Pesquisadora associada do Instituto Ronald Reagan, comentarista da Jovem Pan e colunista da Revista Oeste, Ana Paula Henkel se tornou uma das mais lúcidas analistas do cenário político nos Estados Unidos e no Brasil. A ex-jogadora da seleção brasileira de vôlei sabe como ninguém que muitas vezes a política acaba se imiscuindo no esporte de forma perigosa. Em entrevista a Oeste, poucos dias depois do início da Olimpíada de Tóquio, Ana Paula afirma que “os Jogos estão sendo usados” para fomentar divisões político-ideológicas, graças à ação de grupos militantes que utilizam o esporte para fazer apologia de suas próprias bandeiras.
“Racismo, intolerância, isso tudo a gente pode discutir de maneira madura e não militante, como tem acontecido. Temos de proteger o esporte. Se a gente conseguir deixar essa politização de fora dos Jogos, podemos usá-los como uma alavanca para o debate intelectualmente honesto”, diz a ex-atleta, que fala com propriedade sobre o tema. Ela participou de quatro Olimpíadas: Barcelona-1992 e Atlanta-1996, no vôlei de quadra, e Atenas-2004 e Pequim-2008, no vôlei de praia. Conquistou a medalha de bronze, em 1996.
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Ana Paula, que hoje vive nos Estados Unidos e estuda Ciência Política na Universidade da Califórnia (UCLA), descreve o drama das jogadoras da icônica seleção cubana de vôlei que conquistou três medalhas de ouro olímpicas (1992, 1996 e 2000) e protagonizou embates históricos contra o Brasil. “Elas ganhavam tudo, mas nunca tinham nada. Qualquer premiação financeira era totalmente voltada para o Estado. Elas tinham que reportar ao Fidel”, conta, citando relatos das próprias cubanas sobre as agruras do regime comunista.
Na entrevista, a ex-craque das quadras e das praias ainda traça prognósticos sobre o vôlei brasileiro em Tóquio e explica por que os EUA são uma verdadeira “fábrica de talentos” — e de medalhas — no esporte. Leia:
1 — Em coluna publicada na Edição 67 da Revista Oeste, você afirma que “separar esporte e política é tão importante quanto separar Estado e igreja ou governo e economia”. De que forma a politização vem atingindo os Jogos Olímpicos e o esporte em geral?
Não apenas a politização, mas a militância exagerada. São agendas que não são significativas para o esporte e para a sociedade, em geral. Tenho amigos gays que querem uma agenda muito diferente dessa de ficar falando “todes”, “elu entra”, “elu sai”, como nós vimos uma comentarista recentemente falando em um jogo de futebol feminino. Esses meus amigos acham que a militância LGBT histérica e imatura, que fica empurrando essas coisas, acaba desvirtuando as pautas justas de uma legislação que permita o casamento entre homossexuais no civil ou processos de adoção de crianças, por exemplo. Isso vem sendo tentado não apenas nas escolas, mas na área do entretenimento e agora no esporte. As pessoas não querem ver isso no esporte. Aqui nos Estados Unidos, em 2017, o Colin Kaepernick [ex-jogador de futebol americano] começou a ajoelhar no hino durante as aberturas dos jogos de futebol americano [em protesto contra a desigualdade social e o racismo], a não respeitar a bandeira, a inflamar o discurso de ódio à bandeira… Por mais imperfeito que seja o país, são símbolos que unificam as pessoas. Raça, etnia, credo, religião, faixa etária, classes sociais… São símbolos que unem e não devem ser usados para divisão. Os Jogos estão sendo usados para divisão: mulheres contra homens, no sentido militante, e não esportivo. Racismo, intolerância, isso tudo a gente pode discutir de maneira madura e não militante, como tem acontecido. Temos de proteger o esporte. Se a gente conseguir deixar essa politização de fora dos Jogos, podemos usá-los como uma alavanca para o debate intelectualmente honesto. Podemos baixar um pouco a temperatura e expurgar essa animosidade no campo político, dialogando com quem discorda. Na Olimpíada de Munique, em 1972, terroristas palestinos sequestraram israelenses dentro da Vila Olímpica. Foram dias de muita tensão [o episódio ficou conhecido como o Massacre de Munique e terminou com 17 mortos, entre atletas israelenses, terroristas e policiais]. Todo aquele episódio mostra o grau a que a politização do esporte pode chegar. Isso é muito perigoso. Não sou contra os atletas opinarem nas suas redes privadas, mas temos que lembrar do principal ponto da carta olímpica do Barão de Coubertin [o criador dos Jogos Olímpicos da era moderna, em 1896), que é a congregação dos povos. Temos que proteger a alma olímpica a qualquer custo.
