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Algumas capas da revista Newsweek | Foto: Divulgação
Edição 93

A vida misteriosa do fundador da Newsweek

O aviador inglês perdeu uma perna quando foi abatido por alemães, casou-se com uma jovem catarinense e está enterrado em Agrolândia. Mas poucos sabem disso

Deonísio da Silva
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O fundador da Newsweek, outrora uma das maiores revistas de informação do mundo e ainda em circulação, está enterrado em Agrolândia (SC), localidade de apenas 9.323 habitantes, a 274 quilômetros de Florianópolis.

Estive na casa em que ele viveu, visitei o cemitério onde está enterrado, conversei com os vizinhos e com o irmão de sua esposa, levantei documentos pertinentes no cartório local, tudo com o fim de pesquisar esse novo mistério catarinense.

As minúcias são quase sempre reveladoras do essencial. Nas biografias, certas ninharias desprezadas pelos autores irritam leitores mais atentos. Os biógrafos do escritor judeu-austríaco Stefan Zweig, por exemplo, deram pouca importância ao diabo das pequenas coisas, presente na vida do casal. Caíram nessa esparrela o inglês Donald Prater e o brasileiro Alberto Dines, ambos já falecidos. Inconformado, escrevi o romance Stefan Zweig Deve Morrer, em que são personagens Zweig e sua esposa, a judia-polonesa Elizabeth Altmann.

Já se disse que a literatura é a vida secreta das sociedades. Concluí, depois de minhas pesquisas, sobretudo em Petrópolis (RJ), onde o casal viveu e morreu, que os dois foram executados por nazistas homiziados nos inúmeros valhacoutos desta América. O romance já foi publicado também em Portugal e na Itália.

O aviador inglês e jornalista era casado nos EUA, tinha acabado de divorciar-se ou estava se separando

O fundador da Newswek, o aviador inglês Thomas John Cardell Martyn, derrubado pelos alemães na Primeira Guerra Mundial, está enterrado no Cemitério de Agrolândia (SC). Ele está enterrado ali, mas sua perna direita, não! Ele a perdeu na queda e usava uma prótese mecânica. A cineasta catarinense Loli Menezes dirigiu um longa-metragem sobre ele: Tio Tommy, o Homem que Fundou a News-Week.

Thomas Martyn, fundador da Newsweek | Foto: Reprodução

A revista foi batizada com hífen ao nascer, em 1933, tornou-se sem hífen uma das maiores revistas de informação do mundo e chegou a circular em 132 países, com edições de 3,2 milhões de exemplares. Atualmente, depois de interromper sua impressão e ficar apenas na internet, pode ser visitada aqui: https://www.newsweek.com/.  Sua mais recente publicação sobre o  Brasil, em que cita o presidente Bolsonaro, saiu em 19 de novembro

 

A Newsweek foi batizada com hífen ao nascer | Foto: Reprodução/Facebook

Foi numa temporada no Rio, nos anos 1950, que o fundador da Newsweek conheceu a catarinense com quem viria a casar-se e morar numa vila brasileira do Sul do Brasil, depois de viver em grandes metrópoles. Ela se chamava Irmgard Stahnke e trabalhava de empregada doméstica na casa de um militar de média patente. Tinha sido indicada por um rapaz de Agrolândia, que, por sua estatura e excelentes condições de saúde, servia na guarda presidencial. A capital da República nessa época era então o Rio de Janeiro.

O aviador inglês e jornalista era casado nos EUA, tinha acabado de divorciar-se ou estava se separando, essa situação, ainda cercada de controvérsias, precisa ser esclarecida com os documentos restantes do incêndio que deles se fez algum tempo depois de sua morte. O certo é que Thomas Martyn e Irmgard Stahnke se casaram em São Paulo, em 8 de abril de 1961. A linda “alemoa” tinha 40 anos; ele, 65.

O alemão Thomas John Cardell Martyn e Mary Irmgard Martyn, a catarinense com quem ele se casou | Foto: Reprodução/Arquivo pessoal
Thomas Martyn e Irmgard Stahnke | Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Foram depois de alguns anos morar em Agrolândia, para que, quando o marido morresse, a esposa tivesse o amparo dos familiares. Não combinaram com a morte, e a esposa, muito mais jovem, morreu primeiro, em 1973, aos 53 anos, de câncer no útero, segundo a certidão de óbito.

