquérito tinha de ser considerado inconstitucional. Desde a Constituição de 1988, há um consenso na academia jurídica de que juiz não pode investigar crimes. Esse consenso vai até um ponto. Quando chega ao Supremo, eles dizem: ‘Não pode, menos no meu caso; eu posso’. Atuam como se fossem uma ilha de interpretação em relação ao resto do Direito brasileiro. A instauração do inquérito em si, por um juiz, já é um problema. É privativa a ação penal pelo Ministério Público. Não estou dizendo que os crimes não foram praticados. A liberdade de expressão tem limites, que foram ultrapassados em várias ocasiões. Mas eles deveriam, de forma legítima, ter apresentado uma notícia-crime à Polícia Federal ou ao procurador da República, em primeiro grau. Juridicamente, não tem como salvar o que estão fazendo. É claro que o Supremo está atuando em um contexto mais político do que jurídico. Agora, isso tem um preço: o preço da desorganização na interpretação dessas questões todas.
Como o senhor avalia as prisões do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) e do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) depois que fizeram críticas a ministros da Corte? No caso de Jefferson, a prisão foi decretada pelo ministro Alexandre de Moraes antes mesmo da manifestação da PGR, que foi contrária à detenção.
Avalio da mesma forma que avaliei quando foi preso o Delcídio do Amaral [então senador pelo PT do Mato Grosso do Sul e líder do governo no Senado, detido pela Polícia Federal em novembro de 2015, no exercício do mandato, por determinação do ministro Teori Zavascki, do STF]. Ali já fizeram errado. Usaram de retórica para alargar o que diz a Constituição e o que sempre se entendeu da ideia de crime inafiançável. Os parlamentares do Congresso Nacional só podem ser presos em situação de flagrante crime inafiançável. Tecnicamente, é um conceito bem restrito. Tem meia dúzia de crimes que são inafiançáveis. O Supremo realizou uma leitura alargada para fazer, retoricamente, um jogo de palavras e dizer que, quando cabe prisão preventiva, não cabe fiança — logo, seria crime inafiançável [segundo esse entendimento, Delcídio integrava uma organização criminosa, o que seria um crime permanente, em contínuo estado de flagrância]. Com isso, é possível legitimar uma série de coisas que não são adequadas. No caso do Roberto Jefferson, nem parlamentar ele é. Aí fica mais estranho ainda. Ele não tem foro por prerrogativa de função, e vem o Supremo e decreta a prisão. O argumento me parece também um pouco forçado, de que ele integra uma organização criminosa e talvez tenha lá alguém com prerrogativa de foro, e isso poderia puxar para a competência do Supremo.
“O problema é quando se transforma a maneira de interpretar a Constituição, para fazer valer a sua opinião pessoal”
Aproveitando o exemplo da prisão do ex-senador Delcídio do Amaral: o senhor aponta uma confusão em decisões do STF a respeito de crime permanente e crime instantâneo de efeitos permanentes. Qual é a diferença entre esses dois tipos penais e como se aplicam esses conceitos na prática, à luz da legislação?
Crime permanente é um crime cuja execução se prolonga no tempo. O exemplo fácil de visualizar é o sequestro. Enquanto a vítima está sequestrada, o crime está acontecendo. Já o crime instantâneo de efeitos permanentes é um crime no qual se consuma o delito de forma imediata, mas ele acaba produzindo efeitos que ficam no tempo. A pessoa realizou a conduta, encerrou o comportamento ali, mas gera um efeito que se prolonga. A diferença prática disso é que, no crime permanente, você pode prender em flagrante o sujeito enquanto ele está cometendo o crime. No crime instantâneo de efeitos permanentes, você pode prender em flagrante só no momento em que ele realiza a conduta. Homicídio, por exemplo, é um crime instantâneo de efeitos permanentes: a morte. A pessoa não vai ressuscitar. Se eu localizar um cadáver daqui a quatro dias, eu posso prender em flagrante alguém que matou? Não, porque ele matou há quatro dias.
Quais são os riscos para a democracia brasileira do ativismo judicial do STF?
Não é de hoje que o Supremo pratica ativismo judicial. Dependendo do grau de ativismo, pode até caracterizar um crime de responsabilidade, e aí é o Congresso Nacional, dentro de uma democracia, que tem de avaliar se há ou não crime de responsabilidade cometido por algum ministro para que se abra um processo de impeachment. Não se quer, com essas críticas, dizer que seja possível retirar à força ministros do STF, como muita gente sugere, ou dar golpe… Isso tudo é absurdo. A minha geração saiu da faculdade acreditando que o bom jurista é aquele que faz justiça. O grande problema é o conceito de justiça. E cada um de nós tem uma visão diferente do que seja justo. O problema é quando se transforma a maneira de interpretar a Constituição, para fazer valer a sua opinião pessoal. É muito perigoso quando o juiz confunde decisão com escolha. O juiz pode escolher tomar um sorvete de baunilha em vez de um de chocolate. Mas ele não pode escolher na hora de decidir. Decidir é um ato juridicamente condicionado. O “juiz pessoa física” não pode se confundir com o juiz que representa a instituição. Toda vez em que isso acontece você tem um problema, porque passa a valer a opinião pessoal daquele juiz.
“Seria importante que os ministros fizessem uma autorreflexão”
O senhor vê risco de uma escalada autoritária do Judiciário no Brasil?
