Palmeiras e Santos decidiram o título da Copa Libertadores da América no dia 30 de janeiro, um sábado à tarde, no Maracanã. Um dos 2,5 mil convidados pelos clubes e pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) era o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), torcedor santista, que levou o filho para acompanhar o jogo decisivo. Enquanto isso, os paulistanos amargavam mais um fim de semana em isolamento forçado por causa das medidas restritivas da chamada “fase vermelha” do plano de enfrentamento da covid-19, que estava em vigor na capital paulista naquele momento. Com parques, bares, restaurantes e boa parte do comércio fechados, só restou aos paulistas assistir pela TV ao jogo que o prefeito via de pertinho, do camarote do Maracanã.
Quarenta dias depois, em 11 de março, o governador João Doria (PSDB) e os especialistas do Centro de Contingência determinaram a paralisação imediata do Campeonato Paulista de futebol após apenas três rodadas terem sido disputadas. A medida, pelo menos em tese, vale até o próximo dia 30. A Federação Paulista de Futebol (FPF) e parte dos clubes cogitaram apelar à Justiça para retomar o torneio. Em seguida, foi discutida a possibilidade de realizar os jogos em Minas Gerais — mas o governo local, que também vem endurecendo as medidas restritivas, rechaçou a ideia de receber os times paulistas. Em reunião na segunda-feira 22, FPF e clubes aceitaram esperar até o fim do mês e descartaram judicializar a questão. Entretanto, no fim da tarde do mesmo dia, a FPF surpreendeu ao confirmar o jogo entre Corinthians e Mirassol para esta terça-feira, 23, em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, após acordo com a prefeitura da cidade. O imbróglio parece longe de acabar.
Protocolos de segurança
Mas, afinal, o futebol representa uma ameaça tão grande à sociedade como fator de disseminação do coronavírus? Os números indicam que não. O coordenador da Comissão Médica da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Jorge Pagura, apresentou um relatório detalhado sobre os protocolos de segurança sanitária adotados pela entidade — seguidos pela FPF — durante o último Campeonato Brasileiro. Participaram dos estudos profissionais de medicina esportiva, epidemiologistas, infectologistas e especialistas em bioinformática. Foram realizados 89.052 testes RT-PCR para a detecção do coronavírus em um universo de 13.237 atletas, permanentemente monitorados. Os especialistas analisaram 116.959 inquéritos epidemiológicos encaminhados pelos clubes e 4.860 planilhas de jogos. Entre todos os campeonatos organizados pela entidade, o índice de testes com resultado positivo para a covid-19 foi de 2,2%. “Uma coisa importante foi que nós comparamos a curva de incidência com a curva do país, que a gente calcula por 200 mil habitantes. Você tinha fases de alta transmissibilidade na população e baixa no futebol. E, às vezes, você tinha alguns surtos em times, e estava baixo [na população em geral]. Essa curva dissociou-se da curva do Brasil”, explica Pagura em entrevista a Oeste.
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Por meio de uma minuciosa análise das interações entre os atletas e da genotipagem do vírus, o comitê científico constatou que não houve contaminação durante as partidas. “Chegamos à conclusão de que não havia evidência de nenhum tipo de contaminação intertimes. A contaminação era intratimes”, diz Pagura. “Nós temos números grandiosos, os maiores números do país. Nós controlamos. Fomos afastando [os infectados]. Por que não fizeram isso no país, no município? Qual é a atividade profissional hoje que tem o controle que nós temos? Se todas tivessem, nós não estaríamos com a pandemia desse jeito. ‘Ah, mas o futebol migra de avião.’ Espera um pouco. Se você precisa viajar de avião, vá no meio de uma delegação de time de futebol. Estão todos testados, retestados, com máscara e com inquérito epidemiológico. O futebol não vai levar a pandemia para ninguém. Tem uma proteção que nenhuma outra atividade tem.”
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Em nota encaminhada a Oeste, a FPF informa que “o protocolo de saúde do futebol é extremamente seguro”. A entidade diz ainda que, “assim como os demais segmentos econômicos que permanecem em atividade com restrições, o futebol deve seguir as mesmas condições, com funcionamento sem público e com esse protocolo inédito entre todos os setores da sociedade”. E argumenta: “Assim como os restaurantes, que estão impedidos de receber clientes em seus salões e têm funcionado com sistema de delivery, o futebol segue sem público nos estádios, entregando ao torcedor, na sua casa, os jogos por meio de transmissões. No entanto, o futebol é a atividade econômica que possui um rigoroso e inédito protocolo de saúde, com testagens semanais de seus colaboradores e acompanhamento médico diário. Com a paralisação, mais de 3 mil atletas, membros de comissões técnicas e funcionários das agremiações param de ter esse controle médico”.
