Pular para o conteúdo
publicidade
Candidato ao governo de São Paulo Fernando Haddad (PT), Marcio França e Geraldo Alckmin | Foto: André Ribeiro/Futura Press/Estadão Conteúdo
Edição Eleições 2022

Abraço de afogado

Márcio França juntou Haddad e Alckmin no mesmo jazigo onde também vai descansar

Augusto Nunes
-

Vereador e duas vezes prefeito de São Vicente, deputado federal, vice-governador de São Paulo, governador interino por mais de um ano, morubixaba do PSB paulista, Márcio França teve em setembro de 2021 uma ideia que lhe pareceu luminosa: transformar o tucano amuado Geraldo Alckmin, a quem substituíra no comando do mais poderoso Estado da federação, em companheiro de chapa de Lula. Para tanto, deveria começar pela remoção dos ressentimentos recíprocos, adubados por trocas de insultos e acusações que começaram na eleição de 2006, cresceram nos anos seguintes e chegaram ao clímax na temporada eleitoral de 2018.

Os velhos desafetos reagiram com animação à proposta de Márcio. Praticamente aposentado, isolado no PSDB pela afoiteza do ingrato afilhado João Doria, Alckmin teve de conter o entusiasmo diante da chance de vingar-se do verdugo que apadrinhara. Ele aprendeu que fatores biológicos podem encurtar o caminho que leva ao paraíso do poder. Em 2001, por exemplo, o câncer que matou Mário Covas acabou instalando no cargo o obscuro deputado federal que o PSDB escolhera para completar a chapa como vice-governador. A dobradinha com alguém sete anos mais velho pode desbastar uma trilha que desemboca na Presidência da República.

Lula também gostou do que ouviu. Desde 1994, quando assumiram o governo de São Paulo, os tucanos espancam o PT nas urnas a cada quatro anos. A tarefa sempre foi facilitada pelas figuras — todas perturbadoras, algumas apavorantes — escolhidas para representar a estrela vermelha. O cortejo transformou em certeza a suspeita dividida por milhões de eleitores: em São Paulo, o PT não lança candidatos; lança ameaças. Os paulistas achavam que qualquer outro seria menos perigoso que gente como Lula, Eduardo Suplicy, Aloizio Mercadante, José Dirceu, José Genoíno, Luiz Marinho e outros perigos fantasiados de homens públicos.

Eduardo Suplicy e Aloizio Mercadante
Eduardo Suplicy e Aloizio Mercadante, em julho de 2022 | Foto: Reprodução

Com a ajuda do companheiro Alckmin, acreditou o chefão, seria bem menos complicado chegar ao Palácio dos Bandeirantes, e logo começaram os encontros furtivos. Consumado o noivado, Márcio convenceu o carola de carteirinha, capaz de rezar a segunda metade do Credo de trás para a frente, de que deveria filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro. Alckmin sentiu-se de tal forma em casa que, poucos dias depois, já se desmanchava em mesuras a cada encontro com um homem que, três anos antes, acusava de querer voltar à Presidência por sonhar com o regresso à cena do crime.

YouTube video

“A partir de agora, ele é o companheiro Alckmin”, decretou Lula durante outra missa negra da seita. O mais recente amigo de infância retribuiu com afagos ousados. Numa noitada, cobriu a cabeça destelhada com um boné do MST. Noutra, caprichou na cantoria da Internacional Socialista. Logo seria visto puxando palavras de ordem em louvor do companheiro que vivia chamando de “ladrão”. “É uma mudança impressionante”, constatou um amigo que convive há décadas com Alckmin. “Ele diz que só agora conheceu o Lula de verdade.”

YouTube video

Márcio esperou a hora certa para reivindicar o dote devido ao seu talento casamenteiro: queria ser senador. E detalhou a barganha. Para anabolizar a candidatura a governador do petista Fernando Haddad, o PSB não teria candidato próprio em São Paulo. Em contrapartida, o PT desistiria de lançar algum candidato ao Senado filiado à sigla, para que Márcio fosse o único pretendente à vaga. Como Lula topou de imediato a troca de favores, Márcio dobrou a aposta: exigiu que sua mulher, a educadora Lúcia França, figurasse como vice na chapa encabeçada por Haddad. Emplacou mais essa.