Não foi bem assim a morte de Irmgard, embora no cartório de Agrolândia (SC) os documentos atestem que ela morreu por complicações cardíacas decorrentes de um câncer no útero. Documentos também mentem. Por isso, desconfiado, voltei a conversar com o irmão dela, o alfaiate Afonso Stahnke (ele estava com 79 anos, quando o visitei em Agrolândia, em 2015), que me dissera antes ter sua irmã morrido de câncer no ânus, tendo sofrido muito nas semanas finais de sua existência com um tratamento à base de cauterizações.

O marido, que só chamava Irmgard de Mary — o nome alemão não lhe trazia boas lembranças, afinal ele tinha sido derrubado por alemães, em queda que lhe levou a perna direita —, pediu ao cunhado, que já tinha revelado ao funcionário do cartório como morrera a irmã, que ele, “por respeito”, mudasse a causa da morte. Quando o escrivão pediu que o marido assinasse o termo, o inglês pediu — e foi atendido — que constasse como declarante o cunhado.

Destaco esses detalhes porque escritores escrevem histórias e a História de outros modos. Para nós, os documentos não são tudo nem são provas em muitos casos. É preciso aclará-los. E foi por isso que resolvi não só conversar com as fontes vivas deste extraordinário acontecimento, como voltei a conversar com o declarante designado pelo cunhado para esclarecer este último detalhe, que muito diz do excessivo pudor epocal. Nem sequer no registro da morte a função excretora do corpo pode ser designada.

Martyn morreu em 1979, aos 84 anos, também de câncer, uma das maiores causas de morte na região. Os moradores do lugar resumem: “São esses inseticidas nas plantações de fumo…”.

Túmulo do casal Thomas John Cardell Martyn e Mary Irmgard Martyn, em Agrolândia (SC) | Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Quem determinou que constasse Mary e não Irmgard na lápide da esposa brasileira no Cemitério de Agrolândia (SC) foi o marido inglês. Mas por quê? Este é apenas mais um dos mistérios na vida deste homem invulgar.

Se são tão imprecisos assuntos como este, com testemunhas auriculares e oculares de tudo o que aconteceu, quod erat demonstrandum, pois tantos estão ainda vivos e falando abertamente, como é que se pode atestar a veracidade de tantas versões, insistentemente repetidas mundo afora, seja do suposto suicídio de Zweig, seja da devastação da Floresta Amazônica?

Desconfiai, leitores, desconfiai de tudo, mas não de todos: li, fui a Agrolândia, ouvi e vi. Somente depois é que escrevi.


Deonísio da Silva é professor e escritor. Seus livros são publicados no Brasil e em Portugal pelo Grupo Editorial Almedina. Os mais recente são Stefan Zweig Deve Morrer e De Onde Vêm as Palavras.

Leia também “Quem cala consente. E quem fala?”

6 comentários
  1. Robson Oliveira Aires
    Robson Oliveira Aires

    Show. E o último conselho perfeito.

  2. Márcia Aguiar Arend
    Márcia Aguiar Arend

    Uma inquietante pesquisa para oferecer aos leitores. Muitíssimo obrigada Deonisio

  3. Feliciano Swerts Carneiro Dias
    Feliciano Swerts Carneiro Dias

    Caro Deonísio, fui procurar o Stefan Zweig Deve Morrer e encontrei também o Lotte&Zweig. São leituras de alguma forma complementares? Se forem, devo ler qual delas primeiro?
    Grato. Feliciano.

    1. deonísio da silva
      deonísio da silva

      Não. A partir da 4a reimpressão, foi adotado nas edições portuguesa e brasileira o título da edição italiana, “Stefan Zweig deve morire”. Grato por sua leitura.

  4. Manoel Graciano
    Manoel Graciano

    Muito interessante este artigo, novidades de História desconhecida, de fatos ocorridos no Brasil.

  5. Idalina da Siva Machado
    Idalina da Siva Machado

    A verdade deve ser um princípio para tudo na nossa vida. Uma pessoa que vive na mentira vai mal. E uma sociedade que vive falsas verdades está como? Muitas vezes a verdade tem de ser buscada. E essa prática precisa ser mais difundida, mais discutida, mais incentivada para que o mundo fique um lugar mais confortável e digno.
    Obrigada ao Professor Deinísio da Silva por tantas importantes reflexões aqui na revista Oeste. O livro será lido.

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