Houve uma época em que os prêmios literários eram o caminho mais rápido para um escritor se tornar conhecido e ganhar alguns trocados. Nos anos 1960 do século passado, havia dezenas deles. O mais famoso era o Walmap, patrocinado por um banco mineiro — o Nacional —, cuja história de amparo às artes se perdeu na poeira dos tempos. Eu mesmo concorri várias vezes a ele. Mas nunca fui além dos dez finalistas ou da menção honrosa — posições que me faziam bem ao ego, mas não me rendiam nem fama nem dinheiro.
A maioria dos ganhadores do Walmap, tal como o prêmio e o banco que o patrocinava, caiu no esquecimento. Eu, desiludido com a literatura, atravessei uma fronteira então considerada maldita e, assim, me estabeleci como escritor no território menos nobre da televisão, das telenovelas e, sejamos bem sinceros, do dinheiro. Mas… por que diabos estou a escrever sobre prêmios literários? Porque uma cláusula de um dos raros que ainda existem — o Prêmio Literário José Saramago — me remeteu ao tema que, após o “nariz de cera” logo acima, vou abordar nesse artigo: a discriminação aos idosos.
O prêmio em questão, cito, “distingue obras inéditas de ficção de autores da lusofonia até os 40 anos”. Se o escritor tiver até 40 anos, poderá concorrer e abiscoitar o interessante prêmio de € 40 mil. Mas, se tiver 41, por mais talentoso que seja, não terá permissão para isso. Pois, para efeito de criatividade e quaisquer outros, ao que tudo indica, já deverá ser considerado tecnicamente morto.
Claro que os promotores do Prêmio José Saramago dirão que não existe nenhuma intenção discriminatória nessa única cláusula restritiva, inclusive porque no corpo de jurados foram incluídas pessoas com mais de 70 anos — a romancista brasileira Nelida Piñon é uma delas… E eles estarão certos. Mas os escritores de mais de 40 insistirão em dizer que estão errados. E que essa cláusula restritiva é apenas uma forma elegante de discriminar os mais velhos. Afinal, José Saramago ganhou o Nobel de Literatura aos 76 anos… O que significa que, naquela época, ele já não estaria apto a concorrer ao prêmio que leva o seu nome.
A discriminação aos idosos não é só cruel, mas é também muito criativa
Por isso — e baseado na minha própria experiência, já que farei 79 anos no próximo mês de junho —, eu aqui afirmo: de todas as minorias discriminadas, a mais discriminada de todas é essa que nem é tão minoria assim (em alguns países chega a ser maioria): a dos idosos. Ou, para que a coisa toda pareça mais cruel: a dos coroas. Dos vovôs. Dos velhotes. Dos caquéticos. Atire-me a primeira pedra a pessoa idosa que nunca foi chamada de “desenterrado do cemitério”, “kakura”, “caduco”, “nojento”, “fedorento”… Ou muitos outros insultos desse tipo acrescentados ao prenome “velho”. Às vezes de um modo paternalista, ou quase “terno”. Outras, do único modo pelo qual deve ser reconhecido qualquer tipo de insulto: de forma cruel…
Sem falar na crueldade, que é bastante comum aqui na Europa, de encerrar os idosos nos chamados “lares”, onde eles ficam trancados, mas deixam seus bens lá fora para que os jovens da família ganhem o direito de usufruir deles da melhor maneira.
A discriminação aos idosos não é só cruel, mas é também muito criativa. Vou dar um exemplo: citei no parágrafo acima a palavra “kakura”. Percebi que, nos últimos tempos, muitos a utilizam quando querem me insultar nas redes sociais. Como não tinha a menor ideia do que significava, fui pesquisar e descobri que, primeiro, essa tal palavra não existe… Mas talvez tenha se derivado de “caqueira” — ou seja, é aplicável a alguém que, como eu, seja um “caco velho”.