Está provado que o patrimônio eleitoral de Geraldo Alckmin, se é que algum dia chegou a existir, evaporou-se de vez

Tudo acertado, o idealizador do acerto atravessou a campanha com a pose de quem, numa vida passada no Império Romano, foi senador vitalício. Neste 1° de outubro, foi dormir embalado pelos números da derradeira pesquisa Datafolha. Com 45% dos votos válidos, Márcio França liderava a disputa muitas léguas à frente de Marcos Pontes, ex-ministro do governo Bolsonaro, emperrado em 31%. Acordou no domingo ansioso por correr para o abraço. Descobriu pouco depois do início da apuração que deveria ter lido e assimilado a frase de Tancredo Neves: “A esperteza, quando é muita, fica grande e come o dono”. Terminada a contagem dos votos, descobriu que lojinhas de porcentagens iludem fregueses de todos os tipos, e são especialmente cruéis com oportunistas deslumbrados.

As urnas reduziram para pouco mais de 36% os 45% que lhe haviam embalado o sono — e fizeram Pontes saltar de 31% para quase 50%. Nocauteado, o articulador de botequim terá de levantar sem demora para tentar reduzir as dimensões da segunda derrota reservada a Fernando Haddad e Lúcia França, outra dupla eleita pelo Datafolha e castigada pelo mundo real. Na véspera do dia da votação, os fabricantes de índices homenagearam a chapa com 39% dos votos válidos. Sobraram 31% para Tarcísio de Freitas, candidato de Jair Bolsonaro, e 20% para o governador Rodrigo Garcia, candidato à reeleição pelo PSDB. De novo, os eleitores de São Paulo puniram a fantasia estatística. Tarcísio venceu com mais de 42% dos votos válidos. Haddad baixou para 35% e manteve o PT longe do governo paulista. Com 18,5%, Rodrigo Garcia encerrou a longa hegemonia do PSDB.

Lula afirmou na noite de domingo que vai vencer Bolsonaro porque “o segundo turno é apenas uma prorrogação”. Se é assim, tem de admitir que houve, visto de perto, um empate. A declaração também proíbe Haddad de argumentar que a próxima etapa será o recomeço do jogo. Como o candidato a presidente pelo PT também foi vencido em território paulista, está provado que o patrimônio eleitoral de Geraldo Alckmin, se é que algum dia chegou a existir, evaporou-se de vez. Os estragos provocados pela colisão com a maior e mais sólida fortaleza conservadora do Brasil liberam o ex-prefeito de Pindamonhangaba e o ex-prefeito de São Vicente para o cultivo da bonita amizade simulada durante a campanha do primeiro turno. Nasceram um para o outro.

Leia também “Um líder sem povo”

28 comentários
  1. Leonardo Abreu
    Leonardo Abreu

    Kkkk

  2. Marcelino Teodoro de Assiz
    Marcelino Teodoro de Assiz

    Augusto, como sempre, impecável nos comentários, um verdadeiro mestre das palavras.

  3. Maria Regina Fiuza de Melo Pinto
    Maria Regina Fiuza de Melo Pinto

    E eu aqui pensando que neste encontro Lula & Alkmin estive alguma estratégia capaz de mudar os rumos da Nação 😂😂😂🇧🇷

  4. Ayrton Pisco
    Ayrton Pisco

    Excelente texto! Parabéns.

    1. Maria Regina Fiuza de Melo Pinto
      Maria Regina Fiuza de Melo Pinto

      Parabéns Augusto Nunes, vc descreve com agudeza e humor, os sentidos e sentimentos que envolvem políticos toscos e sem senso de realidade.

  5. Erasmo Silvestre da Silva
    Erasmo Silvestre da Silva

    Como é complicado vamos fazer uma eleição sem obscurantismo, vamos fazer como é feito na França, isso é soberania da Nação

  6. Rubens Andrade Vizeu
    Rubens Andrade Vizeu

    aos poucos o POVO BRASILEIRO vai sepultado a carreira politica dos maus politicos aventureiros do Mal.

  7. carlos roberto de moura
    carlos roberto de moura

    Grande Augusto Nunes! Concordo que o 2º turno é apenas uma prorrogação. O mandato do Bolsonaro será prorrogado por mais quatro anos.

  8. Manoel Estanislau Da Silva Fontes
    Manoel Estanislau Da Silva Fontes

    Parabéns Mestre!!!

  9. Claudio Haddad
    Claudio Haddad

    PARABENS AUGUSTO, GENIAL..