2 — Há algumas semanas, Cuba foi palco de manifestações contra a ditadura comunista. Você participou de partidas históricas contra a seleção cubana de vôlei, entre os quais a semifinal olímpica de 1996. Qual era a realidade das atletas cubanas?
O relato delas era este: elas ganhavam tudo, mas nunca tinham nada. Qualquer premiação financeira era totalmente voltada para o Estado. Elas tinham que reportar ao Fidel [Castro], na época. Absolutamente tudo, não apenas a premiação como seleção cubana, mas também a das jogadoras, individualmente. Elas eram as melhores do mundo, jogavam na Itália, na Espanha… E tinham que doar o salário delas dos clubes italianos para o governo cubano. Nós convivemos com elas durante muitos anos e elas traziam charutos cubanos para a gente comprar, para ajudar na renda delas. O diferencial é que tinham uma assistência médica um pouco melhor do que o cidadão comum, que a gente sabe que é quase nula. Até porque tinham que ter saúde para jogar e ter sucesso com a seleção. No Brasil, nós íamos com elas ao supermercado. Elas compravam remédio, pasta de dente, absorvente… E nós acabávamos pagando para elas. Vendiam as camisas quando tinham algum material esportivo sobrando. Era uma vida muito difícil. Muitas se casaram com europeus e não voltaram. Pediram asilo político em alguns países e conseguiram. Algumas se casaram sem amor mesmo. Casaram com pessoas que queriam ajudá-las. Casaram para que pudessem ficar legalmente [nos países] depois que os contratos como jogadores acabassem. Uma delas, bicampeã olímpica, me confessou uma vez: ‘Eu trocaria tudo, todas as minhas glórias e medalhas olímpicas, pela chance de morar fora de Cuba com a minha família’. Eu encontrei a Mireya [Luis, jogadora da seleção cubana, considerada uma das maiores de todos os tempos] em 2004, na Olimpíada de Atenas. Demos um super abraço, foi muito bacana. Ela era secretária de Esporte da comissão cubana. Ela falou: ‘Hoje eu tenho alguma coisa porque faço parte do governo, mas não posso falar mal de Cuba, não posso abrir minha boca’. Em 2016 [em um novo encontro durante a Olimpíada do Rio], a mesma coisa. Infelizmente, ela não podia criticar o governo de maneira alguma. Mas falamos mais sobre a nossa história. Demos risadas, mostramos fotos dos filhos e choramos também. As pessoas acham que a nossa história com Cuba é de apenas rivalidade dentro de quadra, mas é uma história de amizade também. Hoje, se a gente encontrar qualquer uma delas, vamos dar um super abraço e conversar sobre aqueles bons tempos.
3 — Você disputou quatro Olimpíadas, duas na quadra e duas no vôlei de praia. Ganhou o bronze em Atlanta. Quais foram as principais diferenças entre cada uma de suas participações olímpicas?
São dois esportes que parecem iguais, mas são totalmente diferentes. Obviamente os movimentos técnicos de cada ação são os mesmos, mas na sua dinâmica e no seu contexto técnico, de estudo e estatística, são muito diferentes. Eu tive quase que reaprender um novo jogo. Nunca imaginei que, reaprendendo um esporte quase totalmente diferente, eu poderia ainda ir a mais duas Olimpíadas. Consegui, e isso até estendeu a minha carreira. O vôlei de quadra é um esporte de muito impacto, principalmente na minha posição, que era no meio, que saltava bastante e bloqueava a rede inteira. Tive duas fraturas por estresse na tíbia, o joelho já não estava muito bem… Indo para a areia, diminuiu bastante esse impacto na superfície. No vôlei de praia, as lesões são diferentes, mais musculares. Atlanta foi a primeira medalha olímpica do vôlei brasileiro feminino. Foi muito especial fazer parte daquela geração, tudo o que a gente passou. Na praia, estive perto de chegar a uma semifinal e acabei em quinto lugar nas duas edições. Isso foi muito frustrante, principalmente em 2004, quando minha dupla com a Sandra Pires era uma das favoritas à medalha. E o frio na barriga em todas as edições. Isso é muito bom. A partir do momento em que você começa a perder esse friozinho na barriga, você tem que parar. Eu até pensei em disputar uma quinta Olimpíada, em 2012, em Londres. Tinha saúde, sempre cuidei muito bem do meu corpo, que era a minha ferramenta principal na minha carreira. Estava bem, tinha até um patrocínio, mas tem uma hora em que você tem que começar a olhar outras coisas que estão passando na sua vida. Eu já estava havia 20 anos sempre escolhendo a minha carreira antes da família, das minhas leituras, dos meus estudos, de tudo o que sempre gostei muito. Começou em um telefonema com o meu pai, que sempre foi o meu maior torcedor e incentivador. Ele me perguntou se eu precisava mesmo ir à quinta Olimpíada, se não era hora de me dedicar mais a tudo o que eu queria fazer e o esporte nunca deixou. Parar por cima era uma boa estratégia. Segui o meu pai e encerrei a carreira ali, um pouquinho antes de Londres.