Sim, provavelmente é de “caco” ou “caqueira” que a tal kakura saiu. Porém, embora a palavra não conste de nenhum dos dicionários mais sérios e menos consultados, para que se torne um insulto de maior peso, ela precisa ter uma explicação, digamos assim, mais “etimológica”. Por isso, num tal Dicionário Informal existente na internet, já há uma definição para “cacura”, ou “kakura”, e esta é: “Homossexual (masculino) de idade avançada, com mais de 40 anos, enrugado. Geralmente a expressão é usada para definir homens enrustidos e de mais idade”.
Mas tem mais: em outro Dicionário Informal na internet, kakura com K ganha um status ainda maior. Seria uma palavra saída de um misterioso dialeto africano no qual é usada para designar (pois é claro) “homossexuais velhos”. Assim, fica entronizada a expressão cruel no maravilhoso reino das palavras com histórico. E, diante de sua definição, não há como negar que, aos 79 anos, eu seja as duas coisas: “cacura” e “kakura”.
Esse é um exemplo de como a discriminação se oficializa e se autoafirma através do insulto puro e simples. Mas, em relação aos idosos, ela nem precisa seguir por esse caminho. Basta ver o papel a eles reservado na publicidade, por exemplo: aos velhos, o que se tenta vender são aparelhos de surdez, fraldas geriátricas, óculos capazes de dar aos olhos cansados a ilusão das cores da juventude, pós e unguentos para as dores próprias da idade, ou planos de saúde inacessíveis à maioria dos mal aposentados.
Se no terreno escorregadio da publicidade não existem meios-termos — ninguém é louco a ponto de tentar vender uma Ferrari envenenada a um ancião com problemas sérios de joelhos, ou um colar de refulgentes diamantes e esmeraldas a uma vovó engraçadinha cujo colo antes sedoso agora ficou engelhado —, no dia a dia, a indiferença e o desamor aos velhos e caquéticos por parte daqueles que se consideram “para sempre jovens” são ainda mais evidentes.
Para mim, não existe nada mais triste do que ver uma família reunida numa mesa de restaurante onde está uma pessoa idosa à qual ninguém dirige a palavra e que se limita a olhar em torno com olhos vagos, como se quem estivesse ali não fosse a pessoa que ela um dia fora, mas apenas o seu espectro. Diz-se cruelmente dessas pessoas que “já está com um pé na cova”. Ou então que “já morreu, apenas ainda não foi enterrada”.
Claro, a culpa disso tudo também é dos idosos, que aceitam a discriminação como irremediável ou um “bônus” da idade. Pois se há uma coisa que essa proporciona é o direito de fazer e dizer o que se quer sem medos nem remorsos. Assim, se alguém me perguntasse que conselho eu daria aos velhos, parodiando o conselho que certa vez Nelson Rodrigues deu aos jovens — “Envelheçam!” —, eu lhes diria: “Rejuvenesçam!” Deixem bem claro para a turma ignorante e preconceituosa que a experiência de vida é um bem precioso. Não renunciem a ele, nem se deixem expulsar do lugar que — até que a morte realmente os leve — por direito é de todos os velhos neste nosso mundo cada vez mais envelhecido e caquético.
Leia também “Excursão à alma de Paris”
Ótimo texto. Parabéns Aguinaldo Silva.
Sou sua fã do twitter. Adoro suas postagens sempre lúcidas e muito criativas. Tenho 15 anos a menos que você e concordo: nós somos “tolerados “! Parece que estamos incomodando. Parabéns pelo texto. Abraços!
QUANDO O “VÉIO” NÃO TIVER MAIS A PERDER, IRÁ ATIRAR PARA TODOS OS LADOS OU PUXAR O PINO, E BUUUUMMMMM!
Seja independente o quanto puder, física e financeiramente falando. Depender dos outros é a morte em vida.
Triste realidade.
Belo texto. Penso que as distâncias entre gerações sempre foram os motores impulsionadores de todas as impaciências dos mais jovens em relação aos mais velhos. Em tempos de internet, então, essas distâncias são ainda maiores e mais rapidamente são estabelecidas, recrudescendo a sensação de paralisia na estrada da vida, e ainda encurtando a margem de erro: 40 anos, como diz a tal cláusula, já se é velho.