  10. jose antonio bento pereira
    jose antonio bento pereira

    Boa tarde!!! O Presidente Jair Messias Bolsonaro precisa vencer com urgência, pois as SOMBRAS nefastas querem de qualquer ganhar a eleição que se avizinha.

  11. JOSE RODORVAL RAMALHO
    JOSE RODORVAL RAMALHO

    Ô cabra pra escrever que só a gôta!

  12. Ayr De Almeida Gosch
    Ayr De Almeida Gosch

    ” Lojinhas de porcentagem”….kkkkk. Essa é muita boa!!! Seria apenas uma boa piada se não tivessem “negociado” mandatos como o do Paulo Martins no Paraná entre outros. Ai o “troço” fica sério .

  13. Aeduardo
    Aeduardo

    “A esperteza, quando é muita, fica grande e come o dono.” !!!
    Grande Augusto e sua memória afiada…
    Aguardemos. Assim será também relembrada com o picolé de chuchu e o molusco
    em breve. Tenho pressentimento que o ‘cupaêro’ será despachado para a Nicarágua,
    cristão católico como coroinha.

  14. Wilson Komatsu
    Wilson Komatsu

    Mestre Augusto Nunes sempre primoroso em seus textos.

  15. Mara Regina Cunha da Silva Albers
    Mara Regina Cunha da Silva Albers

    Sempre sei que vou dar boas gargalhadas quando o artigo é de Augusto Nunes.
    É um raro dom unir forma, conteúdo e humor inteligente. Sensacional!

  16. Jorge Luís de Mendonça Cardoso
    Jorge Luís de Mendonça Cardoso

    Sempre certeiro, Augusto!
    Seja qual for o resultado do 2º turno, a derrota desse apanhado de vagabundos oportunistas, já me enche de orgulho e esperança! Isso, além do extermínio definitivo do psdb em Sampa, o partido que profissionalizou a traição!

  17. Rafael Caetano Smith Pugliesi
    Rafael Caetano Smith Pugliesi

    As máscaras caíram, o teatro das tesouras ruiu e os atores desse drama com 50 tons de vermelho ficaram desempregados. O ostracismo político os aguarda para dar-lhes um forte abraço de afogado. Já vão tarde!

  18. SERGIO RODRIGUES MARTINS
    SERGIO RODRIGUES MARTINS

    Belo texto Augusto! A máscara caiu! Serão empurrados junto com os demais para o lixo da história, de onde nunca deveriam ter saido!

  19. Adelmo Sérgio Pereira Cabral
    Adelmo Sérgio Pereira Cabral

    Levaram uma baita e bela surra. Vão tombar e cair toda vez que lembrarem os números.

  20. Alexandre de Medeiros
    Alexandre de Medeiros

    Missa negra da seita foi o melhor…parabéns Augusto, mais um espetacular artigo!

    1. jose antonio bento pereira
      jose antonio bento pereira

      No segundo turno , vamos de vez enterrar esses pseudos contadores de anedotas. Bolsonaro/2023

  21. Machado lson
    Machado lson

    Excepcional artigo.

  22. JOSE FERNANDO CHAIM
    JOSE FERNANDO CHAIM

    Muito bom Augusto. Pena que não nos deliciamos, ainda, com Lula sendo escanteado da política.

  23. O Revelador
    O Revelador

    Quando o ex-presidiário chamou o nobre paulista do inteiror, que alimenta e abastece milhões de pessoas no mundo de Capiau, NENHUM dos políticos paulistas que estão com o bandido descondenado tiveram a coragem de se pronunciar na defesa do próprio povo.
    A história política condena os covardes à derrota e ao esquecimento.
    Já vão tarde esses 3 comunistas disfarçados…

  24. Maria Lucia Barbosa
    Maria Lucia Barbosa

    OTIMA , MUITO BEM VC É O MELHOR

  25. Olinto Santos Cardoso
    Olinto Santos Cardoso

    Análise sem retoques. Parabéns bravo jornalista

  26. gilberto diniz junqueira
    gilberto diniz junqueira

    De Mario Covas para Lula :
    Eu sou você amanhã.
    Alkimin sempre ganha com um velório.

Anterior:
Valentina Caran: ‘Além de ser honesto, o corretor precisa ser esperto’
Próximo:
Carta ao Leitor — Edição 209
Newsletter

Seja o primeiro a saber sobre notícias, acontecimentos e eventos semanais no seu e-mail.