4 — Qual é a sua expectativa em relação ao desempenho do vôlei brasileiro em Tóquio? E sobre o resultado geral da delegação, acredita que o país possa superar as 19 medalhas da Olimpíada do Rio?
Minha expectativa é sempre alta em relação ao desempenho do vôlei. Nós continuamos com expectativa de medalha nos quatro ‘vôleis’: feminino e masculino de quadra e feminino e masculino na praia. Na praia, temos chances de quatro medalhas, inclusive. O vôlei tem a oportunidade de trazer seis medalhas para casa. É difícil? É. Mas não é impossível. Nosso vôlei continua no topo do mundo. Sobre o resultado geral da delegação, é muito difícil fazer uma previsão para essa Olimpíada, que foi empurrada um ano para frente. Seria em 2020 e teve de ser jogada para 2021 por causa da pandemia. Isso mudou muito a dinâmica de treinamento, de classificação dos esportes, da vida cotidiana de um atleta. Tudo mudou bastante e teve de ser adaptado à realidade que a pandemia trouxe. Treinamento, isolamento, distanciamento, testes… Acho que nós veremos menos recordes do que na última edição. Todo mundo tem uma receitinha de sucesso que você segue. Todas essas receitas tiveram de passar por alguma modificação. É uma Olimpíada em que é muito difícil a gente prever o que vai acontecer.
5 — Você mora nos Estados Unidos, uma potência olímpica e grande fábrica de talentos, com atletas sendo formados desde a escola. Como funciona o modelo norte-americano de incentivo ao esporte?
Os atletas são formados desde o high school [equivalente ao ensino médio no Brasil], não é nem na universidade. Infelizmente, o Brasil não tem como copiar essa fórmula norte-americana. O modelo norte-americano de incentivo começa nas escolas públicas e privadas. A própria dinâmica dos campeonatos nacionais de high school, de 14 a 18 anos, já é uma prerrogativa para você ingressar na liga universitária. A NCAA [National Collegiate Athletic Association], que é o campeonato universitário, é uma liga extremamente rica, há uma competição muito grande entre as universidades, inclusive de incentivo a mais esportes. Em todas as transmissões americanas de qualquer esporte, quando um atleta ganha uma medalha ou acontece um evento histórico de superação, os comentaristas da TV sempre dizem: fulano veio de tal universidade, fulana foi campeã da NCAA em tal ano, por tal universidade. São as artérias que alimentam as seleções norte-americanas. As universidades são verdadeiras fábricas de atletas de sucesso, de estudos em relação à vida olímpica, à vida atlética, a políticas antidoping… Tudo isso é fomentado nas universidades. Este é o modelo norte-americano. E as universidades têm muito dinheiro. O fundo financeiro [da Universidade] de Stanford, por exemplo, chega a US$ 1,3 bilhão. Além disso, você tem os esportes que dão mais visibilidade, como o futebol americano e o basquete, que podem fazer seus contratos com marcas de material esportivo, por exemplo. Podem fazer contratos de transmissão da NCAA com canais de TV. O universo do esporte universitário movimenta bilhões de dólares. É muito difícil os Estados Unidos deixarem de ser os protagonistas no cenário esportivo mundial com artérias alimentadas diariamente, mensalmente, anualmente, e não apenas com dinheiro. Isso faz muita diferença na vida de um atleta de alta performance. Não só a sua capacidade técnica ou atlética, mas toda essa estrutura: psicólogos, preparadores físicos, fisioterapeutas, técnicos, cientistas… E todos esses atletas chegam às seleções com uma mentalidade muito profissional. Seria incrível se o Brasil tivesse isso, mas não temos esse campo atlético nas universidades. Seria um sonho, mas é um sonho impossível para a gente.
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As últimas Olimpíadas foram no Rio de Janeiro, temos um parque olimpico e equipamentos de última geração, porque não transformar o Rio num centro de excelência do esporte olímpico. Temos a Vila Olímpica com moradia e demais necessidades para habitação. Se aplicassemos a verba do Fundão Partidário no esporte, nas próximas Olimpíadas em Paris trariamos dezenas de medalhas.
Comentarista lúcida que não se deixou levar pela vaidade e soberba militante.
Brasil sempre indo de marcha ré quando um programa não reverte em impostos vide futebóis e demais programas televisivos apoiados e patrocinados pelas grande cervejarias e tabacarias, que ao contrário da essência saudável do esporte, geram dividendos absurdos. Vida com saúde? Não importa muito.