Só que essa mesma internet pode – e deve! – ser utilizada a favor dos “velhinhos” de 40 em diante. Quanto mais aproximados dela estivermos, mais próximos dos mais jovens estaremos. Claro, para quem iniciou, como eu e você, a dedilhar noquelas antigas Olivetti, dá um trabalhão extra esse condicionamento. Mas vale a pena. Sei de tudo, leio de tudo e mais um pouco, ao ponto de sempre deixar os mais jovens a ver navios, seja numa mesa de jantar ou num boteco. Procuro conhecer até as últimas gírias, aquelas liguagens estranhas dos jovens, só para que eles saibam que EU NÃO SOU VELHO COISA NENHUMA.
E procuro não me trair em pensamentos contraditórios, como você fez em meio a um texto crítico como esse: “Para mim, (…), como se quem estivesse ali não fosse a pessoa que ela um dia fora, mas apenas o seu espectro.” Repare que quem estava ali ERA UMA PESSOA, não A PESSOA QUE UM DIA FORA. Entendeu?
Piadas, enfim, sempre existirão, mas o nosso papel de preveni-las contra nós mesmos é também nossa. Uma educação de qualidade, em casa, não dispensando a responsabilização (= castigo) quando desrespeitam idosos, também é crucial.
Tenho 60, por enquanto.
Abração e feliz ano novo.
Parabéns, excelente artigo.
Artigo cheio de “mi mi mi”.
Se vc tiver sorte, vc vai poder envelhecer. E aí talvez reveja seus conceitos. A menos que você viva completamente isolado, é possível ver como as pessoas idosas são tratadas ou referidas como inferiores por quem é mais jovem, às vezes “com a melhor das intenções”. É como se a experiência e conhecimento adquiridos ao longo dos anos vividos perdessem completamente a validade, só porque o corpo da pessoa não é mais tão jovem. Eu não sei como a nossa sociedade chegou a esse ponto de decadência, mas chegou, e sua fala é exemplo disso. (Silvia, 38 anos).
Mas pera. Talvez vc tenha tido a sorte e tenha chegado à velhice, e ainda ache esse artigo “cheio de mi mi mi”. Se for esse o caso, discordamos, e tudo bem. Achei essa artigo bem necessário.
olá! Tenho muito respeito pelos mais velhos e os escuto muito, pois experiência de vida, como bem disse o autor, é um bem muito precioso. Tive a impressão que o autor do texto se incomoda demais com que os mais jovens dizem com relação a ele, piadinhas e rotulações. Acho que faz parte do amadurecimento não dar valor a isso, pois quem diz isso não sabe nada da vida. O “mi mi mi” a que me refiro é sobre essa reclamação infinita de todos os segmentos da sociedade (idosos, negros, índios, gays etc). Daqui a pouco teremos cota idoso, além de todas as outras cotas já criadas para as “minorias”.
Obs.: sou mais velho que você.
Entendi sua visão. Discordo nesse caso do artigo, mas entendi. Sobre a sua observação ao final (“sou mais velho que você”), eu coloquei minha idade na assinatura justamente pra não usar a idade como argumento de autoridade ao responder seu comentário (pra não ser aquela pessoa que fala “olha, EEEUUU sei o que estou falando e sei melhor do que você, pois tenho mais idade que você”). A real é que tanto faz a nossa idade, já que nenhum de nós chegou lá e vamos entender “na pele” o que o autor do artigo fala quando efetivamente chegarmos à velhice. Boa sorte pra nós.
Parabéns pelo artigo, sou um sujeito que a sociedade chama de idoso, ao meu redor vejo gente mais idosa na faixa de 25 a 40 anos.