É difícil colocar esse rótulo, porque os ministros podem estar agindo com a maior das boas vontades. Mas seguramente estão extrapolando os limites do que se espera da atuação de quem detém poder jurisdicional. De fato, a gente percebe que esse comportamento não está adequado à melhor forma de interpretar como as situações devem ser conduzidas dentro de uma democracia. Não chegaria a usar esses rótulos de forma apressada, mas é preocupante, até como exemplo. Seria importante que os ministros fizessem uma autorreflexão. No caso do inquérito das fake news, se o juiz em primeiro grau faz a mesma coisa que eles estão fazendo, vem um habeas corpus de duas linhas do Tribunal de Justiça de um Estado e manda trancar a investigação, pela extrapolação.
Há uma saída legal para que se possa frear o poder dos ministros do STF?
O Parlamento pode mudar a competência do Supremo, por exemplo. O problema do STF é ter uma competência muito alargada. Ele decide tudo. Qualquer coisa pode chegar ao Supremo, desde quem foi o campeão brasileiro de futebol de 1987 até se um ato do Poder Executivo é válido ou não. Eles decidem até quando começa a vida… É um poder muito amplo. Tínhamos de transformar o Supremo naquilo que talvez fosse a ideia do constituinte brasileiro, espelhado na Suprema Corte norte-americana, que era torná-lo uma Corte constitucional, para julgar as grandes questões. No Brasil, temos 100 mil processos por ano na Suprema Corte. Como julgar isso com 11 pessoas? Não se encaixa na quantidade de dias úteis do ano nem na quantidade de ministros.
O STF foi alvo dos protestos do 7 de Setembro. A imagem do tribunal está arranhada perante a sociedade?
A imagem ficou arranhada na exata proporção do que eles estão realizando, como essas investigações que juridicamente são insuportáveis. O próprio Supremo tinha de fazer uma autocrítica e diminuir um pouco esse limite investigativo. Não significa dizer que não devam investigar uma ameaça. Ou que não se tenha de pôr um freio nos arroubos autoritários de algumas pessoas. Mas a atuação do STF nessas investigações que transcendem os limites hermenêuticos sobre o que é possível fazer, de certa forma acaba dando ferramentas para que movimentos queiram tomar medidas mais autoritárias, com as quais não estou de acordo.
Abaixo, o texto do procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná Rodrigo Régnier Chemim Guimarães compartilhado em grupos de WhatsApp:
“Como são muitas as ‘novidades hermenêuticas’ do processo penal brasileiro, resolvi fazer algumas anotações para me reorganizar na compreensão de temas importantes e reformular minhas aulas de processo penal:
- Juiz pode instaurar inquérito?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode investigar crimes?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz que se considera vítima de crime pode conduzir investigação a respeito?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode determinar busca e apreensão sem representação do delegado ou do Ministério Público?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode manter prisão em flagrante sem convertê-la em preventiva?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode determinar prisão em flagrante de alguém por crime instantâneo, acontecido dias atrás, ao argumento, claramente errado, de que o crime seria permanente, confundindo dado básico de direito penal que diferencia crime permanente de crime instantâneo com efeitos permanentes? [Para entender a diferença entre crime permanente e crime instantâneo com efeitos permanentes, leia a resposta da pergunta 4, na entrevista acima]
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode dar continuidade à investigação quando o procurador-geral determina o arquivamento do inquérito?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode dar entrevista sobre o caso que vai julgar emitindo opinião antecipada sobre o mérito do caso?
Não, salvo se for ministro do STF
- Juiz pode ofender graciosamente a honra dos interessados no processo, externalizando um misto de sentimento de ódio, raiva e inimizade pessoal, tanto no curso do processo, quanto em entrevistas e palestras, repetidas vezes, e seguir se considerando imparcial para analisar o caso?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode fazer homenagem pública ao advogado do réu, elogiando seu trabalho no caso concreto a ponto de chegar às lágrimas de tão abalado emocionalmente que ficou, revelando uma torcida pela defesa e se considerar ao mesmo tempo imparcial para julgar o caso?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode considerar válido inquérito sem fato delimitado para investigação?
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode fazer analogia in malam partem, alargando o objeto material de um crime por interpretação? [quando um fato não tem previsão legal, o juiz pode fazer uma analogia e aplicar norma relativa a um caso semelhante. Via de regra, no direito penal, o juiz não pode fazer analogia in malam partem, ou seja, de modo que prejudique ou agrave (ainda mais) a situação do réu.]
Não, salvo se for ministro do STF;
- Juiz pode dizer ao investigado que ele tem direito ao silêncio, mas caso resolva falar não pode mentir?
Não, salvo se for ministro do STF.
Excelente entrevista. Bastante esclarecedora.
Otima entravista com um texto final deveras esclarecedor.
Não sou jurista mas entendi facilmente o texto do dr. RODRIGO CHEMIN. Basta saber ler a língua portuguesa e ter bom senso. Esse questionário então, é espetacular porque esclarece que esses notáveis do saber jurídico e ilibada reputação, não são juízes, são Deuses Supremos.
Entendo que há solução, redefinindo prazos para esses mandatos de no máximo 8 anos, idade mínima de 60 anos com compulsória aos 70( revogar a PEC da BENGALA), não ter antecedentes de ativismo político, curriculum exemplar somente da magistratura sequencial à desembargadores dos diversos tribunais e indicados pelo presidente em uma seleção de 10 candidatos por títulos e méritos. Desnecessária qualquer sabatina do SENADO FEDERAL que não tem competência e saber jurídico para sabatinar e é uma casa que representa o ESTADO e não a população.
O texto do promotor é impecável, salvo para os ministros do stf