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“Tem um monte de atividades funcionando, e aí você olha às 7 horas da manhã e todo mundo fica amontoado no ônibus e no metrô. E o futebol não pode”, critica Pagura.
“É muito fácil falar: fique em casa, ninguém sai. Para quem mora bem, tem uma boa situação e uma boa reserva, tudo bem. Mas para quem mora em ambiente com adensamento populacional é muito complicado. A primeira coisa é a vida, tudo bem. Está suspenso tudo? Suspende o futebol também. Se não suspendeu tudo, vamos comparar as atividades e usar as regras científicas para isso. De repente, o futebol ficou estigmatizado como uma casta diferente”, diz Pagura.
Situação em outros países
Quando se observa o que acontece em outras partes do mundo, a suspensão do futebol no Brasil parece fazer ainda menos sentido. Quatro países que registram mais mortes por milhão de habitantes do que o Brasil — Reino Unido, Itália, Portugal e Espanha — só paralisaram seus campeonatos de futebol no auge da primeira onda da pandemia (veja aqui a lista dos 20 países com mais mortes por milhão de habitantes e outras estatísticas da pandemia). Neste segundo pico da doença, os torneios prosseguiram normalmente. No Reino Unido, os jogos continuaram a ser disputados em dezembro do ano passado, em pleno lockdown, quando foram registrados recordes de infecções e a vacinação apenas se iniciava. Em Portugal, que sofreu com o recrudescimento da pandemia no início deste ano, o lockdown também não fez a bola parar de rolar — e os casos diários caíram de 7,7 mil para 979 em três meses.
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Outras modalidades esportivas também já ensaiam a volta à normalidade. Nos Estados Unidos, recordista em casos e mortes por covid-19, o Texas Rangers vai se tornar a primeira equipe profissional de beisebol desde o início da pandemia a liberar a ocupação máxima de seu estádio. O Estado do Texas, que começou a aliviar as restrições, voltou a aceitar pedidos de licenciamento para eventos de esportes de combate, como o MMA, também com presença de público nas arenas. No basquete, a NBA foi referência absoluta já no ano passado, quando criou uma “bolha de segurança” para isolar 22 equipes no Complexo Esportivo da Disney, na Flórida, seguindo rígidos protocolos. Até mesmo os Jogos Olímpicos de Tóquio, no Japão, cancelados em 2020, estão garantidos no calendário para este ano, entre 23 de julho e 8 de agosto. O público estrangeiro foi vetado, mas o evento, pelo menos por enquanto, está confirmado.
Saúde mental
Além de desafiar dados e protocolos científicos, a decisão do governo de São Paulo de suspender o Campeonato Paulista ignora o impacto do esporte mais popular do país na saúde mental dos brasileiros. Ouvido por Oeste, Marcelo Santos, professor de Psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, câmpus Campinas, explica a dimensão do futebol no imaginário coletivo. “Você vai restringindo a vida da pessoa de tal forma que, inevitavelmente, ela será impactada em algum momento por algum acometimento. Pode ser uma melancolia, ansiedade, uma depressão leve… Aos poucos, todas essas pressões têm um efeito no aspecto psicológico”, afirma. “Aquele apaixonado por futebol acaba apaziguando um pouco essa sua vontade, valendo-se desse alcance que a televisão tem, principalmente nos canais pagos. O futebol no Brasil, de fato, tem um caráter de distração, até mesmo de descontração. Isso acaba também sendo uma válvula de escape. As pessoas precisam disso para se sentir vivas. Tem aquele efeito anestésico de que a vida ainda está andando. Quando você tira isso, tem um impacto.”
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Santos pondera, por outro lado, que o risco de aglomerações de torcedores para acompanhar os jogos — mesmo que apenas pela TV — deve ser levado em consideração nas discussões sobre a volta do futebol em São Paulo. “Recentemente, um time paulista foi campeão, e o que a torcida fez? Foi ao estádio comemorar. Inúmeros torcedores lá, sem máscara, festejando. Você tem aí um efeito que não é saudável”, alerta.
À espera da retomada do Campeonato Paulista com jogos em São Paulo, a FPF prometeu, em nota divulgada na segunda-feira 22, reunir-se com os clubes “com o propósito de intensificar as campanhas relativas aos cuidados de higiene, isolamento social e vacinação, visando a amplificar as informações sobre medidas sanitárias de combate à pandemia”. Mesmo ainda sem o aval do governo do Estado e antes de confirmar o jogo do Corinthians em Volta Redonda, a entidade garantia que o campeonato seria “retomado a partir do dia 31 de março” e se encerraria “na data prevista, 23 de maio”. Resta saber se os técnicos do Centro de Contingência deixarão a bola rolar ou continuarão dando cartão vermelho para a ciência.