Acho que cada cidadão aceita a velhice ou a discriminação dela ao seu modo. Tenho 65 anos,dois filhos ( filho e filha ) casados e dois netos. Tenho oito empresas, e no ano passado fui para o conselho da empresa e passei a direção geral para o filho mais velho. Nunca abri mão das minhas convicções. Estou casado de novo com uma mulher mais jovem, não aceito sequer conselhos, sou presente na vida dos filhos e netos, quando sou solicitado. Viajo, interajo com jovens e velhos, faço academia, pratico esporte, leio, estudo e faço boas viagens, bebo meus vinhos e vivo a vida do meu jeito. Nunca mendiguei um convite para estar entre os jovens, quando sou convidado participo. Quando os convido não cobro suas vindas. Não vejo discriminação comigo apenas cada um vivendo seus momentos. Se tento abrir uma porta e lá está escrito que é somente para pessoas de 40 anos, busco uma nova porta! Acumulei conhecimento mas erro sempre. Meus conhecimentos se restringem a um automóvel com o farol voltado para trás. Ou seja: só coleciono aprendizado naquilo que passei. Na vida somos uns eternos aprendizes. Busque ser feliz e lembre-se que a idade é cronológica mas principalmente psicológica…#VaoBoraSerFeliz#
Sensacional este artigo, parabéns
Concordo com tudo e, no alto dos meus 55 anos, já me preparo para o que virá quando ficar “idosa”.
Infelizmente vejo que a discriminação com os idosos muitas vezes começa com os próprios idosos, que não aceitam a velhice e tentam parecer garotões e garotinhas, fazendo plásticas, arrumando namorado (a)s, achando que assim vão evitar a velhice.
Cada fase da vida deve ser vivida com respeito e dignidade, por mais difícil que seja.
A propósito, gostaria de saber quem inventou a expressão ridícula “melhor idade” para se referir aos programas, projetos voltados aos idosos. Melhor idade pra quem????
Perfeito, Alexandre! Seu comentário foi muito melhor que o texto!
Parabéns pelo texto!!!!!
Excelente! Parabéns, Aguinaldo. Tambem acho que, se chegamos até aqui na velhice, merecemos ocupar o nosso espaço produzindo e compartilhando nossa experiência com os mais jovens.
Já sou uma senhora de 57 com cabeça de 20. Jamais darei importância a quem me agride com palavras ou termos agressivos.
Quando era mais jovem meus melhores amigos eram idosos, sempre os admirei e hoje já caminhando para a terceira idade não tenho nenhum problema com a minha idade. Estou super bem comigo e a idade não me define
Completamente lúcido este seu comentário, só faltou dizer para estes jovens que quem abriu o caminho “rebeldes e transviados ” para eles, FOMOS NOS OS VELHOS.
Parabéns! Texto elegante e preciso na atual realidade!
Hahaha, muito bom
O maior problema está na “panelinha”. Quem faz parte dela tem mais chance. Na imprensa, em geral, escritores não famosos não tem nenhuma linha para divulgar seus trabalhos. Só se pagar. Se for do partido ideológico de plantão, tem tudo. Se não tem carteirinha, fica fora. O pior de tudo é quando um cientista e um grande pesquisador fica velho. Quando ele se manifesta com conhecimento de causa e experiência dão mais valor a quem entende de tudo e tem menos de 40. Às vezes o professor idoso é que faz a banca dos filhos de seus alunos e, estes, querem saber mais que o mestre. E não respeitam. Eu vi muita coisa parecida, mas estamos numa época que a discriminação é muito grande. Se a gente não tivesse conseguido movimentar alguns planos humildes e conquistado algumas coisa, dava para ficar com depressão. Mas, graças a Deus, conseguimos uma bagagem boa e valorizada pelos que nos querem bem. Dá para o gasto.
Excelente reflexão, muito apropriada para uma “virada” de ano.
Que no ano novo o respeito aos idosos aumente bastante.
Parabéns, Aguinaldo, e feliz 2002 !
Rejuvenesçam!
E como recomenda meu ídolo de quase 100, Clint Eastwood, “não deixe o velho entrar”.
Um VIVA! aos velhos cheios de vida!
Excelente!
Excelente reflexão…
Nesses tempos rápidos quando temos “coaching”, “especialistas”, “consultores” e “influencers” que não chegaram aos 30 dando conselhos e dicas, sem um pingo de experiência, é simplesmente assustador.
O pior é a arrogância de conhecimento e cultura que não possuem. As redes sociais são as mais pura expressão dessa juventude, incapaz de ser rebelde ou transviada. Nada além de egocentrismo e obviedades!